Muniz Sodré, 80, continua a estudar a brasilidade
Considerado o mais influente especialista em comunicação do país, o sociólogo Muniz Sodré completou 80 anos em 12 de janeiro em plena atividade intelectual (e física, já que superou um quadro sério de Covid-19 em 2020, ocasião em que ficou internado por 40 dias, chegando a ser entubado, e continua a praticar caratê e musculação).
Em maio de 2021, lançou o livro “A Sociedade Incívil: Mídia, Iliberalismo e Finanças”. Em setembro, assumiu a titularidade da Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade, parceria entre o IEA e o jornal Folha de S.Paulo. Em outubro, passou a escrever uma coluna semanal no jornal. Tudo isso em paralelo às suas demais atividades acadêmicas na UFRJ, onde é professor emérito da Escola de Comunicação, e à sua constante atuação em defesa da cultura afro-brasileira.
A principal atividade de Sodré na cátedra é coordenar o ciclo de encontros O Que É Ser Brasileiro, sobre o qual concedeu a entrevista a seguir ao site do IEA.
IEA - É possível elencar algumas das principais características do brasileiro na atualidade?
Moniz Sodré - É bastante possível que uma característica marcante da "brasilidade" hoje em dia seja a percepção mais nítida da diversidade humana. A heterogeneidade sempre foi um traço singular do Brasil, mas hoje acadêmicos e meios de comunicação tornam muito claras as diferenças entre citadinos, povos originários, quilombolas, sertanejos, ribeirinhos e outros. A unidade oficialmente preconizada é um discurso de Estado, enquanto na vida prática e cotidiana os diversos modos de vida exercitam uma diferenciação que começa a ter consequências políticas.
Programação do cicloO quarto encontro online do ciclo O Que É Ser Brasileiro, será no dia 17 de fevereiro, às 15h, com a demógrafa Marcia Caldas de Castro, da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, EUA. Ela tratará da influência das características demográficas brasileiras na configuração da realidade do país. O ciclo teve início em setembro, com a conferência de posse de Muniz Sodré, cujo tema foi Sobre o Povo Brasileiro. Os outros dois encontros foram: em outubro, Como o Índice Folha de Equilíbrio Racial Pode Contribuir para o Debate sobre as Múltiplas Desigualdades Raciais no Brasil, com exposições de pesquisadores e profissionais do Insper e da Folha de S.Paulo; em dezembro, As Políticas das Ruas nos Governos Petistas, com a socióloga Angela Alonso, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. |
IEA - O que mais influencia esse perfil?
MS - Esse perfil de uma pluralidade radical é hoje bastante influenciado pela emergência de movimentos de afirmação das diferenças, como ocorre com negros e indígenas. Não se trata de mero "identitarismo", entendido como reivindicação grupal de identidade própria. Esta palavra esconde a verdadeira natureza da movimentação civil, que não é o hasteamento de nenhuma bandeira de identidade racial, mas de igualitarismo na coexistência cívica ou social. É um perfil de luta por ampliação de direitos.
IEA - Esse brasileiro de hoje é muito diferente do brasileiro de outros períodos testemunhados pelo senhor ao longo de sua carreira como sociólogo?
Sim, é um perfil diferente do que havia décadas atrás. Veja-se, por exemplo, o movimento negro, que é mais longevo na história brasileira. Sempre esteve aí, mas com estratégias de mediação diferentes, visíveis nas especificidades da Frente Negra Brasileira em São Paulo, no silêncio cauteloso durante a ditadura militar, na intelectualização dos discursos concomitante ao debate sobre as políticas afirmativas e na emergência de uma geração universitária consciente do tamanho da luta.
IEA - Caetano Veloso tem dito em entrevistas que o povo brasileiro é triste, “sempre foi mais triste do que alegre”. O senhor concorda?
MS - Caetano diz coisas muito pertinentes. Não tenho opinião quanto à generalização da tristeza, mas sei que é uma percepção dividida com Lévi-Strauss. Tenho desenvolvido uma concepção particular de alegria, que vejo como base litúrgica das comunidades afro-brasileiras. Aliás, é o próprio Caetano que fala do samba como "pai do prazer e filho da dor". É uma "tristeza que balança", dizia Vinicius [de Moraes].
IEA - Nos últimos 20 anos, mais de um milhão de brasileiros foram assassinados. Somos um povo triste e violento?
MS - Violento, com certeza. O mito da cordialidade não mais consegue esconder a violência estrutural e anômica da paisagem social brasileira. A violência histórica transmuda-se crueldade no cotidiano urbano.
Agenda da cátedra
Nos quatro primeiros meses de funcionamento da cátedra, as atividades não se restringiram aos encontros do ciclo. Ainda em setembro, houve uma chamada pública de pesquisadores. A coordenação esperava contar com cerca de 30 interessados, mas recebeu inscrições de 170 pesquisadores.
De acordo com o coordenador acadêmico da cátedra, André Chaves de Melo Silva, professor do Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, já aconteceu uma reunião dos pesquisadores para a discussão de aspectos conceituais e em breve eles iniciarão a redação dos trabalhos sobre os temas de interesse da cátedra, como demografia, religiosidade e racismo. Os melhores ensaios serão publicados no livro que reunirá as íntegras das conferências do ciclo O Que É Ser Brasileiro.
Este ano serão formatadas duas iniciativas: o estabelecimento de linhas permanentes de estudos a serem desenvolvidos por pesquisadores da USP e de outras instituições e a criação do Prêmio Otavio Frias Filho de Jornalismo para profissionais e estudantes da área.
Outro trabalho em andamento são os contatos para estabelecimentos de parcerias internacionais. “O objetivo é tornar a cátedra um centro de referência nacional e internacional sobre o papel da comunicação no fortalecimento da democracia, no diálogo social e na defesa da diversidade”, afirma Melo Silva.