Discurso de posse de Marco Antonio Zago como reitor da USP, em 25 de janeiro de 2014
Senhor governador, senhor vice-reitor, membros do colendo Conselho Universitário, autoridades, senhoras e senhores,
A Universidade de São Paulo completa hoje 80 anos, se considerado o decreto de sua organização formal de 25 de janeiro de 1934. Suas origens, no entanto, são centenárias e remontam à criação da Faculdade de Direito em 1827, seguida das cinco outras escolas profissionais que, aglutinadas com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, instituída pelo mesmo decreto, constituíram o núcleo inicial da USP.
Uma característica surpreendentemente moderna daquela universidade nascente era a diversidade intrínseca de sua missão. Devia ser, ao mesmo tempo, escola de formação profissional de elevada qualidade; instituto de pesquisa de ciências, letras e filosofia; local de formação das lideranças intelectuais, e de criação, compreensão e transmissão da cultura.
E essa universidade, assim constituída, revelou-se um projeto político e estratégico bem sucedido, ao qual vieram agregar-se as outras duas universidades estaduais paulistas (UNICAMP e UNESP), os institutos de pesquisa como Butantã, IPT, IPEN e IAC, o Centro Paula Souza e a UNIVESP, como instrumentos de uma política que colocou o Estado de São Paulo em posição de liderança no país, na produção intelectual e na formação de pessoal qualificado de nível superior.
As universidades existem para prover educação superior de excelência às novas gerações e para promover a pesquisa, entendida no sentido mais amplo, ou seja, a investigação experimental e tecnológica, a pesquisa dos problemas humanos como o exame das questões econômicas, políticas e sociais, as dimensões acadêmicas ligadas às manifestações culturais e artísticas, entre outras, estendendo seus resultados à sociedade.
Uma universidade de alto padrão acadêmico não pode, no entanto, tratar suas duas missões tradicionais, o ensino e a produção intelectual, como dois compartimentos estanques, mas devem ser desenvolvidos de forma articulada: não é possível ser forte em pesquisa e fraco no ensino. Somente a existência de grupos de pesquisa e laboratórios de excelência, por exemplo, garante o desenvolvimento de cursos de pós-graduação, caso contrário, a formação pós-graduada seria uma atividade vazia.
Nas palavras de Karl Jaspers, “a universidade é uma escola, mas de um tipo muito especial. Não deve ser vista apenas como um local de instrução; pelo contrário, o estudante deve participar ativamente da pesquisa e, desta experiência, ele deve adquirir a disciplina intelectual e a educação que permanecerão com ele pelo resto de sua vida. Idealmente, os estudantes pensam de maneira independente, ouvem criticamente e são responsáveis perante si mesmos. Eles têm liberdade de aprender.”
Pela natureza de sua missão e de seus interesses, as universidades são entidades que transcendem as fronteiras nacionais. Tratam de questões que são valorizadas em todas as culturas, em todas as nações e nas mais diferentes épocas. Basta olharmos para as universidades nascentes na Europa medieval, quando os jovens das mais diversas origens nacionais buscavam Bolonha, Paris, Coimbra ou Oxford. Mas, é preciso ressaltar que, da mesma forma que ocorria na Idade Média, não se alcançará a internacionalização por meios burocráticos ou artificiais. Somente universidades reconhecidas como centros de conhecimento atrairão os jovens de nosso mundo globalizado.
Adicionalmente às suas duas missões clássicas, ensino superior e pesquisa, a última década fortaleceu o reconhecimento da chamada “terceira missão” das universidades, que inclui todas as relações das universidades com seus parceiros não-acadêmicos. Divergindo da característica transnacional do ensino e da pesquisa universitários, a terceira missão fortalece o vínculo com as comunidades locais e regionais, expostas hoje a mudanças rápidas ou inesperadas, como a globalização, mudanças climáticas, incertezas econômicas e rápidas transformações tecnológicas. A USP deve contribuir para com o poder público para responder aos difíceis problemas derivados da concentração populacional em grandes metrópoles, da mudança rápida do perfil etário e de consumo da sociedade, bem como da crescente substituição da economia baseada em mão de obra e riquezas naturais por uma sociedade de informação e do conhecimento. O mundo de hoje exige das universidades ações que vão além de seus muros.
Como afirmamos em nosso programa, a relevância das universidades brasileiras será determinada pela sua capacidade de responder criativamente aos desafios dos problemas emergentes no cenário atual: a expansão dos fenômenos da cultura, o crescimento de reivindicações de acesso ao conhecimento e à herança cultural da sociedade, a exigência de que as instituições, sobretudo as públicas, atendam aos anseios dos atores sociais diferenciados, a necessidade de ampliar a inclusão social, a habilidade de sincronizar-se aos movimentos do conjunto da sociedade, a capacidade de transformar conhecimento em inovação, tanto no setor produtivo como para as políticas públicas.
A USP não se furtará às suas responsabilidades. Mas, há que reconhecer que ela encontra-se hoje sob fortes pressões originadas de fora e de dentro dela mesma. Ameaças e pressões, por si só, não são intrinsecamente negativas, pois podem representar oportunidades de mudanças e de construção de maior coesão.
Mas, a quais ameaças e pressões a USP está sujeita? De um lado, ela precisa reagir vigorosamente à expectativa da sociedade, legítima, de uma resposta às crescentes demandas sociais. De outro lado, passamos por um desequilíbrio financeiro que pode pôr em risco nossa autonomia.
Mas, a mais grave das ameaças é a corrosão do tecido mesmo da universidade, tanto por movimentos de protesto, que se têm transformado em agressões ao patrimônio e às pessoas, como pela intolerância ao diálogo, que ameaça transformar a universidade em um túmulo de ideias.
Temos que reagir, temos que enfrentar esses desafios, de três formas distintas:
Primeiramente, aumentando a contribuição da USP para a sociedade paulista; nós precisamos fazer mais e melhor. Temos que melhorar a qualidade e reduzir a evasão de nossos cursos de graduação. Precisamos reavaliar o sistema de acesso e acompanhar com atenção o progresso da inclusão social e racial, construindo as intervenções que forem necessárias.
A USP Leste e o campus de Lorena serão dois motivos adicionais de orgulho da USP, e devem ter impacto positivo nas regiões onde estão implantados, da mesma forma que tiveram nossos campi de Ribeirão Preto, de São Carlos, de Piracicaba, de Bauru e de Pirassununga. Precisamos ampliar nossa relação com os setores produtivos e governamentais, participar da articulação e implantação dos parques tecnológicos.
Em segundo lugar, vamos modificar radicalmente a gestão de recursos financeiros, reformar e modernizar a administração para valorizar as atividades-fim. Não é possível que uma simples mudança num curso de graduação exija interminável ritual de discussões e aprovações, que pouco ou nada contribuem para melhorar a qualidade das decisões.
A gestão comedida de recursos financeiros restritos nos obrigará à sobriedade administrativa e à avaliação conjunta das nossas prioridades, privilegiando a promoção de atividades acadêmicas e de recursos humanos em relação à expansão de obras físicas.
Finalmente, temos compromisso com a revisão da governança da universidade, que passa por uma crise nas suas formas de legitimação e de gestão. Por isso, assumimos o compromisso de repactuar as relações no âmbito da universidade, de forma a aumentar a agregação interna, trazendo o diálogo, e não mais o confronto, para o centro da vida universitária, numa forma de democratização que avance muito além do mecanismo de escolha do Reitor. Uma democratização que reverta a desconcentração do poder que caracterizou as sucessivas gestões recentes, e que inclua o compartilhamento de responsabilidades entre a Reitoria e as unidades acadêmicas, maior transparência na gestão do orçamento e restabelecimento do papel central dos órgãos colegiados.
Mas, não resta qualquer dúvida de que a nossa mais urgente tarefa, que será um encargo permanente de todos, a partir de amanhã, é a reconstrução das relações entre estudantes e professores, em todas as suas dimensões. Esta será a base da mudança que ocorrerá na USP. Não podemos esquecer, nunca, que somos, acima de tudo, educadores, e seremos julgamos pelo êxito que alcançarmos nessa missão. Os jovens que formaremos vão atestar se a USP, quando se aproxima de seu centenário, está realmente cumprindo sua missão, como sonharam seus fundadores.
Para isso, eu os convoco a todos, estudantes, docentes e servidores, para respondermos em conjunto aos desafios que se nos apresentam, nas palavras poéticas de João Cabral de Melo Neto:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
A campanha acabou, os rituais da transmissão do cargo esgotaram-se neste momento. Somos agora aliados pela mesma causa. Permitam-me evocar, pela última vez, o lema que nos moveu nesta campanha em prol da universidade: agora somos Todos pela USP! Todos pela USP!