As humanidades em tempos digitais
José Teixeira Coelho Netto, coordenador do Grupo de Estudos Humanidades Computacionais |
Se a tecnologia muda a cultura, como admitiu Marx, é natural que as humanidades de tempos em tempos requeiram transformações em seus conceitos de operação, ensino e pesquisa, para se ajustarem à nova realidade de seus objetos de estudo e atualizarem sua própria forma de produção cultural.
Nas últimas décadas, as transformações tecnológicas, especialmente as digitais, têm sido avassaladoras, com impacto profundo nas relações sociais em todas as esferas da vida do indivíduo, do trabalho ao lazer, da educação ao consumo. Está mais que na hora, portanto, de refletir se o conteúdo, o formato e os métodos didático-pedagógicos das humanidades se conformam à vida contemporânea.
Essa é a preocupação do Grupo de Estudo Humanidades Computacionais, iniciativa proposta por José Teixeira Coelho Netto, professor emérito da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e aprovada pelo Conselho Deliberativo do IEA em novembro de 2015.
Teixeira explica que as discussões do grupo subsidiarão um projeto bastante prático: a formatação de um programa de formação em cultura e política cultural que corresponda à realidade atual da área. A criação dessa pós-graduação será proposta à ECA-USP, inicialmente, com a expectativa que depois se torne um programa interunidades.
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Entre os objetivos do grupo de estudo está a discussão de novas formas de cultura, suas consequências e as questões de política cultural envolvidas, como no caso da alocação de recursos: “Nos últimos 20 anos do século 20 a ideia era construir centros de cultura físicos; a questão agora pode ser outra”.
Atraso
Segundo Teixeira, “o Brasil está atrasado nas discussões das questões e dilemas que o país deve enfrentar enquanto cultura e civilização em função das transformações tecnológicas, ao passo que no resto do mundo já há dezenas de institutos tratando dessas questões”.
Ele considera que as humanidades no Brasil pensam muito sobre o passado e o presente e pouquíssimo sobre o futuro. “Utilizam-se argumentos aparentemente muito sólidos para evitar a questão: 'Por que me preocupar com o futuro se há suficientes problemas do presente para resolver?'. Mas não teremos futuro se não nos preocuparmos com ele.”
Mesmo entre aqueles nas humanidades que se preocupam com o porvir, com o desenvolvimento, com o crescimento cultural, Teixeira vê um contrassenso: “É comum aqui, nessa área, dirigir para a frente, mas olhando o tempo todo pelo retrovisor, buscando orientação em conceitos dos séculos 19 e 20. Isso com certeza resulta em acidente."
“Estamos trabalhando com uma ideia de homem que provém do Iluminismo, da Revolução Francesa, um ser separado da natureza, que quase se justifica por se sobrepor a ela e dominá-la. Dessa separação entre natureza e cultura veio boa parte da ideia de modernidade, do homem, de natureza e de cultura. E essas ideias talvez não se justifiquem mais.”
As humanidades deveriam provavelmente, por hipótese, associar novamente natureza e cultura, constituindo-as num novo aparelho conceitual que dê conta da nova ideia de homem e do mundo, mas isso não está acontecendo no Brasil, de acordo o pesquisador.
“Não se trata de ignorar o passado, mas reconhecer que há uma cisão entre a ideia moderna de ser humano e a realidade que estamos vivendo.”
Educação
O grupo também irá discutir a educação diante do novo arsenal tecnológico disponível: “Em artes, por exemplo, que tipo de formação é preciso oferecer ao aluno? Alguns países disponibilizam, para ensino e pesquisa, recursos de computação com um poder de processamento, a título de exemplo, 700 vezes maior que o do cérebro humano. Sabendo que uma das fontes de riqueza do futuro (já é do presente) é a produção de conteúdo, o copyright, como oferecer a formação adequada às novas gerações de estudantes? Ou como contornar isso, caso não seja possível contar com o mesmo tipo de recursos físicos?”
Em 2015, o Ministério da Educação do Japão orientou as universidades a se dedicarem mais a áreas práticas e profissionais, abrindo o caminho para que reduzissem ou fechassem muitos departamentos de humanidades. Na opinião de Teixeira, "em vez de ficarmos apenas condenando o Japão, deveríamos nos perguntar por que um país com uma cultura tão forte tomou essa atitude, quais são as falhas na concepção existente do que são as humanidades para que um governo encontre campo livre para adotar essa postura".
As próprias universidades talvez devam sofrer mudanças estruturais: “Antes as pessoas ‘iam’ até aquilo de que precisavam, hoje tudo ‘é levado’ a elas. Nesse sentido, as universidades como centros fixos podem ser uma ideia em cheque. Não se trata de dizer que elas vão acabar, mas é possível que mudem substancialmente. Para que não se alterem tão profundamente, caso essa mudança não seja propícia, o que deve mudar dentro delas?” Ele se pergunta se as universidades não estão a caminho de se tornarem centros de pesquisa avançada, em nível de pós-graduação, inclusive no campo das humanidades.
Teixeira alerta que as humanidades terão de dar conta da reflexão sobre a própria transformação física do ser humano e da possível emergência da inteligência artificial complexa.
“Já existe hoje o recurso a enxertos de metal para substituir ossos, assim como órgãos totalmente artificiais e pesquisas para a produção de órgãos humanos por meio de impressoras 3D. Há indicações de que dispositivos de realidade virtual vão mudar completamente nossa experiência do cinema e do jornalismo: em 3D, a guerra reportada estará acontecendo dentro de nossa cabeça, não só na tela à nossa frente.”
Trabalho
No caso do trabalho, graças às tecnologias de automação e inteligência artificial, Teixeira vislumbra o fim possível da “moral rígida, puritana, de que o homem está condenado a ganhar o pão com o suor de seu rosto, como determinou Deus ao expulsá-lo do paraíso”.
Ele lembra o livro de Paul Lafargue (genro de Marx) "O Direito à Preguiça" (1880) para comentar que o desejo de se contrapor a essa moral e não trabalhar embute uma revolta: "O homem quer voltar atrás – e isso é ‘revolução’, palavra que significa não só revolver como também 'voltar atrás' –, quer voltar ao paraíso, onde não precisava fazer nada para viver."
“A aspiração humana à preguiça é tabu, graças aos resquícios de uma certa ideologia religiosa; mesmo ideologias materialistas insistem no valor do trabalho em oposição ao capital”, diz Teixeira. O problema não seria o fim do trabalho, mas “como distribuir a riqueza produzida pela máquina de modo a permitir uma vida com pouco ou nenhum trabalho, nos termos em que hoje se define essa atividade”.
A possibilidade de o homem ficar livre do trabalho graças a máquinas inteligentes e mesmo de ser superado em todos os aspectos cognitivos pela inteligência artificial é a razão de ser do Future of Humanity Institute , criado pela University of Oxford, no Reino Unido, em 2005, e do Future of Life Institute, nos Estados Unidos, destaca Teixeira, que aponta também a relevância dos estudos feitos por transumanistas e pós-humanistas.
Segundo ele, alguns especialistas dizem que há 10% de chance de a inteligência artificial nunca ser alcançada plenamente e outros acreditam, pelo contrário, que há 25% de chance de alcançar-se esse patamar já em 2030. “A maioria dos pesquisadores acredita que o homem estará superado se essa máquina for afinal construída. Alguns mais otimistas dizem que isso será a transcendência do homem; outros, que será a destruição do ser humano.”
A discussão atual, comenta, é se poderemos ou não controlar a máquina: “Há gente muito séria dizendo que criar a inteligência artificial vai ser relativamente rápido, mas controlá-la será muito mais demorado e complexo, a ponto de termos de conviver com ela durante algum tempo sem poder controlá-la, o que pode representar um sério ‘risco existencial’, que é como se denomina a possibilidade de extinção da vida humana”.
Mesmo não havendo ainda máquinas com inteligência comparável à humana, embora já existam computadores com capacidade de processamento centenas de vezes superior à do ser humano, os computadores pessoais (“dos quais os smartphones são a versão radical”) já provocaram profundas mudanças em diversos setores, inclusive na produção e no consumo cultural.
Produção cultural
“Qualquer pessoa pode tirar uma fotografia de qualquer coisa a qualquer hora e em seguida inseri-la no circuito de distribuição de imagens, quer a considere como um bem cultural ou não, como um produto a ser vendido ou não. Também é possível, por exemplo, iniciar uma emissora de rádio baseada na internet e difundir música pelo sistema de assinatura ou gratuitamente, neste caso com os custos cobertos por patrocínio.”
No entanto, essa "produtividade" não se mostra tão entusiasmante como poderia parecer se avaliada sob a perspectiva da economia política (riqueza gerada, empregos criados e extintos, coesão social ao redor do fato econômico), segundo Teixeira Coelho.
Como referência para essa avaliação, ele destaca o livro “Culture Crash: The Killing of the Creative Class” (O Desastre Cultural: O Massacre da Classe Criativa), do jornalista americano Scott Timberg, lançado em janeiro de 2015.
"Timberg fala de uma classe criativa que começa a definhar sem ter conseguido chegar a ser uma entidade claramente definida", explica Teixeira. Um exemplo disso são os dados levantados pelo economista Alan Krueger sobre a distribuição da receita proveniente da atividade musical citados por Timberg: em 1982, 1% dos músicos com as maiores rendas nos Estados Unidos arrecadaram 26% das receitas de shows de todos os músicos no país; em 2003, os mesmo 1% conquistaram 56% da receita total.
"Graças ao modo de difusão das novas mídias, a concentração de renda, para dar razão a Thomas Picketty [autor de "O Capital no Século 21"] aumentou fortemente inclusive no campo da cultura."
Mas não foi só a concentração de renda que se intensificou. Houve também a redução das opções, de acordo com os dados de Krueger: em 1986, 31 canções estiveram no topo das paradas de sucesso, interpretadas por 29 artistas; mas entre 2008 e 2012, 66 chegaram ao primeiro lugar, contudo, quase a metade delas interpretada por apenas seis artistas.
Outros dois dados citados no livro que confirmam a concentração da renda e a redução das opções: dos 75 mil álbuns lançados no mundo em 2010, apenas mil venderam mais de 10 mil cópias; 10 sites respondiam por 31% do tráfego na internet em 2010, em 2015 eles respondem por 75%.
O quadro é complexo e inúmeras são as questões envolvidas. O Grupo de Estudo Humanidades Computacionais começa, portanto, já com o mérito de colocá-las em cena.
Foto: Leonor Calazans/IEA-USP