Debate sobre politeísmo de valores abre ciclo Em Busca do Sentido Perdido
A partir da esq., Bernardo Sorj, Alfredo Bosi e Enrique Larretta, participantes do primeiro encontro do ciclo "Em Busca do Sentido" |
“A sociedade contemporânea vive uma crise de sentido, ou, dito de outra forma, vivemos com um enorme sentimento de fragilidade subjetiva e que leva muitos a uma postura saudosista.” Essa é a motivação expressa pelo cientista político Bernardo Sorj, professor visitante do IEA, para a realização do ciclo Em Busca do Sentido Perdido.
A hipótese de Sorj é que essa crise de sentido é, na verdade, a expressão de uma transformação histórica específica: a crise da narrativa ocidental, algo localizado num tempo e num espaço específicos e originário da política e da economia.
No dia 8 de abril, o cientista político foi o expositor do seminário de abertura do ciclo. O tema foi A Ciência e o Politeísmo de Valores. Ele baseou sua exposição em texto de referência previamente analisado pelos dois comentaristas convidados: o antropólogo Enrique Larreta, diretor do Instituto de Pluralismo Cultural da Universidade Cândido Mendes, e o ensaísta e professor Alfredo Bosi, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana (FFLCH) da USP, editor da revista “Estudos Avançados” e membro da Academia Brasileiras de Letras.
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No entender de Sorj, o Ocidente perdeu parte de seu poder de impor sua visão de mundo no cenário internacional. “Em termos culturais, é uma crise de autoconfiança e de validade da narrativa que sustentou a expansão do Ocidente no mundo”.
Ele considera que a crise da cultura Ocidental tem bifurcado as sociedades democráticas em duas direções. Em setores sociais de países “que se sentem órfãos de sentidos, perdedores no processo de globalização, a orientação tem sido a de um fechamento cognitivo que se expressa, em nível político, no apoio a posturas nacionalistas e xenofóbicas ou, não raro, quando associadas a um retorno ao fundamentalismo religioso, a políticas reacionárias”.
A outra orientação (dominante no mundo acadêmico) é a de que O momento é de construção de uma cultura cosmopolita reconhecedora do valor da diversidade cultural e da relatividade de cada cultura dentro do seu universo específico.
Para a compreensão dessa crise, Sorj propõe como recorte analítico o processo de secularização: “Ele pode ser definido como a transformação cultural-institucional que levou sociedades com normas e valores que eram ditados pela igreja, com o poder político legitimado pela vontade divina, a se tornarem sociedades que sustentam a liberdade individual de pensamento e onde o poder político se legitima pela vontade popular”.
Essa passagem significou uma profunda transformação cultural, segundo ele, “com a valorização da dúvida no lugar da certeza, da curiosidade em vez do dogma, da livre escolha em detrimento da vontade de Deus, do mundano em prejuízo do transcendental, da procura individual em vez de normas religiosas válidas para todos, do ativismo no lugar da resignação, da procura da felicidade no lugar da aceitação do sofrimento, da responsabilidade pessoal em vez do destino, da realização neste mundo em substituição da promessa de felicidade depois da morte”.
Todavia, a constituição do mundo contemporâneo não foi um processo evolutivo linear, de acordo com o cientista político. “A ideia de uma história universal na qual em cada estágio da vida religiosa se avança um degrau na racionalização do mundo não se sustenta. A modernidade tem início no Renascimento, que se sustenta na redescoberta dos valores da filosofia, da arte e do ensino da tradição greco-romana. Ou seja, para ir adiante foi preciso dar um passo a trás.”
“A cultura grega definiu um preceito que viria a ser a norma da modernidade: ‘O homem é a medida de todas as coisas’ [afirmação feita pelo sofista Protágoras de Abdera no século 5 a.C.].” Para Sorj, a transferência para o indivíduo da responsabilidade de ter de definir o sentido da vida supôs incluir no panteão dos deuses um novo deus: o da liberdade subjetiva.
Quanto à formação de instituições seculares na modernidade, o cientista político destacou a diferença como isso se deu Europa e nos Estados Unidos. Naquela, a formação foi impregnada por lutas culturais que deixaram sua marca no sistema político: “A necessidade de confrontar o poder da igreja levou ao surgimento do secularismo como ideologia questionadora de dogmas, do poder da igreja – inclusive do poder econômico desta –, e ao mesmo tempo associada a uma visão agnóstica ou ateia do mundo”.
No caso dos EUA foi diferente, com os direitos naturais, inclusive o direito à felicidade, sendo afirmados em nome de uma vontade divina: “A afirmação inicial de direitos da Declaração de Independência começa com Deus e, curiosamente, esse Deus dos pais fundadores é um pouco diferente do da tradição cristã anterior, pois ele quer a felicidade das pessoas aqui e agora e afirma os direitos subjetivos individuais, ou seja, é em nome de Deus que se cria esse novo mundo”.
Sorj destacou que “gostamos de pensar a modernidade como um projeto puramente racional, mas encontramos nela também elementos mitológicos e mágicos, a exemplo do que sempre ocorreu nas religiões monoteístas, que nunca chegaram a eliminar elementos mitológicos, mágicos e animistas em suas teologias e até mesmo nas práticas dos fieis, não existindo em nenhum lugar do mundo uma prática monoteísta pura”.
Em sua opinião, a história da cultura humana não é de rompimentos, mas de acúmulo de camadas, onde a camada superior esconde, mas não elimina as camadas inferiores. “Isso significa que o processo de secularização foi radical, mas incompleto, e, de certa forma, o ideal de secularização sempre o será, não só no nível das estruturas, das práticas de vidas das pessoas, mas inclusive na organização da sociedade.”
Em corroboração dessa tese, Sorj lembra que há sociedades que se julgam seculares, mas utilizam o calendário gregoriano – que tem como referência o nascimento de Cristo – e festejam datas e definem o dia de descanso em função de crenças muito particulares, nada universais.
No entender do cientista político, o monoteísmo religioso foi, em certa medida, substituído por monoteísmos seculares, com a modernidade produzindo mitos e cultos – em particular o do progresso. “Nos séculos 19 e 20, as grandes ideologias e filosofias políticas mantiveram as estruturas discursivas e expectativas que substituíram com alternativas terrenas as promessas do outro mundo.”
Sorj considera que as semelhanças são ainda maiores nas versões mais extremas (totalitárias): “Nos regimes comunistas, por exemplo, textos foram sacralizados, autores santificados, o partido passou a ter o monopólio da verdade, como o mesmo ou maior poder que o clero tinha antes”.
“A ilusão dos monoteísmos seculares – o cientificismo, o liberalismo racionalista, o fascismo, o comunismo, o nacionalismo integrista – foi acreditar que o mundo moderno possa se organizar sob um único princípio orientador que gere um conjunto coerente de valores, sentidos e orientações para os atores sociais.”
Para Sorj, o que está em jogo no conflito monoteísmo-politeísmo não é a questão de valores específicos, mas reconhecer a necessidade de um sistema de vida, de organização de instituições, que aceite que cada um carregue sistema de valores conflitantes e que nunca será o poder político que definirá, no lugar das pessoas, a forma como cada um fará essa síntese. “Essa conflituosidade é a riqueza da vida humana. Não é o problema, é a solução.”
Ele reconhece que essa diretriz ainda não resolve o que fazer quando sistemas politeístas democratas têm de conviver com grupos que ainda procuram defender monoteísmos seculares ou religiosos e impô-los ao conjunto da população.
Sorj admite que o politeísmo moderno produz um desencantamento do mundo: “O monoteísmo dá sentido, dá força; o politeísmo produz confusão, tira-nos a referência, obriga-nos a negociar em nossa própria subjetividade com valores que são conflitantes. Isso cria um problema enorme de ação coletiva, que fica fragilizada. A ação coletiva no monoteísmo é fácil de ser identificada, pois o líder vai definir a linha. A ação coletiva no politeísmo é muito fragilizada, muito no aqui e agora: marca-se uma manifestação para amanhã e depois dela todo mundo volta para casa, para seu politeísmo, para sua diversidade de interesses e valores”.
Um dos efeitos dessa situação é um retorno saudosista, a sensação de que os tempos antigos eram melhores: “Isso não resolve muito as coisas, mas essa dificuldade não significa que certos elementos da tradição religiosa do passado não devam ser recuperados. Podem sê-lo, mas numa linguagem onde funcionem como argumentos dentro de uma visão politeísta de valores”.
Diante desse panorama de politeísmo de valores, Sorj identifica quatro áreas cujos temas e práticas devem se abrir para um diálogo intracultural e intercultural que permita o avanço em termos de ações coletivas e criações de consensos.
Uma dessas áreas é a que se refere ao papel da ciência e do mundo acadêmico. Para ele, a ciência foi desencantada pela especialização. “Nos anos 50 e 60 a ciência tinha elementos que penetravam no cotidiano das pessoas, que as encantavam. Acho que há um espaço de reencantamento da ciência e também, sobretudo, de revalorização do espaço da academia.”
Outra área que se impõe, segundo Sorj, é a ecologia, que “é hoje um espaço de diálogo intercultural, pois interessa a todos os povos, à continuidade da vida humana no planeta e coloca temas para esse novo diálogo, ainda que politeísta, mas que dá uma unidade temática dada pela realidade objetiva”.
Uma terceira área é a dos direitos humanos, “que devem ser repensados não numa perspectiva etnocêntrica ocidental, que está em crise, inclusive porque foi levada a limites de quase religiosidade e tudo passou a ser direitos humanos”.
Finalmente, Sorj identifica a área das artes como campo privilegiado de diálogo inter e intracultural porque “permite uma linguagem que não cai no racionalismo estreito do discurso filosófico tradicional, seja monoteísta ou certos tipos de politeísmo”.
Para Enrique Laretta, primeiro comentarista a apresentar suas opiniões, a ideia principal de Sorj está no título do texto em que este baseou a exposição: o politeísmo de valores seria o modo de pensamento mais adequado à modernidade democrática. “A modernidade democrática e o politeísmo de valores seriam dois conjuntos de valores de sinal fundamentalmente positivo.”
O texto base da apresentação de Sorj comenta que a posição politeísta foi retomada no campo intelectual pelo filósofo Richard Rorty, pelo papa Bento 16 e pelo sociólogo Max Weber, entre outros. Larreta considera que Rorty escreveu sobre o romantismo politeísta, que seria um fenômeno positivo. “Para Bento 16, seria negativo. Para Max Weber, segundo Sorj, seria uma categoria descritiva, sociológica.”
Larretta disse que a acusação de politeísmo tem sido constante desde o Iluminismo. A base para essa acusação remonta, segundo ele, “ao que o historiador e filósofo Jan Assman, em seu estudo fundamental ‘Moses, The Egiptian’, chama de ‘distinção mosaica’. Na verdade, historicamente, foi uma distinção egípcia, porque, como percebeu Freud, foi Akenaton, o grande reformador egípcio, quem pela primeira vez inseriu a temática do monoteísmo. Mas Assman, e concordo com ele, fala de distinção mosaica, porque mesmo que não tenhamos certeza se Moisés existiu, ele é parte da memória do Ocidente”.
“A distinção mosaica é a distinção entre a verdadeira e a falsa religião, entre muçulmanos e incrédulos, judeus e gentios, cristãos e pagãos. Poderíamos pensar que essa distinção é simplesmente a expressão religiosa do etnocentrismo, com cada povo defendendo o seu deus, mas não é o caso.”
Segundo Larretta, Assman e outros pesquisadores demonstram que as civilizações antigas possuíam técnicas de tradução para interpretar os deuses dos outros. O antropólogo considera que o termo “religião” é uma projeção da globalização ocidental, pois não é encontrado em outras tradições culturais: “Em chinês, a palavra religião foi inventada no começo do século 20. E a organização religiosa chinesa foi montada sobre a estrutura das religiões protestantes”.
O ponto fundamental levantado por Assmann, segundo Larretta, é a ideia de que as “religiões do livro” são contra as outras religiões e definem o que seja verdadeiro e o que seja falso.
O comentarista não considera que Max Weber, ao falar de politeísmo de valores, tenha utilizado uma categoria descritiva. “Uma das palavras mais comuns na obra dele é a palavra ‘trágico’. Para as pessoas que não são especialistas em ciências sociais há um autor que é muito semelhante a Weber: é Thomas Mann. A problemática de Weber está contida em ‘A Montanha Mágica’, de Mann, que apresenta uma visão trágica da vida.”
Larretta comentou que o politeísmo de valores cria uma situação de impossibilidades, “pois não é possível construir no mundo moderno um sistema axiológico, com uma hierarquia de valores, uma vez que todos os valores tem o mesmo valor. E se todos os valores tem o mesmo valor, não há mais valores”.
O antropólogo acredita que, antes do giro cultural dos anos 80 e 90 citado por Sorj em seu texto, aconteceu o giro linguístico. “E aí temos claramente três pensadores: Heidegger, Wittgenstein e Saussure. Os três tornaram a questão da linguagem central, com a ideia de que os valores são signos e, portanto, como argumenta Saussure e depois os pós-estruturalistas, não temos certeza do que é um valor. Essa seria a tragédia da modernidade.”
Para Laretta, a obra de Weber é, basicamente, uma obra entre Kant e Nietzsche. “Nietzsche e outros pensadores alertaram para a impossibilidade de um projeto de esperança baseado na racionalidade, a ideia fundamental de Kant.”
Ele citou comentário de Weber sobre teoria da ciência: “Não é uma questão apenas de alternativa entre valores, senão de uma inconciliável luta à morte, como entre Deus e o Diabo”. Isso porque a perspectiva de Weber continua a ser uma perspectiva humanista: “Ele considera a identificação com os valores uma identificação absoluta. Possivelmente essa não é a postura de Sorj”.
Para Larretta, há uma distinção entre politeísmo em sentido forte e o politeísmo no sentido fraco, com este significando simplesmente o pluralismo da cultura ocidental que acontece hoje nas modernidades democráticas.
Nesse ponto, Larretta questionou a definição de modernidade: “Bernardo fala bastante de modernidade, mas o que seria ela em contraste com a ideia de pós-modernidade? É basicamente uma questão de valor. Modernidade é aquele tipo de civilização que considera o novo como um valor. Mas no final do século 20 temos tantas coisas novas que já não se sabe se o novo é um valor, apesar de se tornar um objeto de consumo”.
Para Larretta, o giro cultural foi uma extensão complementar do giro linguístico. “Os autores são basicamente os mesmos. A ideia de pós-modernidade de Jean-François Lyotard foi construída a partir de Wittgenstein, sobre a ideia de jogo de linguagem e da impossibilidade de argumentar sobre ideias universais. As narrativas se destroem por esses motivos.”
O antropólogo observou que o texto apresentado por Sorj foi construído sobre a modernidade ocidental: “Por exemplo, o uso da noção de democracia não fica claro no texto e suponho que se refira à poliarquia, a um sistema político-democrático dos países ocidentais europeus”.
Para o comentarista, a palavra crise não deve ser um incômodo: “Baudrillard escreveu em um artigo dos anos 60 que a modernidade é a civilização da crise; a modernidade existe por que está sempre em crise como fenômeno histórico; e precisamos reconhecer que a última crise não é a mais grave”.
Segundo Laretta, a crise no século 20, sobretudo a da Segunda Guerra, sugeriu a Karl Jaspers a ideia de idade axial e a reconhecer a existência de modernidades alternativas. “Para Jaspers, é preciso revalorizar o pensamento de Confúcio, o pensamento indiano etc. e considerar que existem tradições paralelas que são a base da modernidade”.
A exemplo do primeiro comentarista, Alfredo Bosi também destacou que a hipótese central está no título do texto de Sorj, que identifica a modernidade democrática com o politeísmo de valores.
Para Bosi, o texto demonstra que monoteísmo para Sorj significa “monismo de valores, ou, propriamente, monovalência, tanto no plano cognitivo, enquanto interpretação homogênea da realidade, quanto no plano ético, como norma monolítica de comportamentos.” No contexto político, “trata-se de caracterizar algumas doutrinas e práticas democráticas modernas, desenvolvidas a partir da Revolução Gloriosa da Inglaterra, da Revolução Francesa e da independência dos Estados Unidos, para citar alguns paradigmas modernos implícitos no texto”.
No entanto, Bosi comentou que o rápido desenvolvimento da ciência experimental, a partir do século 19, também entraria como “fator desagregador dos monismos dogmáticos, que, a rigor, já haviam começado a abalar-se ao longo da Renascença Europeia”.
Para ele, teria ocorrido um duplo desencantamento, o que substituiu o mito pela razão científica e o que agora está substituindo o monismo daquela razão pela pluralidade de sentidos e valores do pós-modernismo.
Bosi destaca que, “felizmente, um dos pontos altos do politeísmo, tanto cognitivo quanto ético-político já tinha sido alcançado pelos iluministas europeus do século 18: a admissão da virtude fundamental da modernidade, que é o culto da tolerância religiosa e, por extensão, cultural”.
A aceitação da tolerância, pregada por Locke, Montesquieu e Voltaire, só tende a crescer na atualidade, segundo o comentarista, “na medida em que o conhecimento das múltiplas culturas atuais, conhecimento que é um dos trunfos do multiculturalismo, de à vida cultural contemporânea um sadio sentimento de tolerância e respeito pelo que nos parece estranho ou diferente”.
Todavia, dois riscos cognitivos e éticos ameaçam o politeísmo contemporâneo, segundo Bosi. O primeiro, de ordem epistemológica e que vem de dentro mesmo do politeísmo, “é o puro e cético relativismo sem limites, pelo qual já não haveria nenhum critério de certeza ou de erro, valendo apenas a expressão da dúvida, animada por certo horror a qualquer proposição assertiva”.
O segundo risco vem de fora e é na verdade “uma temerosa negação do próprio pluralismo e consiste no fundamentalismo contemporâneo, que não é sempre necessariamente o fundamentalismo dos outros, mas muitas vezes um fundamentalismo escondido, entranhado em nossa consciência e em nossos juízos de valor”.
Bosi lembra que o relativismo sem limites, de cunho atomizante e individualista foi chamado no campo da sociologia do conhecimento de “paradoxo de Manheim”. A ideologia estaria condicionada à classe ou ao grupo de status dos ideólogos. “O paradoxo consistiria no fato de que o próprio discurso de Karl Manheim não poderia fugir à regra geral, o que lhe tiraria a condição de valor consensual cognitivo. Esse relativismo seria o feitiço que se voltaria contra o feiticeiro. Se todas as afirmações são passíveis de dúvida, também essa proposição não pode ser admitida como absolutamente certa e segura”.
Manheim procurou libertar-se dessa malha de ferro propondo a teoria do relacionismo, que teria a seu favor a vigência de um sólido e comprovado consenso comunitário largamente estendido no espaço e no tempo, de acordo com Bosi. “Mas acho que em outro momento ele se sai melhor dessa malha, quando diz que caberia ao intelectual certo distanciamento crítico em relação à ideologia do seu grupo. Então essa virtude faria com que o intelectual duvidasse da ideologia dominante no seu próprio grupo de status e ele poderia produzir uma contraideologia.”
Na opinião de Bosi, a conferência de Sorj mostrou que o politeísmo pode gerar essa fragilidade própria do relativismo, com as consequências todas de dificuldade de coesão social, de coesão política. “Mas nós acreditamos que a democracia é assim mesmo, que um dos defeitos de sua qualidade é a produção da confusão, isto é, um primeiro momento em que as opiniões se chocam, os conflitos aparecem. Agora, daí a chegar um consenso é realmente um longo trabalho de parto.”
Quanto às ameaças apresentadas pelo fundamentalismo, Bosi disse que isso acontece na medida em que cada uma daquelas posições assumidas pelos “politeístas” se transforma em fundamento, passa a ser a verdade, que é defendida ardorosamente pelo grupo ou pelo indivíduo, e isso oblitera, cega a visão dos outros, as outras posições.
Os fundamentalismos religiosos e políticos negariam em tese a validade dos pluralismos, no entender de Bosi: “Digo em tese porque, quando analisados mais a fundo, os textos alegados pelos fundamentalistas possuem brechas de abertura ao outro. Isso acontece em textos canônicos, hinduístas, judaicos, cristãos, islâmicos. Evidentemente, tudo isso desaparece, como muito bem apontou Sorj, quando a religião passa a ser o fundamento da política. Esse abraço é fatal para ambos e para a humanidade”.
Bosi considera que essas brechas doutrinárias, laicizadas pela exigência do respeito mútuo nas éticas liberais e democráticas do Ocidente, abram espaços ainda hoje de convivência plural que as práticas autoritárias e totalitárias negaram ao longo de séculos de intolerância. “O que se espera, e talvez não seja de todo utópico, é que ainda seja possível a prática desse respeito mútuo, que relativiza os inconvenientes étnicos da crescente globalização, mas, ao mesmo tempo, atenua o dogmatismo dos renascentes fundamentalismos.”
Foto: Sandra Codo/IEA-USP