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Yvette Veyret detalha como a França lida com os riscos naturais

por Mauro Bellesa - publicado 06/08/2015 18:05 - última modificação 09/11/2015 19:52

A geógrafa francesa Yvette Veyret fez a conferência "A Gestão dos Riscos Naturais na França" no dia 25 de junho, dentro da programação do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade.
Yvette Veyret
A geógrafa Yvette Veyret é considerada
uma das maiores autoridades
mundiais em riscos naturais

A questão do risco natural foi incorporada no final dos anos 80 pela geografia francesa, que passou de um perfil muito setorizado, com a geografia física totalmente separada da humana, para uma geografia global, sobretudo no que se refere ao meio ambiente. A explicação é da geógrafa Yvette Veyret, professora emérita da Université Paris Ouest Nanterre La Défense.

Ela esteve no IEA no dia 25 de junho para fazer uma conferência sobre a gestão de riscos naturais na França, a convite do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade. O evento teve como debatedoras as professoras da USP Ana Fani Alessandri Carlos, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, e Helena Ribeiro, da Faculdade de Saúde Pública. O moderador foi o coordenador do grupo de pesquisa, Pedro Jacobi, professor da Faculdade de Educação (FE) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (Procam) da USP.

Geossistema e geoambiente

Yvette lembrou que o geógrafo Georges Bertrand definiu como geossistema um aspecto global que atende a um questionamento social. “Trata-se de uma nova maneira de pensar a geografia física, insistindo nos tempos de evolução da natureza, que não são iguais aos tempos de evolução das políticas.”

No livro “Géo-Environnement”, de 1999, ela propôs que o conjunto de geossistemas seja chamado de geoambiente, para servir adequadamente à noção geográfica na qual a sociedade está no centro do sistema, “diferentemente de outras abordagens, onde o meio ambiente físico é determinante para um certo número de discursos ecologistas na França”.

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A geógrafa frisou que o risco ambiental é fruto de processos físicos ou tecnológicos, envolvendo eventos imprevisíveis e vulnerabilidades diversas. Segundo ela, durante muito tempo discutiu-se os processos ligados a eventos imprevisíveis, mas depois, com o estudo de trabalhos americanos sobre o vale do rio Mississippi, “descobriu-se que havia a questão da vulnerabilidade a ser considerada, que compreende as fragilidades dos sistemas social, político e humano em geral, que convergem no risco, que é o imprevisível percebido e vivido”.

Redução do perigo

“O risco é analisado geralmente após a crise, quando se faz um balanço da catástrofe para avaliar se ela foi bem gerida, por quem, como e o que pode ser melhorado. É a partir disso que se obtém a diminuição do perigo.” Esse processo de  redução de riscos realiza-se na França em quatro etapas principais, segundo Yvette:

• informação – fazer com que as pessoas saibam que há perigo;

• proteção – “política que na França data de antes do século 17, quando começaram a ser construídos diques contra inundações no litoral, cortar faixas de floresta para evitar incêndios e adotar outras medidas”;

• prevenção – o cerne da questão, um verdadeiro ordenamento do território para evitar o perigo, incluindo regulamentação e planificação;

• previsão – alertar as pessoas que alguma coisa vai acontecer.

Yvette destacou que o sistema de gerenciamento de riscos na França é bastante trabalhoso devido à complexidade da organização do território. São 36 mil “communes” (municipalidades), administradas por um prefeito eleito e distribuídas em uma centena de regiões (com um governador nomeado pelo Estado e um presidente eleito), que, por sua vez, estão agrupadas em 22 departamentos, que devem se tornar 13 em breve (também com um governador nomeado pelo Estado e um presidente eleito).

Principais catástrofes

Na França, de acordo com a geógrafa, as catástrofes naturais mais comuns são: 1º) inundações fluviais e por chuvas nas encostas, 2º) movimentações de terreno, 3º) tempestades e 4º) inundações marinhas. As principais catástrofes tecnológicas são: 1º) problemas em instalações industriais, 2º) acidentes no transporte de produtos perigosos e 3º) danos em canalizações (gás, óleo etc.).

Em 2013, uma seca em Paris com temperaturas em torno de 35º C resultou em 15 mil mortes a mais do que a média em verões normais. “Isso demonstrou a fragilidade da França em relação ao calor”. Em 2010, tempestades litorâneas levaram a 50 mortes, “o que é pouco se comparado com o que acontece em países como a China, mas é muito para a França, já que temos uma política de gestão dos riscos muito importante”.

Eventos imprevisíveis

Segundo Yvette, as catástrofes imprevisíveis devem ser analisadas a partir de sua dinâmica física: “É preciso conhecer o fenômeno, sua intensidade e a probabilidade de reincidência”. Além disso, “é preciso analisar se se vai gastar milhões para atender a um perigo maior, que talvez só se repita em 700 anos, ou os gastos serão direcionados a perigos menores e que se repetem a cada dez anos”.

Todavia, ela alerta que é preciso considerar que os eventos extremosos podem se tornar mais frequentes e mais graves nas próximas décadas em função das mudanças climáticas, tornando-se necessário prevê-los e cuidar da administração, ordenamento e aparelhamento do território em função dessas expectativas.

Vulnerabilidade

Yvette disse que a vulnerabilidade de um sistema pode ser analisada de várias maneiras, observando-se a quantidade, a intensidade e os danos potenciais de um provável evento. “Em primeiro lugar, deve-se verificar a densidade da população, o número de edifícios, as técnicas de construção, a qualidade da canalização de água e fatores técnicos agravantes, que se juntam a fatores econômicos.” O fator cultural também conta, segundo ela, pois pode haver ignorância sobre o perigo, banalização do risco ou até mesmo sua aceitação por razões religiosas.

Há também os fatores institucionais e político-administrativos, como “as várias camadas da organização político-administrativa da França, com instâncias de decisão que muitas vezes elegem outras prioridades em detrimento da prevenção e gerenciamento de riscos”.

Yvette disse que uma metrópole é o espaço mais vulnerável para todos os perigos: desastres naturais, tecnológicos, efeitos encadeados, poluição, risco a saúde e outros eventos. “A localização da metrópole também implica em danos econômicos. Se Paris sofresse uma inundação como a ocorrida em 1910, ficaria alagada de dois a três meses, sendo afetados os centros de decisão, os museus, o metrô, os trens, a rede rodoviária, os reservatórios de água e o sistema de eletricidade. Não haveria vítimas, mas os danos econômicos seriam gigantescos.”

Ações

Segundo ela, existe a obrigação na França de o poder público informar sobre prováveis enchentes e atualizar um atlas sobre zonas inundáveis e a situação dos diques.  “O prefeito de cada município deve preparar detalhadamente o Plano Comunal de Salvaguardas, do qual devem constar os maiores riscos para seu município, relacionados a partir de informações locais e de outras enviadas pelos governos central, departamental e regional.”

A segunda linha de ação é de caráter preventivo, englobando políticas urbanas, equipamentos públicos, ordenamento territorial e preceitos de desenvolvimento sustentável, como o de não construir em zona inundável. Segundo ela, há muitas leis e regulamento, mas é difícil impô-los.

Um aspecto importante é fazer obras agrícolas que reduzam o fluxo de água a jusante. “Depois da segunda guerra, a França utilizou o modelo americano de  grandes cultivos; agora estamos voltando à criação de zonas úmidas que regulem as inundações e a um novo modelo de gestão das bacias hidrográficas.”

Sensação de proteção

Ela alertou, que a sensação de proteção às vezes contribuiu para agravar a vulnerabilidade, porque muitas pessoas se estabelecem atrás dos diques e barragens e acreditam que estão protegidas.

Em termos de acompanhamento, disse que há um mapeamento dos riscos de grandes chuvas no território francês e um monitoramento hora a hora dos rios consultável na internet.

No caso das ondas de calor, há três níveis de alerta, indo do nível 1, com recomendações à população, passando pelo nível 2, que prevê o risco de grande seca e lança um plano de ação departamental, e chegando ao nível 3, com mobilização máxima e requisição, por parte do primeiro-ministro, de todos os meios para a gestão de uma catástrofe.

Ainda do ponto de vista da informação ao público, o país conta com um sistema de símbolos padronizados para os vários tipos de evento ou risco ambiental.

Papel da geografia

O primeiro ponto da exposição de Yvette destacado pela debatedora Ana Fani Alessandri Carlos foi “o papel que a geografia pode trazer na compreensão dos problemas, porque os eventos imprevisíveis [chamados em francês de 'aléas'] e riscos são espaciais e temporais e sua síntese se realiza no atlas que os indica.” Ela destacou o plano da política com o segundo a ser considerado, pois é nele que "se produz a administração do espaço, com vistas à gestão e a prevenção de riscos”.

A questão da escala dos acontecimentos também foi comentada por ela: “As escalas são importantes no planejamento e articulá-las para isso é um problema muito grande no Brasil; ao mesmo tempo que surgem novos problemas, como o turismo, que se expande por todo o planeta e é um fator importante de risco e político”.

Ana disse que a escala de problemas nas áreas metropolitanas é grave não só em razão da aglomeração de pessoas, mas também por que as metrópoles concentram um poder político de atividades muito relevantes, aumentando os riscos. Por causa disso, julga imprescindível o diálogo (“quase ausente no Brasil”) entre a geografia física e a geografia humana, tendo como ponto de união o debate sobre os riscos ambientais.

Desigualdade

Para ela, os riscos de inundações e incêndios podem ser produzidos socialmente, aparecendo, no caso brasileiro, “diretamente ligados ao processo de construção do espaço urbano, profundamente desigual em termos de renda e de classe”.

“O desenvolvimento fundado mais no crescimento econômico do que no desenvolvimento social faz com que a população pobre seja expulsa da cidade, sendo obrigada a ocupar as vertentes e fundos de vale.”

Do ponto de vista do risco aumentado pela aglomeração de pessoas em habitações precárias, a questão é “como planejar de forma a impedir que desastres aconteçam e ao mesmo tempo assegurar que as pessoas tenham direito à cidade”.

“Nos planos diretores, as áreas onde essa população podia morar são aqueles que a especulação imobiliária impede que isso aconteça. E quando o plano prevê áreas mistas, a população de maior poder aquisitivo impede a implantação desse tipo de política.”

Helena Ribeiro relacionou aspecto apresentados por Yvette na conferência à geografia da saúde, sua especialidade. Disse que a área se apropria em parte do conceito de prevenção da epidemiologia ao lidar com a prevenção de riscos naturais. Para isso, leva em consideração três níveis de prevenção: primária (evitar que o dano ocorra); secundária (acontecido o desastre, evitar que as consequências sejam agravadas); e terciária (prevenir futuras sequelas).

América Latina

Segundo ela, o maior número de desastres ambientais na América Latina com efeito na saúde pública são aqueles relacionados com deslizamentos de terrenos e inundações – como na França, mas com número maior de mortos e feridos/doentes –, vindo em segundo lugar a seca e em terceiro o derramamento de óleo.

A elevada densidade populacional das metrópoles como agravante da vulnerabilidade também é uma realidade na América Latina, acrescentou, “sobretudo quando associada à pobreza, fragilidade das construções e mal gerenciamento da água”.

Segundo ela, o Brasil tem se preocupado recentemente com os riscos e as vulnerabilidades ambientais, “não de forma tão articulada como na França, mas buscando integrar diferentes áreas do conhecimento e setores de atuação, incluindo os Ministérios da Cidade, da Saúde e do Meio Ambiente e os serviços de defesa civil". No entanto, ainda há muita dificuldade para a realização de ações intersetoriais coordenadas, completou.

Helan disse que atualmente já é obrigatório que as prefeituras façam mapas de riscos e sinalizem morros com risco de deslizamento e áreas sujeitas a inundação, mas isso é muito pouco obedecido. “Há até alarmes instalados para situações mais graves, mas até isso não tem sido obedecido pela população, que não quer largar os seus pertences.”

Helena finalizou destacando que viver em situação de risco ambiental afeta não só a saúde física, mas também a saúde mental de muitas pessoas, com o aumento da ocorrência de depressão, síndrome do pânico e outros distúrbios.