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Pelo direito dos Bororo se auto-representarem

por Flávia Dourado - publicado 14/04/2015 14:45 - última modificação 02/06/2015 14:50

Em seminário realizado no dia 8 de abril, dois nativos bororo, um dos povos indígenas sul-americanos mais estudados do mundo, substituíram os etnógrafos na tarefa de interpretar a cosmologia que embasa sua cultura.

No livro "Tristes Trópicos" (1955), Claude Lévi-Strauss conta como suas expedições etnográficas pelo Centro-Oeste brasileiro, realizadas na década de 1930, aguçaram sua vocação de etnógrafo. Num pequeno trecho, o fundador da antropologia estrutural revela o impacto que seus estudos sobre um povo indígena em particular — os Bororo — tiveram na sua formação como pesquisador: Um ano depois da visita aos Bororo, todas as condições para fazer de mim um etnógrafo estavam satisfeitas.

Seguindo os passos de Lévi-Strauss, inúmeros antropólogos se debruçaram sobre o universo dos Bororo, um dos povos indígenas sul-americanos mais estudados do mundo. A perspectiva de investigação adotada por estes pesquisadores ao longo das últimas décadas deu lugar a um novo olhar metodológico sobre Bororo no seminário Cosmologia Bororo: A Cultura Indígena entre Tradição e Mudança, realizado pelo IEA no dia 8 de abril.

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Apresentação

No encontro, Kleber Meritororeu e Félix Adugoenau, ambos bororo, falaram sobre a visão cosmológica do seu povo — a complexa organização social e a língua, os valores e os costumes, a religião e os ritos. As exposições dos dois indígenas colocou em prática o que o antropólogo Massimo Canevacci, coordenador do seminário, define como auto-representação — estratégia metodológica que rompe a dicotomia entre sujeito (aquele que representa) e objeto (aquele que é representado), tida como um dos pilares da etnografia, dando voz aos nativos e promovendo uma relação mais dialógica entre que estuda e quem é estudado.

Para Canevacci, que é professor visitante do IEA, trata-se de uma grande revolução na área da antropologia cultural. "A ideia de que a antropologia deve apenas interpretar as outras culturas está enfraquecendo e dando lugar à ideia de que os indivíduos estudados têm direito de se auto-representarem e falarem sobre a própria cultura", disse. "Só Kleber e Felix podem dizer se a cultura bororo deve se manter ou se transformar e em que medida", completou.

DESCONSTRUINDO ESTEREÓTIPOS

Meritororeu e Adugoenau fogem dos estereótipos de índio que povoam o imaginário popular. Defendem a preservação da cultura bororo e lutam pelos direitos de seu povo, mas não se mantém isolados do mundo ocidental, dito "civilizado".

Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Católica Dom Bosco, Meritororeu é professor da Escola Estadual Indígena "Sagrado Coração de Jesus", da Aldeia Meruri, no município General Carneiro (MT). Foi seminarista da Congregação Salesiana de Dom Bosco por dez anos e quase se tornou padre. Mudou de ideia quando leu "Tristes Trópicos" e percebeu que seu povo havia sido dizimado e sua cultura estava morrendo. "Me dei conta de que eu me preparava para pregar uma religião que, no passado, pregou contra meu povo."

Meritororeu refere-se à Igreja Católica como um todo, mas particularmente aos Salesianos. A congregação se estabeleceu entre os Bororo nos primeiros anos do século 20, quando fundaram a Colônia do Sagrado Coração e deram início catequese dos índios, disparando o que muitos antropólogos consideram um processo de aculturação e desrespeito sistemáticos aos direitos indígenas.

Hoje, o ex-seminarista dedica-se à educação indígena voltada a preservação da herança cultural bororo. Na sua exposição, ilustrada por uma série de fotografias, apresentou aspectos marcantes da cosmologia bororo do nascimento à morte do índio, com destaque para dois momentos: o da iniciação dos pré-adolescentes, quando os meninos deixam de ser crianças se juntam aos homens no dever de servir a comunidade; e o funeral, ritual mais importante, complexo e longo dos Bororo, que envolve a espera pela decomposição natural do corpo para que os tecidos do crânio sejam retirados e o osso possa, então, ser ornado para a cerimônia final.

O biólogo relatou o encontro que teve com Lévi-Strauss, na Itália, quando este o perguntou se o funeral bororo matinha os mesmos rituais que ele havia testemunhado em 1935. "Respondi: 'continuam exatamente do jeito que você viu'", contou, frisando que o antropólogo chegou a profetizar que, dado o ritmo de aculturação e dizimação dos índios, as cerimônias do funeral despareceriam ainda no século 20. "Hoje tenho convicção de que não podemos perder essa raiz", afirmou Meritororeu.

EDUCAÇÃO COSMOLÓGICA

A trajetória de Adugoenau também foge de estereótipos. Para defender a cultura e os direitos de seu povo, aproximou-se do universo não Bororo e abriu-se para o diálogo. Falante de quatro línguas — bororo, português, espanhol e italiano —,  ele transita entre o mundo indígena e o não indígena, onde apresenta-se como Félix Rondon, e mantém um blog no qual aborda aspectos da cosmologia bororo. "Mas na aldeia sou Félix Adugoenau, nome que remete a meu clã e à minha linhagem", faz questão de frisar. "Entrar em contato com o mundo ocidental, do homem branco, não faz do índio menos índio. Usar relógio e celular não faz com que eu deixe de ser Bororo."

A saída que encontrou para preservar a cultura Bororo é a mesma apontada para tantos problemas de nossa sociedade: a educação. Graduado em Ciências Matemática e da Natureza pela Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), é coordenador da Coordenadoria de Educação Escolar Indígena (CEI) da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (Seduc/MT) e atualmente prepara-se para defender, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), sua dissertação de mestrado sobre educação escolar indígena.

Adugoenau dedica-se a resgatar a essência da orientação filosófica bororo. Para isso, defende o estabelecimento da educação indígena cosmológica no lugar da educação intercultural, à qual os antropólogos são tradicionalmente favoráveis, e da educação salesiana, pois ambas seriam pensadas a partir da ótica europeia.

"A filosofia da cosmologia bororo conflita com a educação indígena tal como é feita: a carga horária, a matriz curricular e a organização das turmas. Trata-se de uma colonização velada. É preciso descolonizar as escolas e a própria mente do professor", advertiu.

De acordo com o mestrando, a educação cosmológica deve refletir a filosofia Bororo, diferentemente do que vem sendo feito nas escolas indígenas. "A educação intercultural mostra uma cultura que é melhor que a minha", queixou-se. "Já que não consigo combater os salesianos, vou me fortalecer. Trata-se de um processo que não tem como parar. É preciso entrar nesse corpo em movimento e tomar a direção para causar menos danos."

Seu esforço é por implementar uma educação pensada a partir da organização espacial e espiritual dos Bororo. "O que acontece na sala de aula tem que ter vínculo com a vida na aldeia, com as metades exogâmicas". Ele faz referência à distribuição circular das casas e à divisão da aldeia em duas partes — Ecerea e Tugoarege, cada uma subdividida em quatro clãs. "Não estamos trabalhando isso nas escolas."

RELAÇÕES DE GÊNERO

Através de um esquema gráfico, Adugoenau mostrou como é organizada uma aldeia ideal: "há uma simetria das metades exogâmicas, onde as linhas se cruzam e os espíritos e a terra se fundem". Conforme explicou, essa divisão é uma expressão da cosmologia bororo, segundo a qual para tudo há uma parte correspondente. De um lado, estariam os Ecerae, termo que remete à ideia de "gente fácil de morrer, que precisa de proteção", de outro, os Tugoarege, tidos como "gente que tem o dom da flecha, em outras palavras, gente que mata".

A ideia das metades que se completam explica, também, as relações de gênero entre os Bororo, as quais frequentemente são criticadas por organização feministas e voltadas para a defesa dos direitos humanos. Tal como há uma separação entre Ecerae e Tugoarege, mundo dos mortos e mundos dos vivos, haveria uma separação entre homens e mulheres. E um dos principais marcadores dessa diferenciação é o tabu do Arije — espírito que somente homens já iniciados podem ver, sendo proibido para crianças e mulheres.

"Homens e mulheres não estão no mesmo patamar porque vai contra a natureza. Na nossa cosmologia, a mulher tem uma especificidade. Ela conecta o mundo físico com o mundo espiritual. O homem é como o elemento que completa esse elo entre os dois mundos. A partir dessa fusão, forma-se uma amálgama e a mulher gera outro universo dentro do próprio corpo."

Adugoenau atribui o olhar crítico sobre essa divisão de gênero à incapacidade do "homem branco" compreender a essência do que é imedi e aredi — palavras traduzidas, respectivamente, como homem e mulher. De acordo com ele, trata-se de uma tradução insuficiente e inexata. "Aredi não é mulher, mas dona da semente. É como uma árvore."

Segundo a etnógrafa Flávia Kremer, debatedora do seminário, essa diferenciação entre homem e mulher é crucial para a preservação da cultura bororo. "Fui para a aldeia para estudar mudança e continuidade cultural entre os Bororo, mas vi que a cultura está viva justamente por causa das divisões de gênero", explicou Kremer, que investigou o tema ao longo do mestrado, defendido na London School of Economics and Political Science (LSE), Reino Unido. A etnógrafa deu continuidade às pesquisas sobre o povo indígena no doutorado em antropologia social e mídias visuais na University of Manchester, também no Reino Unido, onde explorou as interações entre gênero, etnografia e tecnologias digitais na cultura bororo.

Além de Kremer, foram debatedoras do encontro a antropóloga Sylvia Novaes, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e grande conhecedora da cultura bororo, tendo desenvolvido diversos estudos etnográficos sobre o povo indígena; e a também antropóloga Betty Mindlin, que há anos dedica-se a projetos de apoio a povos indígenas da Amazônia e de outras regiões do país.