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Arte para o Brasil se conhecer melhor

por Sylvia Miguel - publicado 03/06/2016 18:40 - última modificação 20/06/2016 11:25

O curador Paulo Herkenhoff falou de arte contemporânea e museologia de arte no Brasil.

 

Tarsila 1 Macunaíma

"Operários", de Tarsila do Amaral (1933) e cena do filme "Macunaíma" (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, que traz

o nascimento do "anti-herói" retratado no romance homônimo de Mário de Andrade.

Na roda de perguntas e respostas com o curador Paulo Herkenhoff, realizada no dia 9 de maio pelo Grupo de Pesquisa Fórum Permanente do IEA, o especialista falou de sua vasta trajetória no mundo da museologia, defendeu a arte como produtora de conhecimento e lamentou que a arte e a educação ainda não estejam no centro simbólico da América Latina.

Encontro com Paulo Herkenhoff teve como debatedores a professora Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, integrante do Programa Ano Sabático do IEA; a conservadora-restauradora Isis Baldini Elias, do Centro Cultural São Paulo; o artista visual e curador-editor do Fórum Permanente Gilberto Ronaldo Mariotti Filho; o diretor do Instituto Tomie Ohtake, Ricardo Ohtake; o coordenador executivo do Fórum Permanente, Diego de Kerchove; o curador-chefe do Instituto Tomie Ohtake Paulo Miyada; o professor Vinicius Pontes Spricigo , do Departamento de História da Arte da UNIFESP, além do ex-diretor do IEA Martin Grossmann, professor da ECA e coordenador do Grupo Fórum Permanente.

O curador relembrou o caso emblemático da proposta de narrativa histórica sobre a cultura brasileira que ele empreendeu à frente da 24ª Bienal de São Paulo, ao lado do curador-adjunto Adriano Pedrosa.  A chamada “Bienal da Antropofagia” tornou-se a edição mais conhecida internacionalmente e contou com 53 Representações Nacionais.

Entre os detalhes de sua trajetória, Herkenhoff revelou que se afastou do cargo de curador-adjunto do Departamento de Pintura e Escultura do MoMa de Nova York ao perceber as dificuldades que enfrentaria para expressar politicamente a arte.

Herkenhoff é o atual diretor do Museu de Arte do Rio (MAR). Sua vasta trajetória inclui a curadoria-geral do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a direção do Museu Nacional de Belas Artes, também do Rio. Participou do comitê que indicou a diretora artística da Documenta de Kassel de 2012, a mais importante mostra de arte contemporânea do globo. Contou as passagens em outros museus e instituições de fomento à arte, como a Funarte.

O professor Spricigo enfatizou que a 24ª Bienal continua sendo um caso emblemático, no sentido de oferecer uma contranarrativa sobre os discursos de globalização da arte. “Ela possibilitou uma leitura transversal histórica não eurocêntrica, contra-hegemônica”, disse Spricigo, ao comentar a projeção mundial que aquela edição alcançou.

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As dimensões daquela bienal ultrapassaram os limites puramente artísticos, acredita Herkenhoff.  “Acho que talvez o Brasil não estivesse preparado para o conjunto de questões trazidas pelos curadores internacionais. Foi o mais importante momento do pós-guerra de exposição da América do Sul num evento internacional. Foi uma troca política trazermos ministros de cultura e oferecermos o espaço para manifestarem a arte daqueles países”, disse.

A idealização daquela edição não envolveu outra intenção que não fosse fazer o Brasil se conhecer, disse. “A bienal resultou num conjunto de catálogos refletindo a tradição brasileira e como ela contamina ou é contaminada nesse caldeirão, que representa a incorporação da diversidade de valores”.

Herkenhoff disse que se preocupou em entender a singularidade de São Paulo e relacionar isso com o contexto da bienal. “A modernidade ganha ali uma condição de localidade e de globalidade. Dentro da singularidade de São Paulo, parecia-me que a antropofagia era um paradigma de valor internacional”, disse.

“Se eu começasse a falar que aquele é um repertório do Brasil que as pessoas precisavam conhecer,  nada adiantaria. Então, estrategicamente, deveria ser um grande tema e deveria mostrar a sua historicidade. Vejo a Coleção Cisneros como um desdobramento daquele trabalho, que foi uma coleção reunida para reescrever a história da arte. Essa talvez seja a mais importante coleção de arte latino-americana”, disse.

Herkenhoff contou que fez um levantamento sobre o significado da bienal e chegou a um tripé. “Ela é uma exposição, uma tradição de educação e uma casa editorial, se considerada a imensa quantidade de catálogos editados”, acredita. Com isso, foi feita a distribuição não só do “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade, como também crônicas de Clarice Lispector, trechos de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, textos de Haroldo de Campos, todos discutindo antropofagia.

A partir daquele levantamento, o especialista chegou a uma dada seleção de curadores com a intenção de “servir o biscoito fino da cultura brasileira, como fala Oswald de Andrade”, disse. A ideia era selecionar curadores com capacidade de dialogar e com disposição de considerar o conceito daquela 24ª edição.

A questão a ser colocada não era a antropofagia como um estilo, ou como um conjunto de imagens a serem citadas ou reinterpretada, nem mesmo como um conjunto de conceitos e regras, contou. Deveria ser interpretada como “um modo de pensar a cultura ativa, com uma condição de atualização que permitisse pensar a história da cultura do Brasil como sendo uma tradição antropofágica que remetia ao início da colonização”, disse.

Paulo Herkenhoff e Ricardo OhtakeEncontro com Paulo HerkenhoffDiego Kerchove e Paulo Myada

Paulo Herkenhoff e Ricardo Ohtake (esq.). Na sequência: Vinícius Spricigo, Lucia Maciel Barbosa de Oliveira,

Isis Baldini, Martin Grossmann e Herkenhoff. À direita: Diego de Kerchove e Paulo Miyada.

 

História e política

Sobre o atual museu que dirige, Herkenhoff vê uma relação estreita entre a instituição e a Bienal. Localizado na Praça Mauá, centro do Rio de Janeiro e inaugurado em 2013, o MAR nasceu com a proposta de fazer uma “leitura transversal da história da cidade”, das contradições, desafios e expectativas da sociedade carioca.

“O MAR não é para o mundo. Ele é para nós, brasileiros. Ele é para nos conhecermos e discutirmos a nosso respeito.  A arte tem essa capacidade”, disse.

O trabalho realizado com 150 artistas na mostra coletiva “América do Sul, a Pop Arte das Contradições”, que curou em Curitiba em 2012, reuniu artistas “desde o Norte até o Sul, para além de Buenos Aires”. Tamanha diversidade deu uma noção de “descentramento”, conta.

Esse trabalho incitou um questionamento que o acompanha profissionalmente: “Por que São Paulo é mais distante de Goiânia do que de Nova York? Por que a zona sul carioca é mais próxima da Santa Croce de Roma do que o bairro de Santa Cruz, no Rio?”, questiona.

A expressão das formas de convivência num mundo pós-guerra fria ganhou voz com a curadoria realizada no MoMA, em outubro de 1999, quando o museu se preparava para iniciar a construção de sua nova sede. Era o momento da grande exibição “MoMA2000”, que buscou rever a arte moderna em três ciclos – de 1880 a 1920; de 1920 a 1960; e de 1960 a 2000.

Coube ao brasileiro um espaço para apresentar sua visão da modernidade dentro do ciclo 1960-2000. Escolheu como tema “The marriage of reason and squalor”, inspirado na pintura homônima de Frank Stella. Colocou Stella ao lado de Lygia Pape, ou mesmo Lasar Segall acompanhado de Torres Garcia, conta, buscando similaridades na organização formal desses artistas.

Herkenhoff afirma que o espaço que curou no MoMA foi pensado para projetar o sujeito no mundo, “com pequenas delicadezas sensoriais”. Mas no andamento do projeto, percebeu que o ciclo 1960-2000 estava estruturado para proclamar o triunfo da arte americana. “A pop art foi a arte americana feita para enfrentar o regime soviético. O discurso era sobre liberdade de expressão, comunicação, democracia do consumismo. Mas isso perdia o sentido depois da queda do Muro de Berlim”, acredita.

O outro eixo do ciclo 1960-2000 no MoMA se referia ao minimalismo, “que é uma leitura específica da arte americana”, disse. Porém, o brasileiro acredita em convergências e oposições que se cruzam entre minimalismo, arte concreta brasileira e neoconcretismo.

“Portanto, eu não iria jogar na lata do lixo a Bienal de São Paulo. Se eu tivesse feito a exposição submetida ao eixo minimalista, que é a arte que tudo serve e que tudo é igual, própria da Pax Americana pós-guerra fria, eu teria  negado tudo o que eu havia lutado em relação à bienal”, disse.

“Enfrentei sérias dificuldades porque logo descobriram minhas manobras políticas na segunda exposição do MoMA. Então abri mão e preferi não fazer. Não precisava do MoMA para pensar. Se tivesse o espaço, eu teria usado. Mas com as dificuldades impostas, tive muitas razões para não fazer. Fiz outras duas, ‘Estranhos Estrangeiros’ e ‘Tempo’, logo após o 11 de setembro. Consegui expressar a ideia de que o tempo é um hiato entre sistemas de dominação”, disse.

Produção de conhecimento

O curador Paulo Myiada questionou se a arte como produtora de conhecimento não teria se transformado apenas num jargão, vazio de sentido.“Transforma em jargão quem não pode transformar ideias em arte. Quem não consegue se mobilizar politicamente por ideias, ou conceitualmente, ou formalmente, não consegue ter seu imaginário disparado por certas ideias”, acredita Herkenhoff.

“Será que na arte como na antropofagia, não seria um processo de insatisfação, de purgação de contradições, uma busca dialética?”, questionou Herkenhoff. E reforçou sua ideia: “O artista é uma fonte de luz e de iluminação, é uma fonte de projeção de conhecimento, e a arte é produção de conhecimento. Se não for, então será repetição”.

Ressaltou o papel pioneiro da USP na diversificação de suas linhas de pesquisa na pós-graduação para ampliar a participação de artistas. Mas observa as contradições entre a criação artística e o engessamento da academia.  “Já vi artista sofrer imposição do orientador. Cabe à Universidade pensar criticamente a sociedade e absorver a crítica da sociedade. É um processo de ebulição, então não é um bolo de noiva e se assim for, acabará derrubado por baixo”, disse.

Apesar desse pressuposto, admite que já  viu “muita coisa boba sendo produzida, muito formalismo, muita receita pronta”, numa relação direta entre texto e legitimação intelectual. Mas ainda assim, “quando tudo é posto num estado de produção de conhecimento, de reflexão e dúvida, ainda assim é produção de conhecimento”, acredita.

Lamentou a relação simbólica da arte e da educação na América Latina. “O museu como instituição não faz parte da vida simbólica do Rio de Janeiro. O MAM-RJ não pertence à esfera pública. Um museu que foi incendiado em 1978 e, mais que físico, foi um incêndio simbólico, pois não buscaram as causas e nem as responsabilidades. O mesmo em relação ao sumiço de pinturas de Picasso, Monet e Matisse no Museu Chácara do Céu, em Santa Teresa, no Rio, em 2006. Virou tudo Carnaval. Mas em São Paulo, ao contrário, se some algo do MASP ou da Pinacoteca, vamos atrás de encontrar. Assim, vejo aí uma diferença ética com  relação à arte. Mas infelizmente, a educação está fora do centro simbólico da América Latina”, concluiu

Imagens: Reprodução / Divulgação / Leonor Calazans-IEA-USP