A política externa brasileira sob o olhar crítico de Bernardo Sorj
Bernardo Sorj, professor visitante |
Nascido no Uruguai e naturalizado brasileiro, o sociólogo Bernardo Sorj tem interesse particular por temas ligados à América Latina. Diretor do Centro Edelstein de Pesquisa Social, voltado para o fortalecimento das democracias latino-americanas, atualmente ele se dedica também ao estudo "O Conflito no Oriente Médio: Alcances e Limites da Política Exterior do Brasil", projeto que está desenvolvendo como professor visitante do IEA.
Além de abranger esse foco de investigação dos últimos anos, a pesquisa guarda relação com sua formação acadêmica inicial: Sorj é graduado em história e sociologia pela Universidade de Haifa, Israel, onde também cursou o mestrado. É doutor pela Manchester University, Inglaterra, e pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, França.
Na seguinte entrevista, concedida à jornalista Flávia Dourado, o sociólogo, que é professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), falou sobre o estudo que vem conduzindo no IEA, com foco na política externa brasileira durante o governo Lula. De acordo com ele, "o discurso que enfatiza as relações Sul-Sul apresenta excessos retóricos e o sobreinvestimento na busca de uma vaga no Conselho de Segurança da ONU é questionável e deveria ser mais amplamente discutido".
Em seu projeto de pesquisa, o senhor diz que uma nova ordem internacional vem se estabelecendo, marcada pela multipolaridade, pelo aumento da autonomia de países em desenvolvimento e pela perda relativa da influência dos Estados Unidos no cenário global. Que fatores estão levando a essa mudança?
A nova ordem internacional, do ponto de vista geopolítico, se caracteriza pelo lugar central que os Estados Unidos ainda ocupam, único país com capacidade militar global. No entanto, esse poder militar não é infinito e os Estados Unidos precisam de aliados locais para assegurar sua hegemonia. Neste sentido, mais do que um mundo multipolar, trata-se de um mundo com hegemonia negociada, que exige uma maior flexibilidade na política exterior americana. No horizonte se perfila o surgimento de uma nova superpotência, a China, que no futuro poderá fazer frente aos Estados Unidos, embora ela enfrente uma situação muito complexa, rodeada de países com os quais tem problemas fronteiriços e rivalidades históricas. Um degrau atrás se encontram países que são centros de poder regional. Entre eles, vários países europeus e a Rússia — pelo seu poderio militar —, mas também a Índia, a Turquia e o Brasil. Do ponto de vista econômico, a multipolaridade é maior, e além dos polos representados pelos Estados Unidos e a Europa, a China passou a ocupar um lugar central, como principal parceiro comercial de um grande número de países.
Qual o lugar das "potências emergentes" como o Brasil nesse mundo multipolar?
O fim do comunismo aumentou a autonomia das elites locais, que deixaram de temer revoluções comunistas e não precisam mais do guarda-chuva dos Estados Unidos. Isso vale para todos os países latino-americanos. O Brasil, pelo seu peso territorial, demográfico e econômico, é o principal referente da política exterior na região, mas sua estratégia internacional ainda não chegou a se consolidar numa proposta coerente. Na América do Sul, o modelo econômico brasileiro, altamente protecionista, limita seu papel como atrator das economias vizinhas e sua capacidade de produzir cadeias industriais interligadas com a economia regional e global. O discurso que enfatiza as relações Sul-Sul apresenta excessos retóricos e o sobreinvestimento na busca de uma vaga no Conselho de Segurança da ONU é questionável e deveria ser mais amplamente discutido.
O senhor fala na configuração de uma hegemonia negociada. Quais as implicações disso para a regulação da nova ordem internacional?
Como mencionei anteriormente, a hegemonia negociada é uma exigência crescente de um sistema internacional que não possui a clareza do período da guerra fria e onde a principal potência, os Estados Unidos, perdeu peso relativo. Nesse contexto, países com poder médio procuram ampliar suas áreas de influência e seu papel nos fóruns e instituições internacionais.
Sua pesquisa concentra-se na política exterior brasileira durante o governo Lula. Como o senhor caracteriza essa política e em que medida ela representou uma ruptura com a política anterior?
Chamar de ruptura seria um exagero, inclusive porque o governo Lula teve que lidar com novas realidades que inexistiam no período Fernando Henrique Cardoso, como a política exterior de Hugo Chávez e os Brics. No caso da política exterior bolivariana, o governo Lula soube navegar de forma adequada, freando suas iniciativas mais radicais e/ou canalizando-as no sentido de criação de instituições sem maiores poderes, como a Unasur ou o Conselho de Defesa Sul-Americano. A principal distinção do governo Lula foi a mudança no sentido de um discurso mais radical, denunciador do Norte, a explicitação de apoio a candidatos em eleições de países vizinhos — o que significou um rompimento com a tradição de respeito à soberania nacional de cada país —, a ênfase nas relações Sul-Sul e um distanciamento nos fóruns internacionais em relação à defesa dos direitos humanos, que foi revertida no governo Dilma.
Há continuidade dessa política externa no governo Dilma?
Em geral o governo Dilma manteve as linhas básicas da política externa do governo precedente, mas com um ativismo internacional pessoal muito menor e sem as declarações controversas que caracterizaram o presidente Lula.
A política externa do governo Lula foi marcada pela defesa da estratégia de cooperação Sul-Sul, ou seja, da aproximação com países em desenvolvimento, como os latino-americanos e os africanos. Quais foram as principais transformações nesse âmbito e que efeitos políticos e econômicos essa estratégia ocasionou?
As relações comerciais do Brasil com a América Latina não aumentaram durante o governo Lula e o Mercosul aprofundou sua crise, por causa das dificuldades da Argentina. Apesar da retórica integracionista, o principal fenômeno dos últimos anos foi a criação da Aliança para o Pacífico — da qual o Brasil não faz parte —, que inclui o México, país que o Brasil marginalizou com sua ênfase na América do Sul. A suspensão do Paraguai quando da deposição do presidente Fernando Lugo ignorou os procedimentos definidos no tratado de Ushuaia. Parte dos investimentos do setor privado brasileiro na região, como o bancário, por exemplo, integram um processo natural de expansão de empresas na procura de novos mercados. A promoção de grandes empreiteiras em países vizinhos, como Bolívia e Equador, produziu duas crises quando os governos denunciaram as obras em construção. Os projetos de cooperação com a Venezuela na área energética não decolaram e ainda é cedo para avaliar a sensatez dos investimentos realizados por empresários brasileiros naquele país, que contaram com o apoio ativo do governo brasileiro. Na prática, o Brasil está enfrentando cada vez mais a concorrência de produtos chineses na região, e a elaboração de uma estratégia capaz de limitar os estragos ainda está por ser elaborada.
Durante o governo Lula, o Brasil reivindicou, sem sucesso, o ingresso no Conselho de Segurança da ONU. Como o senhor vê as perspectivas para que isso se concretize e quais seriam os principais benefícios para o país?
Durante muito tempo se argumentou que o principal empecilho para mudar a estrutura do Conselho de Segurança são os Estados Unidos, quando na prática o problema é mais complexo. A China não tem nenhum interesse nessa mudança, que levaria ao conselho países como o Japão e a Índia, com os quais mantém sérios contenciosos. Os gestos do Brasil para agradar a China na expectativa que ela apoiasse a demanda brasileira se mostraram infrutíferos. Pessoalmente, acredito que o Brasil não deveria investir tanto nesse tema, que ademais divide a América Latina, pois países como o México reivindicam que a vaga seja rotativa entre os países da região.
O objetivo central da sua pesquisa é analisar a atuação do Brasil na tentativa, com a Turquia, de negociação de um acordo em 2010 que resolvesse os impasses do programa nuclear iraniano. Como o senhor analisa aquela tentativa e o que ela representou para a imagem do Brasil perante a opinião pública internacional?
Ainda não possuo os elementos para realizar uma avaliação ponderada. O quanto o passo em falso deveu-se a uma leitura errada dos sinais enviados pelos Estados Unidos e o quanto foi produto do açodamento da equipe que assessorou o presidente, isso ainda é uma questão em aberto. O resultado foi penoso para o Brasil, que entrou numa mesa para a qual não tinha cacife suficiente.
Qual sua opinião sobre o posicionamento do Brasil durante o governo Lula em relação à questão palestina?
A postura do governo Lula foi equilibrada, defendendo a criação de um Estado Palestino convivendo com o Estado de Israel.
E quanto às iniciativas comerciais brasileiras voltadas para os países árabes?
Com a Primavera Árabe, caíram vários governos com os quais o presidente Lula procurou se aproximar. O Brasil deverá reavaliar sua política em relação aos países árabes, procurando parceiros que apresentem maior estabilidade política, como o Marrocos, por exemplo.
Foto: Arquivo de Bernardo Sorj