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A ciência do alimento diante de novos desafios

por Sylvia Miguel - publicado 13/09/2016 13:50 - última modificação 20/09/2016 08:57

Agricultura - Leslie Firbank 1

O agroecologista Leslie Firbank, da Universidade de Leeds

As necessidades do futuro dependerão do capital natural que conservarmos agora, mas as sociedades não têm dado o devido respeito a essa premissa, mostrou. A Inglaterra, por exemplo, enfrenta um sério problema com solos disponíveis para a agricultura. O carbono do solo foi reduzido a níveis drásticos devido ao uso agrícola intensivo ao longo de décadas. “Ou o solo fica incrivelmente seco ou totalmente encharcado, a ponto das culturas serem dizimadas”, disse.

As condições de solo e clima levaram a Bretanha a se tornar importadora de trigo, uma de suas principais culturas no passado. O país também se debate com as novas doenças de seus rebanhos. “Mas as pessoas não dão o devido valor a isso, não sabem sequer de onde vem, nem como é produzido o alimento. Há uma mentalidade de que se não produzimos, podemos comprar de qualquer outro país que produza”, afirma.

A especialista em biociência animal, Helen Miller, também da Universidade de Leeds, participou do debate, que contou com a moderação de Pablo Mariconda, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e coordenador do grupo de pesquisa em Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia.

 

Soluções locais

Ao contrário da agricultura das décadas de 1970 a 1990, em que dominava um modelo igual para todo tipo de cultivo, a produção agrícola do novo milênio deverá se caracterizar pela diferenciação e pela diversidade, graças à agricultura de precisão, acredita Firbank.

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Agricultura de precisão, resposta às necessidades de uma dieta variada

Para o especialista, agricultura de precisão ganhará grande fôlego, já que permite direcionar a produção conforme a demanda. “Podemos pensar em soluções locais para necessidades locais, usando expertise local. A agricultura de precisão permite contemplar novamente a diferenciação e a diversidade e com isso podemos produzir exatamente o que queremos e com os menores impactos possíveis na paisagem”, disse.

Portanto, a atividade rural precisará de financiamentos para se desenvolver, afirma. “Sem financiamentos, poucos terão acesso à tecnologias de ponta. Os fertilizantes são muito mais precisos. E sistemas robotizados permitem determinar a dieta ideal para cada animal. Mas toda essa inovação requer dinheiro. Então há o perigo de que só os grandes negócios rurais sobrevivam, ou os que tiverem dinheiro para investir”, avalia.

Além disso, o setor rural mudou em funções das próprias condições naturais, sociais e econômicas, com o advento das mudanças climáticas globais, o aumento da urbanização e dos novos comportamentos. “O que funcionava há 20 ou 30 anos, hoje não representa mais uma solução porque a sociedade possui diferentes necessidades”, afirma.

 

Gestão da demanda

Firbank lembrou que a produção de alimentos em 2009 triplicou em relação à da década de 1960 e que, portanto, o mundo não tem problema de produção e sim de distribuição de alimento. Apesar disso, ainda há muitas necessidades não supridas pela agricultura e, mesmo assim, estamos ultrapassando os limites da capacidade de suporte dos sistemas terrestres.

“Ainda temos uma questão não resolvida, sobre se poderemos viver em segurança operando apenas nos mesmos espaços terrestres que já utilizamos e se isso será capaz de atender a todos de forma justa. Isso não tem a ver só com a agricultura, mas também com indústrias e outros setores e com a forma como a riqueza é distribuída no planeta”, disse.

Para o especialista, a agricultura do futuro deverá enfrentar o desafio da gestão da demanda do alimento, reduzindo as perdas no campo, no transporte e no armazenamento. Além disso, a oferta do alimento de qualidade a preços acessíveis é uma questão de decisão política. “Na Inglaterra, temos os bancos de alimentos que os mercados e distribuidores colocam à disposição do público quando o produto está perto do vencimento”, conta.

A segurança alimentar envolverá também o fortalecimento das cadeias produtivas, de forma que sejam capazes de conviver com choques de produção e de preços. Mas não só isso. As políticas públicas deverão promover a alimentação saudável.

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"Pessoas não conhecem mais a origem do alimento. Leite vem da caixinha e carne é um pacote do supermercado", diz Firbank

“Em Leeds, no norte da Inglaterra, a expectativa de vida em locais mais pobres é cinco vezes menor em relação a lugares mais ricos e isso tem uma relação estreita com a qualidade da alimentação. Nesse caso, não se trata de acesso ao alimento, mas de educação alimentar e preocupação com o que as crianças comem”, disse.

 

Valor da terra

A disponibilidade de campos agrícolas é uma questão muito discutida na Inglaterra, pois os habitat foram destruídos ao longo do tempo e sua preservação tem sido negligenciada. “Agora, sem o financiamento da União Europeia, é provável que muito pouco restará dos habitat naturais na Inglaterra”, acredita.

As cidades inglesas estão se expandindo, explica, e o planejamento do território valoriza as terras urbanas em detrimento das rurais. “A mentalidade é que podemos comprar alimento de outros países, que são agroexportadores, como o Brasil, por exemplo. Mas ao redor do mundo, cada vez mais as terras agrícolas de qualidade estão sendo encontradas nas cidades”.

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O mercado de trabalho na área rural também é negligenciado, diz Firbank. “Falta capital humano no campo. É cada vez mais raro encontrar pessoas com habilidades na área e comprometidas com o alimento e a agricultura. Os jovens não enxergam a área agrícola como uma carreira valiosa. Um biólogo recém-formado prefere trabalhar com genética, biociências e carreiras afins, porque acha mais atraente”.

O programa N8 Agrifood e outras políticas públicas na Europa vêm tentando mudar esse quadro. “As pessoas em geral não valorizam o campo. Para elas, o leite vem da garrafa e a carne é um pacote do mercado. Estamos tentando superar isso e uma das iniciativas é o Farm Sunday, um evento anual em que centenas de fazendas abrem seus portões para o público e escolares poderem ver como é uma fazenda. No ano passado, 500 mil pessoas participaram do evento, numa população de 5 milhões”, disse.

 

Cidades mais autônomas

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Acima, Horta da FSP-USP. Abaixo, aeroporto de Berlin-Tempelhof, desativado em 2008 para horticultura comunitária e lazer

Horta Berlim - 1

Diante dos desafios, é preciso incentivar a autonomia das cidades quanto à produção do alimento, apesar de que muitas cidades não terão espaço para produzir comida para todos, avalia.  “Não falo de commodities. Mas em vez de importar tudo, devemos incentivar a produção de vegetais e frutas para consumo local. Em Leeds, não temos espaço suficiente para produzir comida para todos. Embora seja desejável, não vejo a agricultura urbana como uma solução política para os problemas de segurança alimentar”, avalia.

Porém, é possível pensar a agricultura urbana como um movimento de educação, cultura alimentar e socialização, mais do que uma via de abastecimento alimentar. “Ainda temos poucas estatísticas e parece que a agricultura urbana ainda funciona mais como um hobby ou um complemento ao alimento que as pessoas já têm. Na Universidade de Leeds, temos uma horta como parte de um projeto de pesquisa. O lugar é realmente agradável e em épocas de colheita qualquer um pode ir lá e pegar o que quiser. A área é o dobro desta sala aqui (Sala de Eventos do IEA). Mas, colocando num contexto mais amplo, será que isso seria suficiente para alimentar todas as pessoas da universidade?”, questiona Firbank.

Entre o público presente na plateia do IEA, a professora Thaís Mauad, da Faculdade de Medicina (FM) da USP, responsável pelo projeto da horta comunitária da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, e coordenadora do Grupo de Estudos em Agricultura Urbana do IEA, comentou que no Brasil as hortas urbanas têm de fato cumprido um papel social importante.

“Não se trata de prover alimento em quantidade para todos, embora muitas comunidades carentes agora tenham acesso a um alimento saudável e barato graças aos diversos projetos de hortas urbanas. De fato, as hortas comunitárias têm cumprido um papel social e educacional relevante para essas populações”, disse.

Fotos: Pixabay; Leonor Calazans; Sylvia Miguel