Estamos Entrando na Era das Autocracias?
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a 20/06/2022 - 13:00
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Cerca de trinta anos atrás, analistas e políticos democratas celebraram, em várias partes do mundo, o que o cientista político norte-americano Samuel Huntington (1991) chamou de a Terceira Onda de Democratização do planeta, um conjunto tão significativo de transformações antiautoritárias que levou outro analista, tão celebrado quanto ele, o filosofo norte-americano Francis Fukuyama (1989), a escrever um ensaio em que anunciava o “Fim da Historia”.
A tese supunha que com o colapso do modelo soviético de sociedade e de política, provocado pelo fracasso da perestroika e da glasnot e pela queda do Muro de Berlim em 1989, o predomínio da democracia liberal tinha alcançado um grau tão amplo e consistente de consolidação que eliminava a possibilidade de que alguma alternativa pudesse disputar com ela a hegemonia política pela realização da boa vida e da felicidade preconizadas pelos clássicos. Fukuyama se referiu em seu ensaio, logo tornado fonte de controvérsia, ao modelo liberal que asseguraria, em tese, tanto a plena liberdade e a autonomia dos indivíduos, quanto o seu direito de autorizar governos a agir em seu nome para implementar as suas preferências.
Menos de trinta anos depois, no entanto, ou mesmo um pouco antes, um conjunto de novos acontecimentos, a maior parte dos quais sinalizando a reversão da expansão democrática anterior, colocou a democracia liberal na defensiva. A seguida ascensão de governos populistas ou abertamente iliberais – em alguns casos de características claramente autocráticas - mostrou que uma nova onda de transformações políticas estava se iniciando, desta vez provocando o efeito oposto da anterior; ou seja, abrindo espaço para a perda de força das ideias e dos princípios liberais e colocando no centro do cenário figuras de lideranças que tendem a se auto-instituir como os fiadores do regime político de seus países. Os casos mais emblemáticos são os da Rússia com Putin, a Venezuela com Chávez e Maduro, e a Turquia com Erdogan. Mas a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, depois da vitória do Brexit na Inglaterra no mesmo ano, mostrou que a tendência era mais ampla e atinge mesmo países da União Europeia, como a Polônia e a Hungria que, poucos anos atrás, tinham despontado como exemplos dos processos de democratização no Leste europeu.
A América Latina não ficou incólume a essa nova onda. Atingida pela emergência de novas lideranças populistas à esquerda e à direita, as quais atacaram a autonomia de instituições democráticas básicas como o judiciário e os partidos, polarizaram o ambiente político e dividiram os países entre os seus apoiadores e seus opositores. Além da Venezuela, com a sucessão de golpes e contra golpes que consolidaram o Chavismo, a onda atingiu ainda o Equador com Correa, a Bolívia com Morales, a Colômbia com Uribe e, mais recentemente, o Brasil com Jair Bolsonaro, países que ampliaram a centralização do poder em mãos do Executivo, limitaram as atribuições do parlamento em alguns casos e autorizaram os presidentes a permanecer no poder além de limites anteriormente previstos nas constituições; afora isso, alguns desses países ainda foram palcos de contestações das eleições, de imposição de restrições à liberdade de imprensa e de obstáculos à ação da oposição.
Vários casos de crise das democracias, ou da sua recessão, dizem respeito a situações em que, embora os líderes tenham sido eleitos pelo voto popular, são protagonistas de um processo de paulatina corrosão das regras e das instituições democráticas que alteram o formato do regime vigente, subordinando a sua dinâmica não aos meios democráticos usuais, mas a um progressivo processo de controle dos mecanismos de relações do poder com a sociedade. O Brasil exemplifica bem essa situação: tanto os processos de impeachment de Collor de Mello, entre o final dos anos 80 e início dos 90, e de Dilma Rousseff, em 2016, como a ascensão de Jair Bolsonaro, em 2018, colocaram o país em um cenário de profunda instabilidade política. Como na maior parte de países do continente, o sistema presidencialista de governo convive com um sistema partidário frágil, fragmentado e cada vez mais desacreditado, o que compromete o princípio de representação política, afeta as condições de governabilidade e fragiliza a legitimidade do regime.
Esse é o contexto institucional em que Bolsonaro foi eleito no Brasil e, embora tenha jurado cumprir a Constituição e assegurar a liberdade, isso não serviu para evitar que ele adotasse medidas antidemocráticas e inclusive participasse de manifestações convocadas por seus apoiadores pedindo o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, sem falar de sua desqualificação do sistema eleitoral. Em que pesem as manifestações de respeito à lei, Bolsonaro é um líder de mentalidade autoritária que não apenas se considera ser o interprete máximo da vontade popular, como menospreza instituições básicas da democracia, como o judiciário, demonstrando o seu desapreço pelo princípio de separação de poderes, e estimulando a intolerância política de suas bases de apoio. Nesse sentido, a participação em seu governo de oficiais de alta patente – alguns dos quais ainda na ativa – dá a impressão de que as Forças Armadas referendam as suas atitudes, o que de certa forma confunde a opinião pública sobre o papel dessas instituições na democracia.
O cenário geral sugere a possibilidade de que a crise das democracias novas e velhas dê lugar para a emergência de regimes autocráticos, baseados no protagonismo de líderes que se apresentam como fonte do seu próprio poder. Diferente das democracias em que o poder emana do povo, isto é, dos eleitores, nas autocracias é como se a fonte da legitimidade política não fosse esse poder externo, derivado da soberania dos cidadãos, mas os próprios líderes que se intitulam interpretes legítimos da identidade e dos objetivos da Nação. A origem dessas novas autocracias, diferente do que ocorria no passado, por exemplo, com os golpes de Estado, é a situação em que os líderes autocratas passam a romper a estrutura dos limites impostos pelos princípios democráticos para o exercício do poder e passam a exercer cada vez de modo mais direto o poder por si mesmo, sem controle e sem oposição. A ação usual dos autocratas envolve a destruição da autonomia do Judiciário e das instituições de fiscalização e de controle e, ao mesmo tempo, o impedimento ou a completa eliminação da oposição. Os meios de comunicação são controlados, a crítica é desautorizada e os autocratas passam a apresentar as suas posições e propostas de seus partidos como se fossem as do país como um todo. As autocracias não são totalitárias, mas em muitos sentidos são um ensaio de controle do funcionamento e da vida da sociedade, em que os opositores em geral a essa realidade são vistos como inimigos do governo, do Estado e do país.
O seminário sobre as autocracias será conduzido pelo professor José Álvaro Moisés, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre a Qualidade da Democracia do IEA, e terá a participação do cientista político Antonio Costa Pinto, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, autor do livro “O Regresso das Ditaduras”, e do jornalista e doutorando João Gabriel de Lima, autor de um texto de análise do caso da Hungria. Os comentários estarão a cargo de Gabriela de Oliveira, do GP da Qualidade da Democracia, e de Diego Moraes, do Instituto Sivis, que tem uma parceria com o GP da Qualidade da Democracia do IEA. O objetivo é avaliar se estamos entrando na era das autocracias e, em caso positivo, o diagnóstico de sua natureza e suas características.
O Regresso das Ditaduras
Esse livro sintetiza importantes contribuições do professor António Costa Pinto ao estudo dos regimes de força. Costa Pinto foi um dos primeiros a mostrar que, ao contrário do que pensa o senso comum, nem todos os autoritários são iguais. Parafraseando a famosa sentença de Tolstoi, lembra que os autocratas cerceiam a liberdade, cada qual à sua maneira, e não agem sozinhos. Ditaduras são sistemas sofisticados nos quais autocratas cooptam várias parcelas da sociedade, e se diferenciam pelo modo com que fazem isso e pelos segmentos que os apoiam. Em "O Regresso das Ditaduras?", Costa Pinto usa essa lente para mostrar os novos autoritarismos, aqueles em que autocratas chegam ao poder pelo voto e corroem as democracias por dentro, destruindo suas instituições. A ação dos autocratas é sempre danosa para as democracias, mas nem sempre resulta em ditaduras. O ponto de chegada pode ser uma democracia de baixa qualidade, um regime híbrido ou, nos piores casos, pode ser, sim, um regime de força no sentido clássico. Costa Pinto é um pensador sofisticado que mostra todas essas nuances em seu livro.
O Caso da Hungria
O texto "O Irmão Húngaro", de João Gabriel de Lima, publicado recentemente pela revista Piauí, mostra como essa corrosão da democracia se dá na prática. A reportagem teve como ponto de partida um ensaio escrito pelo autor para o doutorado em Política Comparada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, elaborado para disciplina ministrada por Costa Pinto. O texto parte da revisão da literatura de autores como Andras Bozóki, entrevistados por João Gabriel para um texto jornalístico. João Gabriel foi à Hungria para observar como a autocratização húngara se deu na prática, em várias fases: há quase uma "pedagogia do autoritarismo" na ação de Orbán, como sugere o texto da Piauí, baseado em entrevistas de representantes de vários segmentos sociais atingidos pelo processo. O retrato que aparece é o de um país com uma sociedade civil vibrante, que vinha se modernizando politicamente, mas esse contraste torna ainda mais dramática a escalada autoritária promovida por Orbán.
Inscrições
Evento público e gratuito | sem inscrição prévia
Não haverá certificação
Organização
Programação
Expositores:
António Costa Pinto (ICS-Universidade de Lisboa)
João Gabriel de Lima (Jornalista e ICS-Universidade de Lisboa)
Comentaristas:
José Veríssimo (NUPPs/USP)
Diego Moraes (Instituto Sivis e IEA-USP)
Evento com transmissão em: http://www.iea.usp.br/aovivo