Seminário debate relevância, compromissos e futuro da autonomia universitária
Por ser fundamental para a plena realização das atividades acadêmicas, a autonomia universitária acaba desempenhando também um papel relevante para o desenvolvimento socioeconômico e cultural, dado o impacto das universidades nas sociedades em que estão inseridas. A autonomia, no entanto, não é soberania e reveste os gestores acadêmicos de um rigoroso compromisso com uso eficaz dos recursos públicos para que a missão das universidades seja cumprida e as demandas da sociedade atendidas.
Esses aspectos foram enfatizados no segundo seminário do Ciclo Nacional "Autonomia Universitária: Fator de Desenvolvimento do País", no dia 28 de agosto, organizado pela Reitoria da USP e pelo IEA, com apoio da Fundaçã de Apoio à USP.
Além dos reitores Carlos Gilberto Carlotti Jr. (USP), Antonio Meirelles (Unicamp) e Pasqual Barretti (Unesp) e da vice-reitora da Udesc, Clerilei Aparecida Bier, também participaram: ex-reitores e professores da USP, Unicamp, Unifesp, UnB, UFPE, UFPA, UFG; o presidente da Fapesp, Marco Antonio Zago; o secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do estado de São Paulo, Vahan Agopyan; dois ex-secretários estaduais; e representantes do setor empresarial e da sociedade civil [veja os nomes de todos os participantes na programação]
A proposta do Cruesp de 8,63% para USP, Unicamp e UnespUm dos pontos de destaque do seminário foi a apresentação da proposta do Cruesp de percentual da futura arrecadação tributária do estado, em função da reforma tributária, a ser destinado à USP, Unicamp e Unesp. Coube ao presidente do Grupo de Trabalho (GT) instituído pelo conselho para elaborar a proposta, o professor Sebastião Guedes , da Unesp, explicar aspectos essenciais da reforma tributária, o desenvolvimento do estudo pelo GT e os impactos da reforma no crescimento econômico do estado e no próprio financiamento das universidades. Ele explicou que a reforma tributária deve continuar em regulamentação até 2025 e que ela se baseou em três princípios: simplificação tributária, eliminando impostos e acabando com normativas estaduais, como as tarifas diferenciadas de ICMS dos estados; manutenção da carga tributária sobre o consumo; e nenhum ente federativo perder arrecadação. Cinco tributos atuais, ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins, serão unificados no IVA (Imposto de Valor Agregado), a ser cobrado no consumo (destino), não na origem (produção), "o que terá impacto em São Paulo, um grande produtor", afirmou Guedes. O IVA será dividido em CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), parcela destinada ao governo federal, e IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), parcela a ser compartilhada por estados e municípios. A proposta do Cruesp é que 8,63% da receita tributária liquida da parcela do IBS destinada ao estado financiem as universidades estaduais paulistas. O conselho também recomenda que esse percentual seja inscrito na Constituição estadual, pois "isso diminuiria muito o poder discricionário do governo para diminuir a receita das universidades; o plano B seria inscrever o percentual no Decreto 29.598/89", disse. Guedes explicou que em 2026 haverá uma fase de teste de implantação do IVA, com uma alíquota de 1%, com 0,9% (CBS) indo para a União e 0,1% (IBS) para estados e municípios. "Em 2027, começará a aplicação real da reforma, primeiro com o CBS e a extinção de Cofins, IPI e PIS. O IBS só começa a ser implantado em 2029, substituindo paulatinamente o ICMS e o ISS. Só em 2033 o IBS estará plenamente instituído. No entanto, apenas em 2070 a reforma estará de fato concluída, pois há uma série de normas estaduais, isenções e convênios que irão durar até lá". Guedes explicou que a proposta do Cruesp resultou de um modelo computável de equilíbrio geral dos dados das contas nacionais de 2019, o qual foi calibrado para poder analisar o período 2013-2022 e o provável efeito da taxa média de arrecadação do futuro IBS. O modelo mostrou que a reforma tributária é boa para o crescimento econômico, com um aumento de 4,2% do PIB, afirmou. No entanto, explicou, a reforma é boa para o PIB paulista, mas ruim para a arrecadação, com o total do IBS caindo 2,92%. "Essa perda seria compensada não só pelos fundos de compensação, mas também pela dinâmica do estado, com os fatores de produção capital e trabalho compensando a queda.", afirmou. |
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As amarras legais e administrativas que ainda dificultam o exercício da autonomia e as tentativas de limitá-la ou até eliminá-la nas últimas décadas também foram discutidas. A amplitude dos debates e posicionamentos ficou demonstrada com a inclusão de expositores com visão crítica sobre a autonomia, tanto sobre sua relevância para o bom desempenho de universidades quanto sobre sua capacidade de responder às demandas da sociedade, caso não seja acompanhada de transformações estruturais.
Uma exposição pontual relevante para o futuro da autonomia paulista foi a do presidente do Grupo de Trabalho do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo (Cruesp) [leia ao lado]. Ele apresentou detalhes do estudo que definiu a proposta de destinação de 8,63% da arrecadação líquida destinada ao estado do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), tributo que substituirá o ICMS, atual fonte dos recursos das universidades, em função da reforma tributária aprovada pelo Congresso Nacional.
Ciclo
Na abertura do encontro, um dos coordenadores, Guilherme Ary Plonski, professor sênior e ex-diretor do IEA, disse que a semente para a organização do ciclo de seminários foi a publicação do livro "Autonomia Universitária: Fundamento e Desafios" pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). A obra está sendo lançada nos cinco seminários previstos para o ciclo. O primeiro foi organizado pela Udesc na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, no dia 12 de junho [leia abaixo]. Os próximos serão realizados no Recife (PE), Belém (PA) e Goiânia (GO).
A ideia de produzir o ciclo, com um seminário por região do país, foi de seu outro organizador, Arlindo Philippi Junior, da Faculdade de Saúde Pública da USP e atual chefe do Gabinete da Reitoria da USP, informou Plonski. Depois dos cinco seminários, deverá ocorrer um encontro na Câmara dos Deputados e ser editado um livro com os resultados.
O seminário na USP procurou apresentar um olhar qualificado sobre a experiência da autonomia paulista com depoimentos de alguns dos participantes essenciais de sua implantação em 1989 e olhar para os caminhos prováveis para ela sob as perspectivas jurídica e financeira, afirmou Plonski: "A reforma tributária requer a construção de uma autonomia 2.0, esforço no qual estão empenhadas as três universidades estaduais paulistas e em especial os seus reitores".
Histórico
José Goldemberg, ex-ministro da Educação e reitor da USP quando da promulgação do Decreto 29.598/86, que estabeleceu a autonomia das universidades estaduais paulistas, afirmou em sua participação online que o decreto "significou a coroação de um processo de eliminação, a partir de 1986, de alguns obstáculos criados pelo regime autoritário às universidades públicas". O primeiro foi a eliminação da lista sêxtupla de nomes para a escolha de reitores, estabelecida por decreto do governo Geisel para facilitar a inclusão dos nomes dos favoritos dos militares. "Logo após tomar posse como reitor, recorri com sucesso ao Supremo Tribunal Federal para questionar a aplicação desse decreto à USP", disse.
O passo seguinte, foi a participação ativa dele e de outros gestores e parlamentares nas discussão que levaram a Constituinte a incluir o artigo 207 na Constituição Federal, de forma a "garantir de forma clara e inequívoca a autonomia das universidades públicas".
A seguir houve o trabalho de convencer o governador Quércia de que a autonomia das universidades paulistas daria "um atestado de maioridade aos reitores e reduziria o envolvimento do governador no microgerenciamento das universidades", relatou.
Goldemberg disse que quando foi ministro da Educação, em 1993, tentou convencer o governo da importância da adoção da autonomia nas universidades federais, mas não houve concordância, sob a "alegação que elas ainda não estavam maduras o suficiente para seguir esse caminho, o que infelizmente vi confirmado em vários casos nas minhas atividades como ministro".
No caso da USP, afirmou que os procedimentos para o uso dos recursos definidos pelo Decreto 29.598/86 foram aperfeiçoados durante a gestão do reitor Marco Antonio Zago. Destacou, no entanto, que a autonomia vai além da responsabilidade fiscal e que os dirigentes não podem nunca perder de vista "os objetivos maiores da universidade, estabelecidos de maneira clara no decreto de criação da USP, com o desenvolvimento da cultura filosófica, científica, literária e artística, que constituem as base da liberdade e grandeza de um povo".
O processo que levou à autonomia das estaduais paulistas também foi o tema de um dos painéis do seminário, com a participação de Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, professor emérito da Unicamp e então secretário de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do estado, Frederico Mazzucchelli , secretário de Economia e Planejamento à época, e Carlos Vogt, vice-reitor da Unicamp no período e ex-secretário de Ensino Superior.
Além da autonomiaQuestões adicionais e até polêmicas sobre a importância e limitações da autonomia universitária e sobre ações complementares que deveriam acompanhá-la foram discutidas em duas palestras e um painel. Os palestrantes foram Cristovam Buarque, ex-reitor da UnB, ex-ministro da Educação e ex-senador, e Simon Schwartzman, um dos participantes do antigo Núcleo de Pesquisa sobre o Ensino Superior (Nupes) da USP, criado em 1989, e ex-presidente da Fundação IBGE. José Fernando Perez, presidente da Recepta Biofarma e ex-diretor científico da Fapesp, e Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú, foram os expositores do painel "O Olhar dos Parceiros", representando, respectivamente, o setor empresarial e a sociedade civil. Para Buarque, a autonomia universitária precisa ser requalificada: "É preciso definir o porquê, o para quê e o como. O como tem sido muito discutido", disse. Ele ressaltou a distinção entre alforria e abolicionismo nas discussões antiescravagistas do século 19 para afirmar que "algumas universidades concedem alforria para alguns pobres" - referindo-se a políticas de inclusão - mas "não estão sendo instituições abolicionistas da pobreza, redutoras da desigualdade e promotoras de desenvolvimento sustentável". Ele considera que as universidades precisam pensar em fontes alternativas de renda, inclusive vendendo serviços e recebendo doações sem condicionamentos, e ampliar a eficiência ("há margem para aumentá-la e reduzir custos"). "A autonomia só será garantida se a universidade prestar os serviços de interesse da sociedade, tendo legitimidade além de legalidade", disse. Para ele, a autonomia deve estar a serviço de um novo humanismo: "Precisamos trazer a filosofia para todas as áreas. Os filósofos vão ficar contra, mas são eles que nos inspiram. Precisamos espalhar na universidade o sentimento de crise do paradigma". Em sua palestra, Schwartzman disse que a reforma universitária de 1968 foi uma tentativa de trazer o modelo da universidade de pesquisa estadunidense em contraposição à ênfase na formação profissional. "Essa contradição existe até hoje, com 90% da universidade dedicada à formação qualificada e certificação profissional. Isso se reflete na autonomia". Segundo ele, o país tem hoje o maior percentual do mundo de estudantes no ensino superior privado, 76%. No estado de São Paulo, apenas 10% dos estudantes estão em instituições públicas. Ele destacou a pluralidade de modelos de instituições acadêmicas nos países ricos, onde 50% das pessoas têm acesso a esse tipo de formação, disse. A discussão deve ir muito além da autonomia, afirmou. "Ela é muito importante, porque não se consegue gerir essa pluralidade sem autonomia, sem uma estrutura de tomada de decisões." No entanto, disse ter dúvidas se o sucesso das universidades estaduais paulistas deve ser atribuído à autonomia. "Talvez elas pudessem ter esse mesmo resultado sem a autonomia financeira". Schwartzman considera irracional o percentual fixo de repasse de recursos em São Paulo. Para ele, deveria haver uma negociação ano a ano em função de resultados, compromisso de formar um certo número de pessoas, fortalecer a pesquisas em determinadas áreas, por exemplo. "O reitor da USP comentou sobre a dificuldade para usar o dinheiro, contratar professores. Autonomia efetiva significa flexibilidade para os gastos. Se não houver isso, não é autonomia, é estabilidade orçamentária.", afirmou. Essa flexibilidade exigiria transformações internas, mudança na legislação e um sistema de controle baseado num sistema de avaliação, disse. Ele também defendeu para as universidades públicas, entre outros aspectos, um sistema efetivo de autonomia na gestão de pessoal, escolha de dirigentes oriundos de outras instituições, acompanhamento público dos resultados e pluralidade de fontes de financiamento (federal, estadual, privado e internacional). Para Perez, a responsabilidade decorrente da autonomia torna central a prestação de contas e passa pela revisão dos mecanismos de governança da universidade. "Por que o reitor da USP precisa ser da USP? Na Universidade da Califórnia, o reitor é buscado por um comitê", exemplificou. Também citou o caso das organizações sociais, como o Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), cujo diretor é escolhido por uma comissão. Ele questionou também a concepção de que a universidade atualmente seja um fator de desenvolvimento: "Somos 2% da produção científica mundial, mas não somos 2% na Nature, na Science. Precisamos dar um salto, que requer uma mudança na governança". A exemplo de Buarque e Schwartzman, Perez também defendeu a diversificação das fontes de financiamento e o exemplo novamente foi a Universidade da California, "onde se vê muitos prédios de parcerias de longo prazo com empresas". Ele criticou ainda o fato de haver uma "recusa sistemática" em discutir a questão do pagamento pelo ensino recebido: "Existem mecanismos democráticos que não limitam o acesso de ninguém", afirmou, citando que na Austrália e na Nova Zelândia o ex-aluno paga no imposto de renda, de acordo com os resultados de sua carreira profissional. Para Saron, é preciso que a universidade discuta o mestrado e o doutorado profissionalizantes, de forma a fornecer pessoal qualificados para empresas. "Só 2% dos doutores atuam em empresas no Brasil, percentual que é de 17% nos Estados Unidos e 10% na Europa. Isso é uma tragédia. Denota o distanciamento da universidade do fazer brasileiro e o preconceito das empresas com a formação acadêmica." O modelo brasileiro de mestrados acadêmicos se autorreferencia, em vez de produzir mestre ligados à pesquisa aplicada, disse. "Esse caminho não fez tão bem para o país, sobretudo em função do que a inovação requer." Para ele, as empresas também precisam reconhecer o papel de mestres e doutores, "e se alguém tem capacidade de persuasão do empresariado é a universidade". Saron disse que a autonomia é muito importante para garantir o vigor da universidade, "mas é preciso pensá-la sob a perspectiva da interconectividade". |
Belluzzo contou que estava na casa da economista Maria da Conceição Tavares, na companhia de Celso Furtado, quando o governador Orestes Quércia ligou e lhe disse: "Você precisa vir aqui para encaminhar a autonomia financeira das universidades". Sua resposta foi: "O senhor não gosta de ver os reitores indo aí com o pires na mão?". Em seguida, ele e Mazzucchelli participaram da elaboração do Decreto 29.598/86.
Mazzucchelli disse que a concessão da autonomia foi politicamente determinada. "As circunstâncias políticas atuais são muito precárias. O Brasil piorou e a autonomia corre risco", alertou. Ele contou que estava no carro numa viajem com Quércia quando este bateu na sua perna e lhe disse: "Esse pessoal da universidade não gosta muito de mim, né?". Ele ficava incomodado com a ideia de que toda hora iria haver greve nas universidades, com os reitores indo reclamar por recursos, disse. "Ele era do PMDB. Nós éramos da ala comunista do partido. Havia surgido o PSDB, com o afastamento de gente do PMDB. O PT estava ativo. Aí ele me disse: 'E se a gente desse o dinheiro deles?'. Belluzzo foi o primeiro a pegar a ideia, mas não foi uma coisa fácil", relatou Mazzucchelli, apontando apoiadores e contestadores da autonomia tanto no Executivo quando no Legislativo da época. Belluzzo acrescentou que até entre pessoas das universidades havia reticências: "Uma delas me disse: 'Você quer trazer as greves para baixo das reitorias?'".
Vogt também comentou o momento político que propiciou a autonomia. "Com a promulgação da Constituição de 88 e a mudança do percentual da Fapesp de 0,5 para 1% da arrecadação foi criado um ambiente propício para a autonomia. E havia aliados fundamentais no governo. Houve também uma ação coordenada dos três reitores. Foi o gesto de política pública em relação ao ensino superior mais importante na história da universidade no país", afirmou.
Ele lembrou de "momentos críticos" para a autonomia. Um deles, disse, foi em 1995, quando o então governador Luiz Antônio Fleury Filho aumentou o percentual de 8,4% para 9,57%. Lembrou também dos debates sobre a divisão dos recursos, "uma questão superada". Outra dificuldade apontada por ele foi a criação, em 2007, pelo governador José Serra, da secretaria de Ensino Superior, subordinando as universidades a ela. "Foram dois meses de greve, de movimento. Eu era presidente da Fapesp e fui convidado a assumir a secretaria. Acabamos convencendo o governador que a autonomia das universidades não podia ser tocada pelas políticas que ele queria para a gestão do estado". Acabou saindo um decreto declaratório, redigido por ele e Belluzzo no Palácio dos Bandeirantes, e tudo continuou como antes, afirmou.
Vogt falou também da tentativa recente do governo de incluir a Univesp e as Faculdade de Medicina de Marília e de São José do Rio Preto no percentual destinados à USP, Unicamp e Unesp. "Graças às ações do Cruesp, houve um recuo. Mas precisamos desconfiar desse recuo, porque ele foi muito fácil. Ele se dá no contexto da mudança do sistema tributário do país. Vai-se aproveitar desse contexto para mais uma investida contra a autonomia", disse.
Panorama jurídico
A trajetória da autonomia universitária no contexto jurídico federal e estadual foi abordada em outro painel do encontro. Nina Ranieri, conselheira do IEA, professora da Faculdade de Direito da USP e ex-secretária adjunta de Ensino Superior do estado de São Paulo, disse que, do ponto de vista jurídico, a autonomia universitária não é uma novidade, com sua presunção remontando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1961, sendo constitucionalizada em 1988 e depois tendo uma avanço jurídico muito grande na LDB de 1996
Ranieri considera que há três fases distintas no processo a partir da Constituição Federal: de 1988 a 1996, que ela chama de fase de "Âmbito"; de 1997 a 2013, definida como de "Limites"; e de 2013 até o momento, que ela caracteriza como de "Controle".
Na primeira fase, ela vê as universidades experimentando o âmbito da autonomia e o sistema jurídico procurando entendê-la. Na segunda, a autonomia é vista além da parte orçamentária e as universidades exploram até onde ela pode chegar, "mas em 2013 muda o cenário econômico e isso traz consequências". Na terceira fase, a atual, discutem-se controles a serem aplicados à autonomia.A fase do Âmbito foi a menos complexa, segundo Ranieri. "A jurisprudência vai interpretar restritivamente o teor da autonomia. Alguns magistrados disseram que não mudou nada com sua introdução. Uma série de decisões do STF afirmaram que autonomia não é soberania. Algo óbvio, senão a universidade seria um Estado."
A fase dos Limites foi mais complexa, segundo ela, em função de dois movimentos. Um foi muito particular de São Paulo, com o aumento da arrecadação e consequentemente dos repasses às universidades. "Esse é o momento em que elas se expandem, com o aumento de vagas e de unidades. Outro movimento ocorre em função da própria LDB, que estabelece prerrogativas de autonomia e prevê a instituição de um estatuto jurídico especial para as universidades, algo que até hoje não existiu. Nesse período, "há autonomia, mas com uma série de travas para exercê-la", afirmou.
A fase atual, de Controle, é a de prestação de contas, com a universidade sendo cobrada a "atender o que lhe é demandado, apresentar seu orçamento com transparência, seu plano de ação, seu programa". Com a crise econômica de 2013 e problemas de gestão que atingem a universidade, surgem exigências e questões diversas, entre as quais a prestação de contas, a criação de ouvidorias, controles internos, atendimento à Lei de Acesso à Informação, dúvidas entre o que é público e privado, o atendimento de demandas sociais e conformidade exigidas pelos tribunais de contas, disse Ranieri.
Para ela, esse panorama contou com os avanços jurídicos muito palpáveis da LDB de 1996. "O ideal é que seja criado o estatuto jurídico especial para as universidades. Isso permitiria que elas saíssem da vala comum da administração pública", afirmou.
Marco Antonio Zago ressalvou que a autonomia garantida pelo art. 207 da Constituição Federal não é cumprida integralmente, mas que a situação já foi pior no passado: "A história das universidades no mundo é a história de sua luta pela liberdade, pois a autonomia é encarada com resistência, repulsa ou mesmo afronta por governantes autoritários".
Ele afirmou que graças à autonomia, o estado de São Paulo tem uma posição proeminente no panorama científico e tecnológico do país, "uma posição que excede em muito a sua dimensão econômica e populacional". Disse também que os governantes precisam entender que universidades boas custam caro, mas esse custo fica bem mais barato do que os prejuízos causados pela dependência tecnológica resultante de educação claudicante e falta de liderança".
Vahan Agopyan comentou que antes da autonomia, a USP já era uma universidade de renome, mas "esbarrava nas incertezas de seu equilíbrio financeiro", com dificuldades até para conseguir material de laboratório e manutenção dos equipamentos e atividades.
Ele disse que mesmo com a autonomia não foi simples cuidar das contas da universidades e que houve reitores que precisaram fazer empréstimos bancários para honrar a folha de salários. De qualquer forma, "se não tivéssemos a autonomia não teria sido possível enfrentar as dificuldades que a gestão Zago se defrontou em seu início".
"Sou um reitor que é constantemente pressionado para que estejamos entre as 50 melhores universidade do mundo. É nesse contexto que quero comentar a questão da autonomia", disse o reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. Ressaltou que autonomia não significa que se tem dinheiro para fazer o que se quer e que ela impõe um responsablidade muito grande. "Em dois anos e meio de gestão, já passei por três fases da arrecadação do ICMS: elevação, queda e estabilidade", afirmou.
Carlotti Jr. apresentou um panorama sintético de empecilhos à autonomia que ainda perduram ou podem retornar. Um deles é o teto salarial limitado ao salário do governador. "Eu era diretor de unidade e não recebia nada por isso, pois o salário batia no teto". Isso foi superado quando o ministro Dias Toffoli estendeu o teto vigente nas universidades federais a todas as universidades estaduais, "mas a qualquer momento o teto pelo salário do governador pode voltar", disse.
Os órgãos do governo e de controle não veem com bons olhos a autonomia, na opinião do reitor. "Temos de explicar o custo por aluno, por exemplo, pois fazem uma divisão simples do orçamento pelo total de alunos e nos comparam com outras instituições que não têm o que mantemos na USP."
O desafio atual é a mudança na arrecadação do estado, com a introdução de um novo imposto. "Precisamos encontrar um índice que mantenha o financiamento atual e é da sociedade que conseguiremos o apoio para isso. Ela vai pressionar quem dirige o estado a manter nossa universidade."
Ele comentou que há problemas também em pelo menos duas situações: "Somos cobrados a ter o desempenho de universidades estrangeiras, mas precisamos ter maior flexibilidade para contratar professores estrangeiros". Considerando que professores europeus recebem salários por nove meses, a proposta seria contratá-los alguns deles por três meses, no entanto, "não se pode colocar no edital que ele tenha vínculo no exterior", afirmou.
Há outras dificuldades para a contratação de docentes. "Gostaria de gente ligada ao setor produtivo na Escola Politécnica, pessoas com projeção de destaque em empresas, mas não posso contratar. Não conseguimos contratar uma pessoa jovem, com currículo menor. Ao passo que as universidades norte-americanas estão contratando professores com 31 a 33 anos, a média dá USP já está em 40 anos, isso aliado ao fato de que estamos formando doutores com 38 anos."
Outra mudança importante a ser obtida é quanto ao uso do dinheiro, disse Carlotti Jr. "Se a lei de licitações anterior era ruim, a nova [14.133/21] é muito pior. Preciso saber este ano se precisarei comprar um palito de fósforo no ano que vem. Estou com dois anos e meio de gestão e até agora não conseguir recuperar o telhado do prédio da Engenharia Civil", exemplificou.
Os resultados do seminário de Florianópolis
Este ano, a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) comemora 33 anos de sua autonomia, estabelecida de forma automática com a repetição na Constituição do estado do preceito estabelecido no art. 207 da Constituição Federal. No entanto, a questão nunca foi regulamentada por uma lei orgânica, disse a vice-reitora da Udesc, Clerilei Aparecida Bier.Antes de apresentar as conclusões do primeiro seminário do ciclo, realizado pela Udesc na Assembleia Legislatica de Santa Catarina, em Florianópolis, no dia 12 de junho, ela apresentou um histórico dos percalços da autonomia da universidade. Disse que a partir de 2016, com a crise econômica e a redução da arrecadação do estado, o governo começou a intervir na autonomia financeira da universidade, reduzindo recursos e demandando redução de gastos. "Nos últimos dias do governo anterior, a autonomia para contratação de professores foi sendo retirada, e no governo atual não há a possibilidade de decidir sobre concursos de professores efetivos, professres substitutos e gestão de horas extras."
Segundo Bier, a última tentativa de regulamentar a autonomia ocorreu em 2016: "A proposta encaminhada ao governo ficou parada na Procuradoria Geral do estado. O argumento foi de que, se fosse concedida a regulamentação, a autonomia poderia ser exercida de forma irresponsável na concessão de aumentos salariais e contratação de professores."
Ela afirmou que há seis anos não há reajuste salarial, que ficou sob a responsabilidade dos gestores do estado. "No final do ano passado, o atual reitor, José Fernando Fragalli, e eu resolvemos iniciar uma campanha pela restauração de nossa autonomia", disse.
A realização do primeiro seminário do ciclo foi muito importante, um marco em termos de repercussão política no Legislativo e no Executivo do estado, afirmou. A repercussão interna também foi positiva: "Conseguimos que uma proposta de lei orgânica para regulamentação da autonomia fosse endossada pelo Conselho Universitária por aclamação." A proposta foi encaminhada ao Grupo Gestor do governo e as tratativas no Legislativo estão em andamento, segundo Bier.
Também foi possível à universidade articular uma estratégia política com secretários e com o governador para pelo menos decidir sobre a contratação de professores substitutos e horas extras, "Foi uma pequena conquista, mas só foi possível devido à força do seminário", disse.
Fotos (a partir do alto): 1 e 2, Leonor Calasans/IEA-USP; 3, Solon Soares/Agência Alesc