Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / A era do amor

A era do amor

por Flávia Dourado - publicado 11/07/2014 16:25 - última modificação 28/09/2015 23:58

Em seminário realizado pelo IEA, o sociólogo Danilo Martucelli apresentou suas ideias sobre a centralidade da experiência amorosa na sociedade contemporânea.

“O amor se converteu no novo horizonte de sentido dos indivíduos contemporâneos”. Essa é a ideia central defendida por Danilo Martuccelli, professor da Faculté des Sciences Humaines e Sociales da Université Paris Descartes. De acordo com o sociólogo peruano, radicado na França, no estágio atual da modernidade, marcado pela queda das grandes ideologias, pelo processo de secularização e pela carência de referenciais comuns, é a experiência amorosa que vem preenchendo o vazio deixado pela religião, pela pátria e pelo trabalho – valores que perderam sua pregnância significativa e já não respondem, sozinhos, aos anseios do homem moderno.

Martuccelli lança um olhar inusitado e muito particular sobre a aclamada “crise de sentido” – questão central nas ciências sociais, frequentemente associada às transformações inerentes à pós-modernidade ou modernidade tardia, como preferem alguns autores. Segundo o pesquisador, diante do enfraquecimento dos três pilares que davam sustentação à sociedade – o cidadão, o burguês e o crente, ligados, respectivamente, à pátria, ao trabalho e à religião –, emerge um novo pilar, centrado na figura do amante.

“Certamente, o amor não elimina totalmente a questão da crise de sentido ocasionada pela secularização, mas suscita uma profunda transformação na medida em que a torna mais carnal, episódica e, acima de tudo, mais biográfica e individual”, ponderou, destacando que o maior desafio imposto pelo novo cenário é o processo de singularização da relação do indivíduo com o espaço público: “A partir desse processo entendemos a especificidade da crise de sentido no nosso tempo - uma crise que vem da tensão entre o poder do amor para dar sentido às vidas individuais e sua dificuldade em dar sentido à vida coletiva”.

Relacionado

Vídeos

Notícias

Fotos

Texto

Baseada em pesquisas empíricas conduzidas na França e na América Latina ao longo dos últimos dez anos, a abordagem do pesquisador destoa das perspectivas mais comuns entre os sociólogos, que privilegiam aspectos negativos da crise de sentido e apontam para um mal-estar generalizado, vinculado ao niilismo e ao narcisismo. “Para compreender essa crise nas sociedades modernas, é preciso ir mais além de certas constatações críticas ou nostálgicas”, advertiu o peruano.

No dia 29 de maio, Martuccelli apresentou suas ideias sobre a centralidade do amor no segundo seminário do ciclo Em Busca do Sentido Perdido: Diálogos Interdisciplinares sobre Ciência e Transcendência. Coordenado por Bernardo Sorj, professor visitante do IEA, o encontro teve como tema El Individuo y el Espacio Públicocontou com a participação das debatedoras Maria Alice Rezende de Carvalho, professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, e Vera da Silva Telles, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

IDEAL E PROMESSA

Segundo Martuccelli, o amor assumiu esse lugar central no processo de produção de sentido dos indivíduos ao passar a desempenhar dois papeis cruciais: o de ideal e o de promessa de felicidade. Ideal, explicou o pesquisador, porque se tornou o principal valor pelo qual as pessoas estão dispostas – ou pelo menos se dizem dispostas – a abnegar-se de si mesmas e morrer: “Se antes se morria por Deus, pela pátria e pelos ideais coletivos da revolução, agora se morre por amor; não no sentido romântico de Romeu e Julieta, mas de um sacrifício diário pelo ser amado. É em nome desse ideal, traduzido nas obrigações parentais e conjugais, que muitos homens e mulheres se levantam todos os dias e encontram força para ir trabalhar”.

Da mesma forma, afirmou, a promessa de felicidade dos indivíduos é depositada na experiência amorosa, tida como elemento imprescindível para se ter uma vida plena. “Na ausência de amor, a vida cotidiana se torna insuportável; e o interesse no trabalho, a ambição, o poder e a busca de riqueza perdem o sentido”, disse.

Para reforçar a ideia, o sociólogo citou um estudo sobre a relação entre riqueza econômica e felicidade pessoal, segundo o qual o aumento da renda deixa de levar ao aumento da felicidade quando o Produto Interno Bruto (PIB) per capta ultrapassa a faixa dos U$ 15 mil por ano. “A partir desse limiar de rendimento, as aspirações individuais tendem a se mover em direção a valores espirituais e pós-materialistas, ligados à afetividade”, explicou.

Martuccelli mencionou, ainda, dados sobre a correlação entre fatores de bem-estar e felicidade apresentados por Tim Jackson no livro “Prosperidade sem Crescimento”. De acordo com os números apontados, 47% das pessoas consideram que o principal fator para ser feliz é ter relacionamentos satisfatórios na esfera do casamento e da família; seguido da saúde, com 24%. “O que frustra o nossos contemporâneos não é a ausência de valores, mas a dificuldade em experimentar a promessa de felicidade que, para alguns, só o amor é capaz de realizar”, arrematou.

A RELIGIÃO NA ERA DO AMOR

O fenômeno da consolidação do amor como ideal e promessa da felicidade, bem como a emergência do amante como novo horizonte de sentido, derivam de um movimento de singularização das três figuras históricas que marcaram a modernidade – o crente, o cidadão e o burguês. Conforme ressaltou Martuccelli, embora se mantenham firmes, essas figuras ganham contornos cada vez mais individualizados e pouco a pouco perdem a força como suportes do sentido coletivo.

Em relação ao crente, essa tendência se revela no fortalecimento de uma espiritualidade mais aberta, que se configura fora das religiões institucionalizadas e dá origem a novos tipos de contemplação. O pesquisador explicou que “cada crente desenvolve sua própria versão da experiência religiosa e, com isso, surgem diferentes formas de sincretismo”, as quais minam o monopólio de sentido que a Igreja tradicionalmente detinha.

A individualização da religiosidade se destaca por estar estritamente ligada ao processo de secularização da sociedade; processo este que, segundo Martuccelli, só se manifesta como niilismo e descrença nos países europeus, onde o cultivo da religião está em declínio. Nas outras partes do mundo, ressaltou o peruano, observa-se um retorno ao sagrado, que aparece tanto na forma de re-institucionalização e vivência espiritual como demonstram a multiplicação de fiéis e a expansão das igrejas evangélicas na América Latina , quanto na forma de uma busca espiritual personalizada, que suscita práticas religiosas de caráter mais individual que coletivo.

“Não estamos diante do eclipse de um significado amplo e compartilhado do mundo (o famoso ‘Deus morreu’), mas de um ideal de pregnância de sentido – o amor –, que, ativo como a crença, induz a inúmeras experiências, múltiplas e mais ou menos reversíveis, de significância individual”, observou.

DECLÍNIO DO CIDADANIA E DO TRABALHO

A individualização também vem corroendo os valores patrióticos que alçaram a figura do cidadão a pilar da sociedade moderna. Progressivamente, o foco vem se deslocando da esfera pública para a esfera privada, isto é, do projeto coletivo assentado nas utopias que costumavam dar sentido ao mundo, para o projeto pessoal voltado para o cotidiano familiar. Conforme apontou Martuccelli, os ideais políticos, expressos no exercício da cidadania e na militância, perderam a força e já não são mais capazes de dar sustentação ao mundo contemporâneo.

Para explicar essa cisão entre vida pública e vida privada, o pesquisador recorreu às ideias do pensador político Alex de Tocqueville, para quem o individualismo nasce do desinteresse dos indivíduos pela “grande sociedade” e pela crescente valorização da “pequena sociedade”, entendida como o universo dos negócios, das empresas, da família e dos amigos.

Segundo Martuccelli, trata-se do conflito entre o burguês, centrado no ideal do trabalho, e o cidadão, centrado no ideal da república: “Enquanto a virtude republicana, reatualizada pela Revolução Francesa, exigia a participação na vida da cidade e, caso necessário, dar a vida pela pátria, a igualdade e o individualismo valorizavam o envolvimento dos indivíduos em suas próprias vidas e em seus assuntos econômicos.”

No entanto, advertiu, a emergência do amor como grande ideal dá novos contornos ao conflito entre cidadão e burguês ao colocar em campo um terceiro jogador - o amante: “A felicidade própria do individualismo contemporâneo se difere da do individualismo do passado, pois no antigo havia uma tensão entre a felicidade coletiva e o interesse pessoal, enquanto no atual há uma tensão entre os interesses coletivos e a felicidade pessoal.”

Isso deve-se, de acordo com ele, à singularização do ideal do trabalho. Antes dotado de um sentido coletivo – ligado à vocação profissional, à virtude do trabalhador e à consciência de classe –, este ideal reduz-se agora a uma dimensão ética e a um suporte de sustentação material. “Lentamente o trabalho começa a ser questionado em sua função de sentido da existência, como ilustram, por exemplo, as críticas ao vício no trabalho ou as políticas públicas que visam a um melhor equilíbrio entre vida profissional e a vida familiar”, assinalou.

DESAFIOS

A emergência do amor como novo foco de sentido, associada ao enfraquecimento das três figuras históricas que balizaram a modernidade, implica dois grandes desafios para a sociedade contemporânea. O primeiro advém da tensão entre a esfera privada e a esfera pública, que surge como efeito colateral da vivência singular da experiência amorosa, mais centrada na felicidade pessoal que na coletiva.

De acordo com Martuccelli, essa tensão fica mais clara quando se faz uma distinção entre o amor parental e o amor conjugal, visto que a dinâmica desses dois tipos de afetividade são muito diferentes. “Enquanto o primeiro constrói-se em torno de um elemento de abnegação e desprendimento que o aproxima de um referente de sentido da vida coletiva, o segundo é marcado pela indiferença em relação à coletividade, apesar dos esforços para institucionalizá-lo socialmente na forma do matrimônio”, afirmou o sociólogo, destacando que o amor apaixonado, erótico e carnal dos cônjuges, carente do altruísmo moral presente na relação entre pais e filhos, não se deixa guiar por convenções sociais.

Assim, o amor que nasce na relação entre os amantes - uma relação exclusiva e alheia às demandas da sociedade -, surge como um projeto pessoal e não se converte, assim, em ideal coletivo, conforme ressaltou Martuccelli. Para o sociólogo, diferentemente da pátria, do trabalho e da religião, o amor não se converteu na base sobre a qual os indivíduos questionam ou sustentam sua lealdade ao coletivo. “Os amantes não querem mudar o mundo; se contentam em se distanciar dele”, arrematou.

O segundo desafio surge da dificuldade de os indivíduos lidarem com a finitude do amor e da própria pessoa amada e, consequente, com a fragilidade da felicidade proporcionada pela experiência amorosa. Diante disso, advertiu Martuccelli, constrói-se uma sociedade assombrada pelo temor da catástrofe: “O sentido que o amor dá às nossas vidas é inseparável do reconhecimento e do medo da vulnerabilidade em um mundo no qual todos sabem que o amor é duplamente mortal: como sentimento e pela mortalidade do ser querido.”

RELEITURA E CONTRAPONTO

Ao comentar as ideias de Martuccelli, Carvalho se propôs a fazer uma releitura das ideias do peruano. De acordo com a debatedora, a questão do amor não deve ser entendida de forma literal, mas como uma estratégia metodológica - ou, mais precisamente, como um operador analítico - para abordar a tensão entre o singular e comum, muito presente ao longo obra do sociólogo.

A professora da PUC destacou que o avanço da bandeira da igualdade de direitos deve ser trazida à tona para pensar o problema da tensão entre o privado e o público. Para exemplificar a passagem individual para o coletivo no âmbito do direito, ela mencionou o caso da Lei Maria Penha, que tipifica a violência doméstica contra a mulher. “Essa personagem singular levou à instituição de um direito positivado que demonstra a transição do indivíduo para o cidadão”, explicou.

Já Telles fez um contraponto à exposição de Martuccelli ao afirmar que o foco de sentido da sociedade contemporânea está mais próximo do “amor de si” que do amor pelo outro. De acordo com ela, os indivíduos são mobilizados pelo “mito da performância”, isto é, "pela celebração do ego e do empreendedorismo de si" num mundo marcado pelo consumismo e pela competição, que se traduz na persecução do sucesso na vida profissional, familiar e amorosa.

Para a professora da FFLCH, o repertório da “crise de sentidos” não é capaz de descrever a contemporaneidade, uma vez que traz implícito a ideia de que alguma ordem de valor foi colocada em cheque na passagem do século 19 para o 20. "Esse vocabulário ainda serve para abordar uma crise posta no século 21, quando há uma pluralidade de focos de sentido?”, indagou.

Como alternativa ao diagnóstico da crise de sentidos suscitada pela vivência do amor, como apontado por Martuccelli, Telles sugeriu o de contra-condutas, nos termos do filósofo francês Michel Foucault. “As contra-condutas não se referem a ações de resistência ou revolta, mas a novas formas de ativismo e mobilização coletiva que recusam o empreendedorismo, o consumismo e a competitividade predatória. Não se trata de otimismo ingênuo, mas de reconhecer que o mundo tem atalhos, sem garantia de virtude política”, concluiu.