A governança da internet em questão
Os impactos das tecnologias de informação e comunicação em todas as esferas da sociedade, a gigantesca quantidade de dados coletados, armazenados e em tráfego constante, o poder adquirido pelas grandes empresas de tecnologia digital, a violação de privacidade, a ação criminosa de hackers contra empresas e instituições e mesmo a difusão de desinformação e fake news pelas redes sociais acentuam a urgência da definição de modos de regulação da Internet, sem desvirtuar os princípios de sua criação e sua capacidade de contribuir com a melhoria da vida de todos.
A questão foi debatida exaustivamente no webinar Os Desafios da Governança da Internet, no dia 16 de novembro, organizado pela Cátedra Oscar Sala, parceria do IEA com o NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), braço executivo do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil).
A primeira parte do evento teve exposição do matemático americano Vint Cerf, um dos nomes emblemáticos dos projetos percursores e do desenvolvimento da internet. Criador (com Robert Kahn) do protocolo TCP/IP, ele é hoje vice-presidente do Google, onde atua como chefe evangelista da internet.
Em sua fala de introdução ao tema do webinar, Luiz Fernando Martins Castro, do NIC.br, moderador do encontro, disse não haver regras precisas que deem corpo à internet, mas decisões e protocolos bilaterais que proporcionam a existência da rede, que, “para funcionar bem, precisa de regras que assegurem sua interoperabilidade, estabilidade e resiliência”.
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Castro ponderou que não é correto imaginar que haja uma “autoridade central” gerenciadora da internet. “A governança pode ser compreendida como um conjunto de atividades realizadas por uma teia de agentes privados e públicos, nacionais e internacionais, que gerenciam e coordenam recursos técnicos, protocolos, processos, conteúdos, aplicativos e sistemas sobre os quais a rede está edificada.”
Nas duas primeiras décadas de funcionamento da internet comercial, a preocupação principal de técnicos e pesquisadores era como a engenharia garantiria a estabilidade da rede, afirmou. “Agora a preocupação expandiu-se para questões de ordem política e social e àquelas relacionadas com a vida cotidiana dos usuários.”
Ao apresentar Cerf, Castro destacou que a trajetória do matemático se confunde com a história da internet, citando algumas de suas principais contribuições para o desenvolvimento da rede, como a cocriação do TCP/IP, a fundação da Internet Society e a atuação como presidente do Conselho do Icann (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers).
Cerf dividiu sua exposição em dos temas: governança técnica e políticas de governança da internet. No que se refere à governança técnica, falou especificamente sobre a evolução do processo nos Estados Unidos, desde a Arpanet. “Essa é a história americana e há várias outras histórias de cada país, de cada domínio.”
Primórdios
O TCP/IP foi especificado por ele e Robert Kahn no anos 70, quando ambos trabalhavam no Departamento de Defesa do governo americano, onde procuravam entender o projeto de pesquisa avançada Arpanet, percursor da internet, relatou. "Depois esse trabalho evoluiu para uma integração de sistemas móveis por rádio, um pacote de sistemas para satélites e a Arpanet, que era o sistema fixo."
“As três redes formavam o centro da internet e a interação entre as elas foi apresentada formalmente em 1977.” O trabalho prosseguiu para a implementação dos protocolos da melhor maneira possível e, em janeiro de 1983, "foi determinado que todos os computadores e redes que rodavam esses protocolos começassem a operar”.
Ele lembrou que já em 1979 a equipe Inter Control Center Communications Protocol (ICCP), dedicado ao controle da configuração da internet. O ICCP tornou-se depois o Architecture Board, que que deu origem a duas forças-tarefas existentes até hoje: a ITF, responsável pela padronização dos protocolos, e a IRTF, encarregada pela disseminação de novas ideias.
"Além disso, criamos outros grupos responsáveis pela governança técnica, entre os quais o grupo de servidores de rede, hoje com 12 participantes. O papel deles nada mais é do que publicar a raiz dos sistemas de domínio principais, como net.com, net.org e outros de ponta." Com a entrada de provedores de internet, foi preciso criar registros para eles, disse.
Em paralelo a esse processo, em 1988, foi criada uma organização privada para atribuir nomes e gerenciar domínios prioritários, além de alocar IPs para registros de internet locais, afirmou Cerf. Trata-se da Iana (Internet Assigned Numbers Authority).
“Em 1992, ficou claro que era preciso obter recursos para gerir as forças tarefas, os endereços IP e os nomes de domínios e suas alocações. Assim, criamos a Internet Society.”
O Departamento de Energia e o Information Systems Security Officer (Isso) também participaram dessa estrutura de governança, segundo Cerf. "No governo, foi criado o Comitê de Rede Federal, vinculado a diversos organismos, entre os quais o Departamentos de Defesa, o Departamento de Energia e a Nasa."
Em meados da década de 90, essa estrutura evoluiu para a atribuição da responsabilidade sobre registros de nomes e números ao setor privado. Segundo Cerf, a criação da Icann, uma organização internacional independente, em 1998, foi articulada pelo Departamento de Telecomunicações e pelas agências nacionais de informação. Em 2016, a responsabilidade pelo registro de nomes e números foi integralmente repassada à Icann.
Políticas multissetoriais
Quanto à política de governança, Cerf afirmou que ela engloba uma série de organizações que colaboram entre si. “A Icann criou e adotou esse modelo multissetorial para o desenvolvimento das políticas.” Ele citou o CGI.br como exemplo de instituição bem sucedida nessa forma de atuação, por envolver a comunidade técnica, o governo, a sociedade civil e o setor privado. “Na prática, o CGI.br é um desenvolvedor de políticas multissetoriais.”
“A governança da internet cobre não apenas o lado técnico, mas também o outro lado da moeda, já que ela é uma plataforma amplamente neutra em relação a seus temas. Isso se aplica também a outras infraestruturas, como o sistema de transporte, de energia elétrica, sistemas de distribuição e telecomunicações. Todos são, de certa forma, neutros em sua infraestrutura e, portanto, podem ser usados e abusados.”
Segundo ele, o fato de a internet não reconhecer limites internacionais torna muito difícil lidar com os abusos. “Algumas pessoas podem não concordar com isso e dizer que os sistemas de domínio reconhecem fronteiras nacionais. No entanto, a estrutura de domínios não é específica a países por desenho, por concepção.”
Abusos podem ter origem num país e produzir vítimas em outro, e as jurisdições nacionais acabam criando problemas para aplicar restrições, disse, acrescentando que há ainda as variações sociais, culturais e jurídicas, do que é permitido ou não, de um país para outro.
World Wide Web
A partir do início dos anos 90, com a comercialização da web por empresas de comunicação, abriu-se um espaço muito mais vasto de aplicações da internet e um dos meios principais pelo qual a estrutura da internet é usada e abusada, disse. “Por isso há uma organização voltada ao lado técnico, o Consórcio da World Wide Web, que trabalha com os protocolos para web, em paralelo com o trabalho da ITF na camada abaixo da estrutura da internet.”
Outras iniciativas institucionais citadas por Cerf foram a realização pela ONU da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação em 2003 e 2005 e, a partir de 2006, do Internet Governance Forum (IGF), “criado porque as pessoas não estavam muito certas de como a internet poderia ser apropriada e utilizada, e esse debate continua até hoje.”
Para ele, está claro que, em função dos conflitos transjurisdicionais, para conseguir qualquer efeito de guarda e proteção de dados na internet “teremos que chegar a algumas conclusões nas bases nacionais e internacionais, sejam elas bilaterais ou multilaterais.”
“Em 2018, a Comissão Global para a Estabilidade do Ciberespaço [GCSC, na sigla em inglês] publicou uma série de normas não obrigatórias que podem orientar a elaboração de futuros tratados. A primeira sugestão da comissão foi sobre o núcleo da internet: capacidades de fibra, roteadores, rádios ligados aos dispositivos moveis do sistema, servidores de wifi, de domínios de nome, firewalls. tudo que faz parte da estrutura básica, sugerindo que as bases globais se estruturem para lidar com esse reino mais público."
Segundo Cerf, a GCSC sugeriu essa norma porque "estamos nos tornando cada vez mais independentes dentro do sistema da internet devido à grande quantidade de atividades econômicas e de acesso à informação". Tal estrutura não pode ser tratada de forma tão livre, afirmou. "A recomendação é que a estrutura e o núcleo público sejam protegidos para evitar ataques a instituições, levando em conta aquilo que é aceitável socialmente.”
Para Cerf, é preciso admitir que a estrutura é vulnerável e que os programadores não conseguem evitar erros. “Eles terão de pensar melhor sobre os bugs.” No âmbito da pesquisa, ele considera que é preciso desenvolver ambientes de programação que exponham mais cedo os bugs, de preferência que o próprio software os preveja logo.
Política de governança
Do ponto de vista da política de governança, “precisamos trabalhar mais do que fizemos e determinar se pode haver normas e tratados a serem negociados, para que abusadores sejam presos. Com esse fim, a cooperação precisa ultrapassar fronteiras, como no caso da Convenção de Budapeste [Convenção do Conselho da Europa contra a Criminalidade Cibernética], de dezembro de 2019”.
“É preciso chegar a um acordo comum sobre o que as pessoas esperam do ambiente online e sobre até que ponto concordamos que a internet tem uma capacidade positiva e poderosa para beneficiar os usuários.”
Outra diretriz política é garantir o acesso de todos à internet a baixo custo, de maneira segura e sustentável e com proteção à privacidade: “Conseguir isso depende da combinação de desenvolvimento de softwares, política e fiscalização de políticas.”
No debate que se seguiu, Augusto César Gadelha Vieira, diretor do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), perguntou a Cerf se não seria o caso de o mundo chegar a um acordo em relação à governança e como isso seria possível num cenário em que o Estado controla os indivíduos e as empresas tem uma presença tão forte na internet.Seria ótimo se fosse possível usar a tecnologia para evitar o abuso, respondeu Cerf. “Já utilizamos criptografia e autenticações em duas etapas, por exemplo, mas não são uma solução para tudo. No caso dos bugs, os programadores têm de ter o peso moral sobre os ombros de não cometer erros e corrigi-los quando detectados.”
Para ele, é preciso que as pessoas que abusam saibam que ser forem pegas haverá consequências; mas há a questão de o cumprimento das leis ser fiscalizado. A ética é parte da solução, segundo Cerf. “Um grande acordo na sociedade sobre um conceito moral comum pode ter alguma influência."
Soberania digital
É necessário discutir a questão da soberania digital, afirmou. “A ideia é transmitir a mesma decisão que a Paz de Vestfália fez em 1648 [no fim da Guerra dos 30 Anos], de que havia uma autoridade suprema dentro do território." Ele citou o exemplo da lei de proteção de dados da União Europeia, referência para a adoção de normas similares no resto do mundo.
No caso dos problemas amplificados com as redes sociais (informação incorretas, fake news, rumores), Cerf disse que é muito difícil para um algoritmo determinar se algo é verdade: “É uma solução improvável para esse problema”. Na sua opinião, a culpa é do "loop de feedback inserido nas redes sociais", o qual premia comportamentos extremos, "porque o que eles buscam é atenção”.
“Essa é a razão de precisarmos de antropólogos, psicólogos, e sociólogos para nos ajudar nessas dinâmicas das redes sociais e encontrar uma maneira de nos contrapormos a elas.”
Para Liane Margarida Rockenbach Tarouco, da UFRGS, o problema não tem a ver com bugs criados por programadores e outros aspectos técnicos, “mas com quem adquire grande poder econômico e militar e quer dominar o mundo”. Ela se considera pessimista em relação “à ideia de tornar o mundo um lugar melhor apenas com a governança da internet”.
Big techs
Liane quis saber como Cerf vê uma possível solução para controlar grandes empresas, “que não são reguladores, mas definem suas próprias regras, favorecendo alguns e outros não”.
Algo que pode ajudar nesse sentido é maior transparência das operações das grandes empresas, sobre o que é feito e como é feito, segundo Cerf. "No Google, tentamos não dizer de forma detalhada como é o algoritmo pela simples questão que se o fizermos as pessoas usariam isso para reestruturar o sistema. A intenção de nossos algoritmos é apresentar qual é a informação mais útil para determinada busca. Procuramos incluir fontes de qualidade. Honestamente, não acho que haja viés na busca."
Segundo ele, o ranking dos links apresentados numa busca obedece a critérios como, por exemplo, a frequência com que um site é atualizado. “Temos um manual de 148 páginas aberto ao público, sobre como alguém deve avaliar seu site em termos de utilidade no sistema de ranking.”
É preciso criar mecanismos para combater o mau uso, com punições políticas e econômicas, a exemplo do que é feito para combater a proliferação de armas nucleares, afirmou. “Ainda não conseguimos definir os mecanismos corretos para impedir o mau uso da internet.”
Autorregulação e regulação estatal
Indagado por alguém do público online sobre a possibilidade autorregulação pelas empresas e sobre a supervisão e regulação por Estados e agências internacionais, Cerf disse que as empresas preferem a autorregulação, mas que ela não é suficiente, pelo fato de não ser uniforme.
“Isso é especialmente difícil para multinacionais como a minha e outras, já que estão lidando com 193 países, jurisdições e variações nos níveis de domínio para as diferentes autorregulações em cada um desses níveis.”
Ambas as regulações serão necessárias, de acordo com Cerf. “É preciso impedir que uma empresa se autorregule. A ameaça de outras regulações normalmente já é suficiente para que a empresa se comporte de maneira esperada. Se isso não acontecer, existe a possibilidade de impor leis. A adoção de uma nova lei, seja ela para ser cumprida ou não, é um serviço para os legisladores.”
Demi Getschko, do CGI.br, perguntou sobre o quão otimista Cerf é sobre a manutenção de uma internet única e sobre como ele vê a utilização da inteligência artificial, principalmente do aprendizado de máquina, se isso é um benefício ou uma grande ameaça para a humanidade.Cerf defendeu a unidade da internet e citou a computação na nuvem como algo muito importante que seria afetado por eventual fragmentação da rede.
“O compartilhamento de informação através das fronteiras é superimportante para empresas, cooperação científica e para implementar a computação na nuvem, uma ferramenta poderosa para oferecer às pessoas capacidade de processamento abrangente, algo essencial para pequenas empresas que estão crescendo e para que exista tráfego entre centros de dados."
Aprendizado de maquina
Disse ser preciso fazer uma distinção entre a inteligência artificial mais geral e o que tem sido implementado até o momento, o aprendizado de máquina, que é "uma habilidade mais específica, que possibilita que computadores façam coisas que antes só humanos podiam fazer, como traduzir idiomas e identificar células cancerígenas".
Entretanto, o aprendizado de máquina ainda apresenta pontos negativos, erros que não podem ser antecipados, como no caso de reconhecimento por imagens, caso haja pequenas alterações nelas, segundo Cerf.
Citou ainda o deep fake, no qual pessoas são inseridas numa situação em que nunca estiveram e dizendo coisas que não disseram. “Estamos enfrentando uma ampla gama de riscos em potencial e a população espera que os cientistas da computação resolvam esses problemas.”
Kimberly Anastacio, cientista política e doutoranda da American University, EUA, perguntou a Cerf sobre o papel da internet e dos organismos que a controlam na implementação de tecnologias apropriadas em face das das mudanças climáticas.
Para ele, a internet pode fazer parte das soluções ao permitir o compartilhamento de informações e modelos que permitam entender toda a dinâmica do aquecimento global e mitigar seus efeitos. “Dizem que a internet consome muita energia, no entanto, se fizermos o cálculo de todos os setores que consomem energia, ela não pode levar a culpa.”
Nas exposições posteriores ao debate com Cerf algumas questões voltaram a ser abordadas e novos temas foram acrescentados à discussão.Márcio Nobre Migon, coordenador do CGI.br, ressaltou o grande desafio geopolítico presente na evolução da internet. “Vemos países e organizações dentro deles, mais ou menos ligados ao poder constituído, que promovem um tráfego não desejado.”
Há margem para certo otimismo, de acordo com Migon, “pois os problemas que surgem na internet não são tão diferentes daqueles que surgem no mundo real, com todas as suas imperfeições, todos os seus desafios e toda as soluções que a engenharia humana foi capaz de produzir”.
No que se refere à autorregulação, ele destacou que ela passa pela governança corporativa e pelo papel dos acionistas no processo. A dificuldade está em saber “como é possível migrar dos interesses da governança corporativa, dos acionistas e dos stakeholders e tentar chegar numa governança da internet para fins de políticas públicas.”
Perspectiva antropológica
Vitor Blotta, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, afirmou que a rede e seus espaços, algoritmos e dispositivos têm de ser vistos na perspectiva da antropologia, “como entidades que têm participação, agência e transformam as formas de nos relacionarmos”. Para ele, é preciso pensar numa governança ecológica, que englobe o indivíduo e as entidades não humanas, “ajudando a lidar com a rede e os espaços que ela cria”.
Em sua exposição Kimberly Anastacio concordou com Blotta de que ao abordar a governança da internet não se deve centrar tanto no indivíduo. “Nos estudos de ciência e tecnologia atuais é muito comum usarmos a teoria da ator-rede, do Bruno Latour [filósofo, antropólogo e sociólogo francês], procurando entender os atores humanos e também os não humanos quando se tenta entender qualquer objeto tecnológico, qualquer interação, qualquer cadeia de ações.”
Em relação aos impactos da tecnologia na sociedade, ela considera que os protestos contra o racismo nos Estados Unidos, os algoritmos e o reconhecimento facial demonstram como “a tecnologia é muitas vezes utilizada de forma que afeta mais alguns corpos e algumas experiências humanas; parece que essas coisas têm a ver mais com a camada de conteúdo, ferramentas e plataformas que usamos, mas na verdade são afetadas pela própria arquitetura da rede”.
Legislação
Ela vê dois desafios a serem enfrentados: o regulatório e o ambiental. Em relação ao primeiro, disse que há muita regulação privada, "mas está se tornando comum legisladores e gestores públicos tentarem solucionar problemas que vão da desinformação até crimes na internet”.
“Estou pesquisando todos os projetos de lei sobre desinformação desde as eleições de 2018. Há mais de 70 deles na Câmara de Deputados. É incrível a quantidade de propostas que tentam criminalizar o compartilhamento das fake news, deixando para as empresas a decisão do que seria fake news e como identificar a pessoa que está compartilhando para ela ser submetida a um processo criminal.”
Várias coisas podem ser feitas para evitar essas “soluções desastrosas”, disse. Entre elas, relacionou capacitar parlamentares, criar mais setores envolvidos com o tema no Congresso Nacional e destrinchar os motivos que levam os legisladores a propor essas soluções.
“Não é suficiente pensar numa solução tecnológica sem pensar, por exemplo, na erosão das instituições, que gera desconfiança sobre a mídia tradicional, sobre a ciência, sobre a democracia. Confiar numa solução tecnológica é tão inocente como imaginar que não há política por trás da infraestrutura tecnológica da internet.”
Quanto ao desafio ambiental, Kimberly disse que a intersecção entre meio ambiente e governança da internet deve ser mais abordada. "Sinto que isso está acontecendo. Se pensarmos em hardware, há muito tempo se discute obsolescência programada, lixo eletrônico, infraestrutura. O mais comum é falar em tornar os centros de dados mais verdes. No caso dos cabos submarinos, é preciso fazer estudos de impactos ambientais relevantes.”
Ao comentar a exposição de Kimberly, Castro disse que a internet não pode estar sujeita a legislações que datam dos séculos 18 e 19 nem aos antigos padrões de soberania nacional presentes no direito internacional.
Na esfera legal, ele destacou os debates que ocorrem na Internet and Jurisdiction Policy Network: “Não se discute a unificação do Direito. Sabemos que as convenções criminais, por exemplo, têm um alcance bastante limitado, por conta de sua operabilidade. A rede trata mais da interoperabilidade do Direito, não de querer um Direito harmônico. A ideia é que diferentes sistemas conversem e possam colaborar em demandas sobre práticas nefastas na rede.”
Para Liane, muitos projetos de lei sobre a internet, se aprovados, “afetariam incrivelmente a economia digital, e não se pode mais falar de economia digital, pois toda economia depende da internet, que até um artesão usa”.
Pegada de carbono
Voltando ao tema internet e meio ambiente, Liane comentou que reportagem de 2015 indicava que os centros de dados eram responsáveis por emissão de CO2 similar à da indústria de aviação. “Cada busca no Google tem um custo de emissão, e são 3,5 bilhões de buscas diárias. O Google responde por 40% das emissões de CO2 relacionadas com a internet.”
Em relação ao consumo de energia, Getschko disse que pode ter emissão ou não de CO2, lembrando que a energia elétrica brasileira e majoritariamente produzida por fontes limpas, sobretudo usinas hidroelétricas. “Não há como evitar o gasto de energia. Mais importante do que economizar energia é usar energia limpa.”
Liane também lembrou que em 2014, nos 40 anos da definição do TCP/IP, Cerf escreveu com outros dois pesquisadores o artigo “Internet Governance is Our Shared Responsability” (a governança da internet é uma responsabilidade que nós compartilhamos). “Nós quem? Quem é que define hoje as práticas? Há as grandes corporações que visam agressivamente o lucro e os países que aspiram avidamente ter poder sobre outros países.”, afirmou Liana, para quem a governança é uma esperança, apesar de se questionar se ela é materializável.
Vieira também tratou do protagonismo na governança: “Quem vai cuidar da governança da internet? Serão as grandes empresas? Os países mais poderosos? Será que a China e os EUA vão entrar num acordo sobre como fazer as coisas acontecerem ou vai ocorrer o que estamos vendo em relação ao 5G?
Lembrou que o tema tem sido amplamente discutido desde antes do primeiro Fórum de Governança da Internet, realizado em Atenas, em 2006. No ano seguinte, aconteceu o segundo fórum, no Rio de Janeiro, e cinco temas tiveram destaque, segundo Vieira: transparência, acesso, segurança, diversidade e recursos críticos da internet.
“Muitas questões sobre esses temas foram parcialmente resolvidas. Hoje, a grande questão é o que fazer com a quantidade imensa de dados, como preservar sua segurança e como lidar com a questão ambiental, uma vez que não se pode deixar de fazer internet e computação.”
Do ponto de vista de segurança, Getschko disse haver exemplos ótimos, como os honeypots [simulam sistemas com aplicativos e dados e funcionam como uma armadilha para atrair hackers, obtendo informações sobre eles e como operam]. “As ameaças são características do ser humano, não da rede. A rede deu chance para que isso aflorasse. É preciso um trabalho muito longo de educação e aculturamento, de que tudo tem consequência.”
Espaço público
Blotta enfatizou a importância da ideia de espaço público, do interesse público e das organizações voltadas ao interesse público, nacionais e internacionais, “que deveriam ocupar mais o espaço na governança da internet”.
“Estou falando no sentido normativo, onde os pesquisadores da área de teoria crítica veem alguma luz no fim do túnel. Se deixarmos para a autorregulação e a regulação estatal, a tendência é haver distorções, abusos e apropriações da dimensão pública.”
Para ele, é preciso fortalecer espaços e organizações como o CGI.br e as universidades e mobilizar entidades de interesse público para proteger o espaço intermediário entre empresas e governos.