Colóquio revela imagem de Lina Bo Bardi pouco conhecida pelo público
Para a maioria do público leigo em arquitetura, quando se fala em Lina Bo Bardi, a principal associação é o projeto do Museu de Arte de São Paulo, o MASP, ou o restauro do Solar do Unhão, em Salvador. Mas o Colóquio Lina Bo Bardi em São Carlos, promovido nos dias 26 e 27 de maio pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP São Carlos em parceria com o Instituto de Estudos Avançados (IEA) Polo São Carlos da USP, o Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, a Etel Interiores e o Grupo de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo (Arqbras), mostrou que a importância e a ação de Lina para a arquitetura e a cultura brasileiras vão muito além.
O evento foi realizado não apenas no contexto da comemoração do centenário da arquiteta ítalo-brasileira, mas também das comemorações dos 30 anos da criação do curso de arquitetura na USP São Carlos e dos cinco anos do IAU. Entre os palestrantes, a maioria teve passagem pelo programa de pós-graduação do IAU.
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“É um momento interessante para pensar essa produção polarizada pela pós-graduação do IAU com o que está acontecendo nos últimos anos, essa onda de reconhecimento da Lina principalmente a partir de 2010, após a participação na Bienal de Veneza com a sala especial. Atualmente há muitos novos pesquisadores lidando com a produção da Lina aqui em são Carlos”, afirmou Renato Anelli, coordenador do IEA Polo São Carlos e professor do IAU, na abertura do evento.
Erudito, popular e a experiência de escrever Lina
O primeiro dia do evento contou com dois pesquisadores que, além de terem destaque em seu trabalho sobre Lina, relataram desafios em sua experiência. O arquiteto e professor do IAU Marcelo Suzuki, por exemplo, conviveu diretamente com Lina e teve a árdua tarefa de falar, durante o colóquio, sobre o erudito e o popular na arquiteta, duas condições que, segundo ele, num primeiro momento, aparentemente não poderiam estar juntas.
Ao falar da obra de Lina, Suzuki relacionou-a com as definições dos termos erudito, popular, nacional, cultura, clássico e acadêmico, passando por livros e tratados escritos pela arquiteta, bem como por seus projetos. Segundo Suzuki, a paixão pela cultura popular já estava enraizada na vida da arquiteta muito antes da restauração do Solar do Unhão. “Muitos acham que o fato da Lina ter ido em 1958 para a Bahia mudou a vida dela. Eu tento dizer que isso é um engano. Ela não foi procurar coisas, ela conhecia. Ela foi confirmar coisas”, disse.
A noite contou também com a apresentação do professor associado da Washigton University, em Saint Louis, Estados Unidos, Zeuler Lima. O docente detalhou a experiência de sua pesquisa sobre Lina, que durou 12 anos e resultou no livro “Lina Bo Bardi”, editado pela Yale University Press em 2013.
Dividida em três partes, a palestra foi baseada na composição “L'Allegro, il Penseroso ed il Moderato” de Georg Friedrich Händel. Na primeira, Lima relatou o encontro com o universo de Lina e seu primeiro contato com a arquiteta, durante uma palestra proferida por ela em 1989 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Na segunda parte, falou da experiência de escrever o livro e sua atuação como pesquisador – ou, como ele descreve, como “detetive”. Na terceira e última, explicou a organização utilizada para certas formas de narrativa na obra.
“Eu não queria fazer um texto acadêmico, mas sim algo para qualquer um que gostasse de ler sobre uma mulher fantástica, e também um material para historiadores. Pensei em fazer este livro como uma pinacoteca, no qual cada capítulo é um quadro. Cada capítulo tem cerca de seis mil caracteres, o que dá 40 minutos de leitura”, explicou.
Durante o debate, ao qual estava presente o diretor do IEA, Martin Grossmann, Renato Anelli citou um comentário de Barry Bergdoll, professor da Columbia University e organizador de uma exposição sobre Lina no início deste ano no Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York, em entrevista ao The Wall Street Journal. Bergdoll considera a arquiteta o único caso póstumo de starachitect, termo usado para descrever profissionais cuja fama e aclamação da crítica os transformaram em ídolos do mundo da arquitetura e, em alguns casos, até do público em geral.
“Ela não teve essa repercussão em vida. Há uma série de construções desse personagem em narrativa que não são estranhas à vontade dela de fazer história, à quantidade de vezes que ela reescreve sua história. Não é uma coisa que começou na morte ou no centenário. Ela mesma tem consciência desse processo, até como forma de se colocar e disputar espaço, o que não era fácil para uma mulher naquela época”, afirmou Anelli.
Tentativas de reconstrução
A continuação do evento, na tarde do dia 27, foi marcada por apresentações de pesquisadores ligados ao IAU. Todos os trabalhos analisaram a obra da arquiteta e sua atuação do ponto de vista cultural e, principalmente, histórico. “É importante o resgate do papel da Lina na história do Brasil, numa visão de desenvolvimento do País, da Lina como personagem”, afirmou Anelli.
A docente da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Maria de Fátima de Mello Barreto Campello fez uma reapresentação da defesa de sua dissertação de mestrado, intitulada “Lina Bo Bardi: as moradas da alma”. Nela, Maria de Fátima analisa a Casa de Vidro e a Casa de Valéria Cirell, residências projetadas por Lina em 1952 e 1958, respectivamente. Embora próximas fisicamente, no Bairro do Morumbi, em São Paulo, as obras apresentam características bastante distintas.
Com base nelas, a docente identificou três princípios em Lina: a poética do abrigo, a partir do qual o homem vê o mundo; o significado da geometria, que confere ordem e estabilidade diante do mundo em transformação; e a relação entre teoria e prática, dentro da qual muitas decisões são tomadas durante a obra, valorizando o conhecimento adquirido na hora do fazer.
Já o docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Juliano Aparecido Pereira utilizou como objeto de estudo em seu mestrado a passagem de Lina por Salvador entre 1958 e 1964 para entender como se deu a aproximação dela com a cultura popular, embora esse não fosse um primeiro contato. “Procurei pensar Lina não limitada à ação de arquiteta, mas como agente cultural empenhada em uma ação cultural, por sugestão do Renato [Anelli], meu orientador”, disse.
Pereira analisou a restauração do Solar do Unhão e a intenção de Lina em criar no local, além do museu de arte popular, uma escola de desenho industrial voltada a alunos de arquitetura, engenharia e artesãos, na qual seria feito um compartilhamento entre o saber acadêmico e a prática.
A terceira convidada do evento, a coordenadora do curso de Arquitetura do Centro Universitário Central Paulista (Unicep), em São Carlos, Ana Lúcia Cerávolo, abordou na obra de Lina como se desenha o quadro inicial da restauração crítica no Brasil.
Ana Lúcia lembrou que, do ponto de vista leigo, a restauração é compreendida como a conservação ou manutenção de um edifício em sua situação original. Porém, desde o século XIX, ela sempre teve o sentido de intervir no edifício, colocando-o no cenário atual, para que não ruísse ou fosse demolido. A coordenadora falou ainda do papel do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), na época dirigido pelo arquiteto Lúcio Costa e as interferências no restauro do Solar do Unhão, realizado por Lina. “O IPHAN buscava adequações das construções a uma brasilidade e isso fica claro nos embates com Lina, como quando ela propôs pintar os caixilhos de vermelho e o IPHAN determinou que deveriam ser azul colonial”, lembrou ela.
A arquiteta Vanessa Rosa Machado encerrou as apresentações falando sobre sua tese de doutorado “Dos ‘Parangolés’ ao ‘Eat me: a gula ou a luxúria?’ - mutações do ‘popular’ na produção de Lina Bo Bardi, Hélio Oiticica e Lygia Pape nos anos 1960 e 1970”. Sobre Lina, Vanessa ressalta que a inserção dela em seu estudo se deu pela produção textual relevante e a formulação de conceitos importantes para compreender o que a arquiteta entendia por produção popular.
Vanessa lembrou também que o popular, com o passar do tempo, ganhou outra visão, se distanciando do popular de raiz e dialogando com a cultura de massa e a indústria cultural.
Ao final, o docente do IAU Fábio Lopes de Souza Santos teceu comentários sobre as apresentações. Santos lembrou que a trajetória de Lina acontece entre os anos 50 e 90, período em que o processo de urbanização e industrialização do Brasil se completa.
“A Lina conseguiu construir um lugar muito privilegiado para desenvolver uma relação entre arquitetura, construção de espaços e a proposta da cultura do Brasil. Uma das coisas que chama a atenção é que, ao longo dessa trajetória, ela participa de uma série de eventos marcantes, ela é quase uma ‘Repórter Esso’, testemunha ocular da história, mas é mais que isso: ela participou”, afirmou ele.
Renato Anelli encerrou o seminário fazendo um balanço dos eventos realizados na comemoração do centenário de Lina Bo Bardi e um questionamento sobre a imagem da arquiteta que surge das festividades. “Dessa Lina que chegou ao Brasil para a Lina do centenário, sem discutir a Lina real, estamos tentando fazer um trabalho de historiador e chegar a uma visão que tenha coerência, já que é impossível reconstruí-la de verdade”, disse.