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Políticas públicas atuais não inibem o consumo de álcool, maconha e cigarros eletrônicos por jovens, dizem pesquisadores

por Nelson Niero Neto - publicado 16/10/2019 12:30 - última modificação 16/10/2019 13:08

Encontro organizado pelo Grupo de Estudos em Saúde Masculina ocorreu no dia 4 de outubro

Jorge Hallak e Maurício de Souza Lima
Jorge Hallak e Maurício de Souza Lima durante o debate
Pesquisas sobre o consumo de álcool e maconha por adolescentes no Brasil apontam não só um crescimento do uso dessas substâncias nos últimos anos, mas também que o primeiro contato acontece cada vez mais cedo. No caso do álcool, dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2015, indicam que 23,8% dos alunos do 9º ano (14 a 15 anos) havia consumido álcool no mês da pesquisa (com 21,4% alegando estado de embriaguez). O mesmo levantamento mostrou que 4,1% havia fumado maconha.

Recentemente, o cigarro eletrônico também passou a chamar a atenção dos jovens e dos cientistas. Uma pesquisa da agência americana Food and Drug Administration (FDA), a National Youth Tobacco Survey, estimou que cerca de 3,6 milhões de adolescentes americanos usavam o cigarro eletrônico em 2018 — um aumento de 1,5 milhão em relação a 2017. Neste ano, a discussão sobre os efeitos do consumo na saúde ganhou força após a suspeita de que está associado a uma doença pulmonar fatal e de usuários apresentarem dificuldades para respirar, fadiga, tosse, febre alta, náusea e vômito. No Brasil, o cigarro eletrônico é proibido, mas segundo médicos e pesquisadores, também tem se popularizado entre adolescentes.
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O uso dessas três substâncias em uma fase de crescimento e desenvolvimento do organismo e do intelecto pode causar sérias complicações de saúde e expõe indiretamente os jovens a diversos riscos, de acordo com médicos e pesquisadores. Para falar sobre o tema, um grupo organizou o seminário O que os Pais e Educadores Devem Saber sobre o Uso Recreacional de Maconha, Álcool e Cigarros Eletrônicos, realizado no IEA no dia 4 de outubro. Para eles, as atuais políticas brasileiras não estão sendo suficientes para coibir esse consumo.

De acordo com a PeNSE, a idade média do primeiro episódio de consumo de álcool é de 12,5 anos. Se a lei proíbe que menores de 18 anos tomem bebidas alcoólicas, algo está muito errado, alegaram os palestrantes do evento. “Hoje, no Brasil, temos muitos pesquisadores estudando essas substâncias. Mas percebemos que só a ciência não basta”, disse o médico Jorge Hallak, coordenador do Grupo de Estudos em Saúde Masculina, que organizou o seminário. “Precisamos, também, dos legisladores e da ação governamental”.

Por isso, explicou, o debate incluía uma tentativa de aproximação com o Senado Federal, representado no encontro pelo senador Lucas Barreto (PSD-AP).

Orientação

Apesar de considerarem a atuação governamental essencial, os participantes também discutiram o papel da orientação familiar e escolar no combate ao consumo dessas substâncias por jovens. “No caso do álcool, o fator parental e o exemplo visto pelos jovens são muito importantes”, disse Erica Siu, coordenadora do Centro de Informações sobre Álcool e Saúde (Cisa) e pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP. “Muitos pais acham que é melhor apresentar a bebida ao jovem em casa, junto com eles, para ensiná-lo a beber com responsabilidade. Mas antes dos 18 anos é impensável colocar o jovem sob os efeitos causados pelo álcool”.

Políticas Públicas

Por julgar essencial a atuação do Legislativo no controle do consumo de álcool, maconha e cigarros eletrônicos por adolescentes, o médico Jorge Hallak, do Grupo de Estudos em Saúde Masculina, convidou o senador Lucas Barreto (PSD-AP) para participar do debate. Ele prometeu levar as questões levantadas ao Senado Federal. “Vamos formar uma comissão para tratar desse assunto. Precisamos passar aos jovens a conscientização dos riscos causados pelo consumo dessas substâncias”.

Questionado por Zilá Sanchez da possibilidade de implementar no Brasil políticas que tiveram sucesso em outros países — como o aumento da tributação sobre bebidas alcoólicas —, Barreto ponderou que nem sempre a boa intenção da proposta vira realidade. “Já tivemos casos de estados que aumentaram o imposto sobre o álcool e o que aconteceu foi exatamente o oposto do esperado: o consumo aumentou”, disse. “Porque, na prática, houve muita sonegação de imposto e contrabando, o que diminuiu o preço dessas mercadorias”.

Barreto explicou que em Belém, no Pará, por exemplo, a arrecadação de impostos aumentou quando a taxa caiu de 25% para 7%, porque deixou de ser vantajoso praticar o contrabando de mercadorias. Por isso, reforçou, é preciso analisar muito bem as propostas, com a união de pesquisadores e legisladores.

Para Hallak, a abertura do Senado ao tema trará a oportunidade de estabelecer um núcleo de estudos com médicos e pesquisadores, a partir do IEA, para embasar as políticas públicas.

Maurício de Souza Lima, médico especialista na saúde do adolescente, contou que pais costumam perguntar o que fazer com os filhos adolescentes que querem organizar festas com bebidas alcoólicas. “Se você flexibiliza um pouco antes dos 18, na verdade já está abrindo tudo”, disse. “Já ouvi de muitos pais que eles aceitam algumas bebidas ‘porque tem pouco álcool’. Não dá. Vejo jovens de 12, 13 anos que já começaram a beber. É uma idade muito vulnerável para isso”.

Entre os vários riscos que a bebida oferece para um adolescente, Lima destacou uma que costuma perceber em muitos pacientes: a arritmia cardíaca causada pela mistura de energético (substância estimulante) com álcool (depressiva). “Pesquisas indicam que quatro latinhas de energético são suficientes para causar isso. Então, eu pergunto ao meu paciente que sei que costuma tomar quantas ele normalmente toma em uma noite na balada. Às vezes, passa de dez latinhas”.

Erica Siu
A pesquisadora Erica Siu
Siu comparou a prática a pisar no freio e no acelerador ao mesmo tempo. “Enquanto o álcool atrapalha na percepção de julgamento — quanto já bebi? Será que devo parar? —, o energético faz o jovem ‘durar mais’ na festa, eventualmente bebendo mais e aumentando a exposição aos riscos”.

Em um contexto tão delicado e de experimentação cada vez mais cedo, muitos pais ficam na dúvida em como orientar seus filhos, ou mesmo quando devem começar a tratar desse assunto em casa. “Em relação a quando começar, sugiro que seja desde sempre: a partir do momento que o filho sai do útero”, disse Lima. “Esse assunto deve fazer parte do dia a dia das famílias. O que vai depender da faixa etária é o tom e maneira de se falar”.

Segundo ele, não é preciso apresentar uma aula com detalhes técnicos às crianças, e sim aproveitar situações do cotidiano — um comentário ou uma opinião após ver uma propaganda de cerveja na televisão, por exemplo. “O tema tem que ser tratado naturalmente, quando o assunto surgir, para que os filhos saibam o que os pais pensam sobre a questão. Isso não vai necessariamente impedir que eles experimentem bebidas alcoólicas antes dos 18 anos, mas eles vão passar a pensar sobre isso. Não vão agir por impulso. E pensar antes de consumir faz toda a diferença. As informações de qualidade sobre este tema precisam fazer parte do ar que respiramos”.

Álcool

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma pessoa morre a cada 10 segundos no mundo por causa de complicações decorrentes do consumo excessivo de álcool — por ano, são 3 milhões. Evitar que os jovens tenham sua primeira experiência com bebidas alcóolicas é crucial não só para evitar os efeitos imediatos, mas também para evitar que no futuro se tornem dependentes da substância.

O Brasil, porém, ainda engatinha nesse sentido. Zilá Sanchez, pesquisadora da Unifesp, explicou que 30% dos jovens brasileiros que estão no ensino médio (entre 15 e 18 anos) costumam fazer o que é chamado “uso pesado episódico” de álcool — em inglês, “binge drinking”. É o consumo rápido de grandes quantidades de álcool, como quatro ou cinco latas de cerveja, ou dois copos de vinho, em menos de duas horas.

“Geralmente, essa prática nesta faixa etária ocorre aos finais de semana, em bares e baladas, ou mesmo nos ‘esquentas’ antes destes eventos”, explicou Sanchez. “As pesquisas indicam que quem faz o uso pesado episódico de álcool está mais vulnerável a acidentes, transgressões da lei, abuso sexual e intoxicação”.

Sanchez criticou o que vê como uma cultura de incentivo ao consumo de álcool, que chega aos menores de 18 anos muitas vezes com certo consentimento da sociedade. Um exemplo são os produtos “com cara de adolescência” — bebidas coloridas, com sabores de frutas, com o intuito de ganhar o apetite dos adolescentes, mas que contêm altas concentrações alcoólicas.

Lucas Barreto - Perfil
O senador Lucas Barreto durante o seminário

Outro problema nesse sentido é o preço das bebidas: o popular Corote, coquetel à base de vodka, é uma das marcas que tem uma linha com sabores de frutas e pode ser encontrado por 1 ou 2 reais em todo o país.

Há, ainda, a cultura de incentivo por trás da propaganda e venda de festas onde há abuso de álcool. Sanchez explica que elas seguem um padrão muito claro: o mote é o “beba até cair”, com open bar a noite inteira; o nome dos eventos fazem alusão ao consumo excessivo ou os efeitos dele, como “Amnésia” ou “Apagão”; e muitas vezes a água não faz parte desse open bar e raramente há alimentos no local.

“Em um contexto como esse, é possível prevenir o consumo de álcool por jovens? Eu acredito que sim, mas a melhor prevenção não é a familiar ou a escolar”, disse Sanchez. “É a que vem do Legislativo. As ações governamentais são as que têm mais efeito. Não estou estou desprezando os programas de prevenção em escolas ou o papel da família. Eles funcionam, mas não são suficientes neste caso. A mudança precisa vir de cima”.

Zilá Sanchez
A pesquisadora Zilá Sanchez

Para Hallak, é papel da ciência, a partir de seus pesquisadores, colocar limites na atuação da indústria do álcool. “São anseios naturais, uma vez que ela precisa ganhar dinheiro, oferecer empregos e pagar impostos. Mas é necessário orientar e trabalhar com os legisladores neste sentido”.

Entre as alternativas apresentadas por Sanchez, há as que a Organização das Nações Unidas (ONU) sugere como ações governamentais. “São cinco pontos principais: reduzir a disponibilidade de álcool; ampliar restrições em relação ao beber e dirigir; restringir a publicidade, o patrocínio e a promoção de bebidas alcoólicas; aumentar os preços; e facilitar o acesso de diagnóstico, intervenções breves e tratamento”.

Maconha

Os efeitos negativos da maconha na saúde do jovem e o risco de posterior dependência também foram discutidos durante o evento. “Há uma frase de Hipócrates que diz: ‘antes de curar alguém, pergunta-lhe se está disposto a desistir das coisas que o fizeram adoecer’”, disse Jorge Hallak, ao comentar que a maconha tem uma peculiaridade em relação a outras drogas, consideradas mais danosas: o usuário acha que a erva não faz mal e, por isso, muitas vezes não pensa em cortar ou mesmo diminuir seu consumo.

Hallak discorda da ideia de que a maconha não causa dependência. “O usuário reage muito mal quando é orientado a parar de fumar. Praticamente entra em pânico”, disse. “E ele só pedirá ajuda quando começar a ver os problemas que o consumo causa em sua vida”.

Um desses problemas, explica, é em relação a fertilidade. O sistema reprodutivo é o segundo mais afetado pela droga depois do sistema nervoso central, e ela é mais maléfica que o tabaco ao causar disfunções espermáticas e testiculares.

Elaine Frade Costa
Elaine Maria Frade Costa, professora da Faculdade de Medicina da USP
No caso da mulher, os efeitos são similares. Elaine Maria Frade Costa, professora da Faculdade de Medicina da USP, explicou que a maconha é uma droga desreguladora endócrina, ou seja, pode inibir a produção de hormônios, como o estrógeno. “Isso afeta a fertilidade. Se a mulher fuma, pode ser mais difícil engravidar”, disse. “E se ela fumar durante a gravidez, há mais chance de ocorrer um aborto”.

Para o jovem, os efeitos podem ser ainda mais danosos. “A adolescência é uma janela de suscetibilidade e uma época de maturação psicológica, quando o indivíduo tem mais vulnerabilidade e está mais expostos a riscos”, disse Costa. “E o uso de drogas potencializa características próprias dessa fase, como o sentimento de contestação, impetuosidade, idealismo e onipotência”.

Cigarros eletrônicos

Embora se possa achar que o cigarro eletrônico é menos prejudicial que o cigarro comum, eles também são tóxicos e podem conter nicotina, lembrou a professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP Sandra Farsky. Ela também reforçou que hoje, no Brasil, seu uso é proibido.

Sandra Farsky
Sandra Farsky, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP
Só isso já justificaria, diz ela, a razão dos adolescentes não poderem usar. Mas, além disso, há diversos efeitos adversos à saúde relacionados ao cigarro eletrônico. “Como o usuário pode manusear e colocar a quantidade de nicotina que desejar, pode haver uma exposição maior, o que leva à dependência e riscos à saúde”, disse. “Há, também, produtos na composição que liberam toxinas quando aquecidos, como a glicerina e o propilenoglicol. Presentes na alimentação e nos cosméticos de maneira segura, essas substâncias se tornam perigosas se aquecidas”.

Nos Estados Unidos, esses dispositivos estão na mira dos órgãos de controle após seis usuários morrerem por causa de uma misteriosa doença pulmonar. Acredita-se que o uso do cigarro eletrônico tenha causado o problema, e foram registrados cerca de 450 casos de pessoas com dificuldades para respirar, fadiga, tosse, febre alta, náusea e vômito.

No Brasil, outro risco está relacionado aos equipamentos e baterias usados. Como são adquiridos de forma ilegal, nem sempre sua qualidade é assegurada. Farsky explicou que já foram relatados casos em que a bateria explodiu, ferindo a boca e o rosto do usuário.

“Embora inicialmente o cigarro eletrônico tenha sido usado como alternativa para quem desejava parar de fumar, hoje os adolescentes experimentam sem nunca ter fumado o cigarro comum”, completou Farsky.

Fotos: Leonor de Calasans/IEA-USP