Artistas praticam “jogo de cintura” para esquivar-se de situações previsíveis, diz García Canclini
A noção de comunidade, um dos principais conceitos do livro “Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México”, foi retomada pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini durante o lançamento da publicação que coordena. O evento também teve a participação dos demais autores, gestores culturais, jornalistas e acadêmicos, e aconteceu no dia 25 de outubro no auditório do MAM (Museu de Arte Moderna). A obra, que aborda ainda os conceitos de instituições e criadores culturais, foi publicada no primeiro semestre deste ano pelo IEA e pela Edusp.
“Na história, mas principalmente na antropologia, pensamos em comunidades locais, estabelecidas em um território específico”, contextualizou. “Existe uma dispersão que nos obrigou a refletir sobre em que sentido somos comunidade no mundo do streaming, da comunicação virtual e essa descentralização criou ainda mais instabilidade a uma atividade que por si só já é bastante instável”.
Professor titular da Universidade Autônoma Metropolitana (UAM), no México, e referência obrigatória nos estudos culturais na América Latina, Canclini afirmou que o processo de precarização na área começou, na verdade, antes da pandemia. Citou uma frase do sociólogo francês Pierre-Michel Menger – “o trabalho artístico está moldado pela incerteza” – para ilustrar as oscilações tão comuns no setor cultural. “Não sabemos onde vamos parar quando iniciamos uma experiência comunicacional ou estética”, dizendo que essa situação problemática “aproxima a precarização da emergência”.
Segundo ele, para esquivar-se daquilo que é previsível, os artistas praticam o tempo todo o chamado “jogo de cintura”. Disse que a metáfora de raízes brasileiras serve de referência para outros países, significando “mover-se do previsível em direção a um espaço diferente”, o que “conecta de forma positiva ou de forma criativa a precariedade com a emergência”.
O livro é resultado da pesquisa “A Institucionalidade da Cultura e as Mudanças Socioculturais”, realizada durante o biênio 2021-2022, na titularidade de Canclini na Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, parceria do Itaú Cultural com o IEA.
Assinam a autoria do livro com Canclini os pesquisadores de pós-doutorado Juan Ignacio Brizuela e Sharine Machado C. Melo ao lado da pesquisadora mexicana Mariana Martínez Matadamas. Os autores investigaram as transformações que, nos últimos anos, vêm afetando instituições culturais, artistas, trabalhadores da cultura e públicos, adensadas e agravadas pela pandemia de Covid-19.
“Esse é o quinto volume da coleção de livros da cátedra e o primeiro em parceria com a editora da USP”, informou Martin Grossmann sobre a edição em português. O coordenador acadêmico da cátedra anunciou que a edição em espanhol, publicada pela editora Gedisa, também já está disponível para os países de língua hispânica da América Latina.
Ele destacou a importância do site “Diálogos com Canclini no Brasil”, dedicado ao antropólogo e às publicações relacionadas ao projeto coordenado por ele na cátedra, além de reunir depoimentos de intelectuais brasileiros sobre sua obra para a reflexão do panorama da cultura no Brasil e na América Latina em geral.
Nesse sentido, disse que apesar das cátedras representarem uma tradição, “a cadeira do bispo”, elas vão muito além enquanto “instrumentos de vanguarda” porque trazem a possibilidade de inovação contínua em áreas fronteiriças do conhecimento.
Políticas Culturais
Na abertura do evento, Luciana Modé, coordenadora do Observatório Itaú Cultural, antevendo recente decisão da Câmara dos Deputados, comentou sobre a expectativa dos agentes culturais pela prorrogação da Lei Paulo Gustavo. Em 30 de outubro, dia em que o ator completaria 45 anos, o requerimento de urgência para o Projeto de Lei (nº 3.942) de 2023 foi aprovado por maioria absoluta no plenário. “Este projeto visa estender o prazo de execução dos recursos da Lei Paulo Gustavo até 30 de junho do ano que vem”, informou Luciana. Trata-se de significativa conquista, uma vez que os incentivos culturais estão garantidos até 2024. “É responsabilidade de nosso setor a execução apropriada, eficiente e democrática dos recursos”.
A Lei Paulo Gustavo prevê, entre outros pontos, o repasse federal de R$ 3,86 bilhões do Fundo Nacional de Cultura (FNC) a estados e municípios para fomento de atividades e produtos culturais, como forma de atenuar os efeitos econômicos e sociais da pandemia de Covid-19. Outro ponto é que os estados e municípios que receberem os recursos deverão comprometer-se a fortalecer os sistemas estaduais e municipais de cultura existentes ou, se inexistentes, implementá-los.
Canclini discorreu sobre os legados históricos que abriram caminhos para que a Lei emergencial Aldir Blanc (Lei Federal nº 14.017/2020), que dispôs sobre ações emergenciais destinando R$ 3 bilhões para o setor cultural durante a pandemia de Covid-19, fosse implementada. “Trata-se de uma experiência de exceção na América Latina”, pontuou. “Houve um aumento do orçamento cultural no Brasil devido à Lei Aldir Blanc”.
Ele destacou o papel fundamental da mobilização de artistas e gestores culturais por meio dessas “redes” criadas em plataformas digitais, única forma de se comunicar durante o isolamento. “Museus, bibliotecas e centros culturais estavam fechados e o público não podia ir às salas de cinema, de teatro, mas fez isso de forma virtual”.
O antropólogo lembrou que no início do período de sua titularidade foi aberto um edital para escolha de dois pesquisadores em pós-doutorado com 41 candidatos inscritos. “Isso tem a ver com a atração que exerce a USP e o seu IEA, mas também podemos pensar que isso ocorreu como resultado da precarização trabalhista que afeta os pós-doutorandos da América Latina e de outros países da Europa e Estados Unidos”.
Para Canclini, o elevado número de candidatos para apenas duas vagas que exigiam o título de doutor se relaciona ao desenvolvimento de sociedades neoliberais que “precarizam” a vida dos jovens das novas gerações, ressalvando que “já faz duas ou três gerações que isso acontece”.
Brasil e México
Segundo García Canclini, a proposta consistiu em fazer uma pesquisa comparativa das instituições culturais tendo o Brasil e o México, dois países gigantes, com políticas culturais de muitas décadas, bastante estruturadas, como marcos de referência latino-americana.
“São poucos os trabalhos comparativos entre Brasil e México, que são os dois maiores países em termos populacionais e também com relação às suas atividades econômicas”, apontou. “No entanto, existe pouquíssima interconexão, mas, apesar disso, percebi que esse interesse recíproco tem crescido”, afirmou, dizendo que o Brasil tem demonstrado muito mais interesse pela América Latina que há 30 ou 40 anos. “O México também se abriu mais nas últimas décadas a outros países latino-americanos. Entretanto, no caso mexicano, há um foco mais com os Estados Unidos do que com a América Latina”.
Contou que a pandemia acabou interferindo na metodologia da pesquisa. “Muitas das entrevistas com os atores culturais ocorreram de forma virtual, por aplicativos de videoconferência. Foi uma experiência etnográfica extraordinária”, considerou. Também falou que foi possível consultar os dados estatísticos com facilidade porque os documentos estavam em rede.
Segundo ele, os caminhos adotados na pandemia foram bastante distintos entre ambos países. Citou ainda um estudo comparativo feito pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) mostrando o que foi feito no primeiro ano da pandemia, em relação aos aumentos de emergência no orçamento de cultura nos países latino-americanos.
“O Brasil ficou em primeiro lugar, com aumento de 143% do fundo dedicado à cultura em 2020”. Em seguida vêm Argentina (41%), Equador (24%) e Chile (15%). O México surgiu em décimo lugar com aumento de apenas 3%. “Como isso era possível em um país que estava sempre fazendo desenvolvimento comunitário e atendendo as necessidades locais, liderado até hoje por [Andrés Manuel] López Obrador?”, indagou. “Por outro lado, sabemos que o governo Bolsonaro não era favorável ao desenvolvimento cultural, então, como explicar o destaque do Brasil?”.
Canclini explicou que no México a mobilização buscou reivindicar a dívida do estado com relação aos trabalhos não pagos de artistas visuais e populares, a exemplo dos músicos que tinham dado shows e outros espetáculos. Já no Brasil, “milhares de artistas e gestores culturais que se reuniram por meio das redes virtuais coletivas para ver onde podiam obter fundos sabiam que o melhor caminho não era o Governo Executivo, mas sim o Congresso, onde havia pluralidades e legisladores com disposição para colaborar”.
O antropólogo também lembrou que, no primeiro ano da pandemia, foram perdidos, em média, mais de 800 mil postos e empregos na América Latina.
Pontos de cultura
O evento teve um debate que, além de Canclini, contou com a participação do historiador e gestor cultural Célio Turino, a diretora fundadora do Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro de Alagoinhas (Bahia) Fernanda Onisajé e a produtora cultural e escritora Valquíria Volpato, além de pesquisadores da cultura, demais autores do livro e entrevistados nas pesquisas.
Para Turino, o trabalho da cátedra vai contribuir muito para a compreensão de que Pontos de Cultura e Cultura Viva, assunto abordado por Brizuela, vão muito além de uma política pública, constituindo-se enquanto “filosofia” ou “compreensão de relações a partir do comunitário”.
Da análise de Melo sobre a criação da Lei Aldir Blanc, Turino explicou que o surgimento dos movimentos virtuais no Brasil logo no começo da pandemia, reunindo cerca de “40 mil” artistas, criadores, gestores e animadores culturais, ocorreram porque “junto com o conceito de cultura viva na primeira década do século 21, o país foi vanguarda mundial em cultura digital, “entendida não somente enquanto tecnologia mas como cultura a partir do software livre”.
A dramaturga Onisajé (Fernanda Júlia), educadora e pesquisadora da cultura africana no Brasil com ênfase no Candomblé, falou sobre a importância do ponto de cultura na cidade de Alagoinhas. Além de diretora artística, Onisajé é Yakekerê (mãe pequena, segunda sacerdotisa do terreiro) no Ilê Axé Oyá L´adê Inan, comunidade de terreiro local.
“Um ponto de cultura é a possibilidade de manter acesa e em processo de radiação as nossas identidades múltiplas, contribuições, construções culturais que reverberam no modo como somos, pensamos, criamos e nos expressamos esteticamente”. Usando a metáfora do farol como “fonte de luz reversa”, disse que, no interior do estado, o ponto de cultura transforma “aquela localidade, aquele espaço, aquele recorte de território em um farol para a sua comunidade e que também recebe a luz daquela comunidade para dentro de si”.
Gestora pública na área de cultura, Valquíria Volpato falou sobre a experiência vivida na cidade de Cachoeiro de Itapemirim (Espírito Santo) no começo do confinamento, às vésperas de lançamento de um edital que disponibilizaria R$ 650 mil por meio da Lei Rubem Braga, principal mecanismo de fomento a novos projetos artísticos e culturais do município. “O contingenciamento, as paralisações e tudo que sobreveio naquele momento foi tão drástico e dramático que fez tudo recuar”, relatou, recordando o fechamento inesperado de teatros e centros culturais.
Volpato disse que foi a partir dos encontros promovidos pelo Fórum Nacional dos Conselhos que “viajou o Brasil” através da cadeira do seu quarto. “Foi tão bom e diferente fazer parte daquilo tudo”, descreveu. “ Por meio das pautas de gestão,era como se eu tivesse me transformado no que unia o cachoeirense artista com as pautas no Congresso”.
Ela conta que as reuniões virtuais com outros gestores culturais produziram a sensação de “corrida contra o tempo”, em que era preciso simplificar o processo de captação de recursos para torná-lo “rápido, célere, descomplicado”, alcançando, assim, os mais atingidos.
Tensões e incertezas
Dirigindo uma questão a Sharine Melo sobre o papel das redes na pandemia, Ana Paula Sousa, editora da versão impressa da revista Carta Capital e moderadora da roda de conversa, pediu que a pesquisadora comentasse o quanto a pandemia, com toda a sua “carga trágica”, acabou “favorecendo” a potência das redes virtuais.
Melo respondeu que as redes trouxeram uma possibilidade de “respiro” ou “iminência” de algo que está no limiar entre a “realidade” e o “possível”. Ela leu o poema “Bilhete para o Bivar”, de Roberto Piva, escrito que lhe serviu de ponto de partida para a pesquisa que deu origem ao ensaio “Pela Onda Luminosa: A Articulação em Rede a Favor da Lei Aldir Blanc no Contexto das Políticas Culturais Brasileiras”.
Juan Brizuela explicou que a expressão “fora do jogo”, usada em seu texto “Fora de Jogo? Territórios Latinos-Americanos e Instituições Culturais no Brasil”, é uma referência à regra “offside” ou posição de “impedimento” que se aplica no futebol, como também às instituições consideradas “fora do lugar”.
“Se extrapolarmos ao pensar as instituições culturais nos ‘interiores’ dos ‘interiores’ da América Latina, onde muitas vezes não há uma vivência cotidiana das entidades modernas clássicas existentes nas regiões metropolitanas, como museus, teatros, isso significa que não existe nenhuma institucionalidade da cultura nesses lugares?”, pergunta. “Hoje, em especial fora das regiões metropolitanas, instituições religiosas, por exemplo, são as principais formadoras de artistas e profissionais da cultura”, diz. “São mercados culturais muito potentes”.
Para a antropóloga Mariana Martínez Matadamas, uma das autoras do livro, os resultados das pesquisas tanto no Brasil quanto no México estabelecem “um diálogo” entre experiências diferentes que vem de “especificidades históricas”, mas que também falam de algumas vinculações próprias.
“Uma surpresa importante foi descobrir a falta de informação sistematizada no México se comparado aos dados do sistema cultural no Brasil”, aponta. “O que a gente viu ao longo do trabalho é como as comunidades e grupos culturais encontraram espaço nas instituições e também geraram estratégias para modificar e transformar a maneira como se faz política”.
A crítica de arte e editora Paula Alzugaray, diretora de redação da revista de arte e cultura contemporânea seLecT_ceLesTe, apontou que uma das grandes contribuições da pesquisa é a “revisão das noções de comunidade, participação, instituição, criatividade, conferindo-lhes sentidos ampliados, flexibilizados e reelaborados”, que se aplicam “perfeitamente” às preocupações cotidiana de jornalistas, editores e trabalhadores da arte.
“Esse livro, que trata das tensões e incertezas da vida laboral da cultura contemporânea latino-americana, tem uma ação propositiva muito salutar de investigar de que modo se articulam e se organizam as redes que buscam soluções e produzem transformações”.
Alessandro Azevedo, coordenador da Representação Regional do Ministério da Cultura (MinC) em São Paulo, fez questão de se apresentar como um “trabalhador da cultura”, considerando que o evento representa a “reconstrução da institucionalidade da cultura”. Palhaço e ator de formação, ele comentou sobre algumas iniciativas atuais do MinC, como fomento a “pontões de cultura” e a regulamentação da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB).
Segundo notícia veiculada no último dia 13 de novembro no portal do MinC, trata-se da “maior iniciativa direcionada ao setor cultural do Brasil”. O órgão vem realizando plantões tira-dúvidas três vezes por semana de maneira online. De acordo com informações da publicação, a PNAB pretende destinar, até 2027, R$ 15 bilhões a estados, municípios e Distrito Federal. Azevedo considera a Lei Aldir Blanc um “marco” de política pública da atuação em rede.
Também participaram como comentaristas Ana Lúcia Pardo (UERJ), assessora da Comissão de Cultura da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), Nando Zâmbia (UFBA), coordenador da Dinamização de Espaços Culturais da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e do Oyá L’adê Inan Ponto de Cultura na cidade de Alagoinhas, e Daniele Canedo (UFRB), produtora e gestora cultural.
A artista, curadora e gestora de arte e cultura Andreia Duarte, diretora da Outra Margem e do !PULSA! Movimento Arte Insurgente, abriu os trabalhos com um discurso performático, proferindo “somos cosmos em transformação e a arte é movimento para a vida”.