Presidente do Banco dos Brics destaca oportunidades para o Brasil na nova fase da globalização
A globalização está entrando num novo ciclo, que deve alterar o panorama dos países e do mundo nos próximos 15, 20 anos, segundo o diplomata e sociólogo Marcos Prado Troyjo, presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB na sigla em inglês), conhecido como o "Banco dos Brics", uma vez que foi criado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (atualmente inclui outros países).
A essência dessa nova fase da globalização é a mudança para um novo ciclo, depois de tantos outros como cana-de-açúcar, café, borracha, aço e microprocessadores.
"Trata-se do ciclo do talento, com a substituição da factory pela mind factory. E qual é a grande instituição geradora de talento? É a universidade", afirmou Troyjo no dia 10 de agosto em exposição [assista ao vídeo] em encontro do ciclo A USP e Governança Global, organizado pelo IEA. O evento foi precedido de assinatura de Protocolo de Intenções para Cooperação Internacional entre a USP (no interesse do IEA) e o NDB [leia abaixo].
Para ele, essa e outras características dessa nova fase da globalização compõem um cenário com oportunidades sem precedentes para o Brasil e instituições como a USP.
PerfilDiplomata de carreira, Marcos Prado Troyjo foi eleito em maio de 2020 para presidir por cinco anos o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), no qual anteriormente foi presidente do Conselho de Administração e diretor para o Brasil. Ele é doutor em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e realizou pesquisa de pós-doutorado na Universidade Columbia, EUA, na qual lecionou na Escola de Assuntos Internacionais e Públicos e no Centro de Governança Econômica Global. Também atuou como docente na Academia Presidencial Russa de Economia Nacional e Administração Pública (Ranepa), onde foi professor visitante. Troyjo ocupou os cargos de secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, governador suplente do Brasil no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), membro do Comitê de Desenvolvimento do Banco Mundial (Bird) e representante em nível de diretoria em várias outras instituições multilaterais de desenvolvimento. Também atuou nos conselhos consultivos de diversas instituições com e sem fins lucrativos. Ele foi colunista de opinião do jornal Folha de S.Paulo e escreveu também para outros veículos de comunicação no Brasil e no exterior. É autor, entre outros, dos livros "Tecnologia e Diplomacia", "Nação-Comerciante" e "Manifesto da Diplomacia Empresarial e Outros Escritos". |
Infraestrutura
As outras características vislumbradas por Troyjo são três: o mundo economicamente emergente torna-se mais relevante do que o mundo industrial ou pós-industrial; há uma reconfiguração não apenas das cadeias de suprimento, mas sobretudo das redes globais de valor; e percebe-se uma metamorfose do que significa infraestrutura.
"Até recentemente, a infraestrutura era física, englobando portos, aeroportos, estradas, ferrovias etc. Agora há uma simbiose entre a infraestrutura física e o que é intensivo em tecnologia, mesmo na chamada infraestrutura social. Não basta ter um prédio de escola se não estiver conectado de alguma fora, seja por problema de infraestrutura de comunicação, seja por problemas de conteúdos e de equipamentos como tablets."
De acordo com Troyjo, um especialista a quem perguntou qual era o maior problema de infraestrutura da atualidade respondeu que era o fato de meio bilhão de crianças de até 12 anos ficarem, em razão da pandemia, sem aulas presenciais e sem aulas remotas, pela falta de acesso de escolas e alunos à infraestrutura de conexão, aos conteúdos e aparelhos de acesso. "O mesmo vale para o sistema de saúde. O prédio físico do hospital tem de estar conectado para poder, por exemplo, informar a outras unidades, de forma rápida, a incidência de determinada doença."
O NDB está "muito atento" a essa metamorfose da infraestrutura e vê esse aspecto como uma grande oportunidade de cooperação com a academia, afirmou Troyjo. "Se há uma nova infraestrutura, deve haver uma nova política de desenvolvimento. E se há essa nova política leva em conta as mudanças infraestruturais na economia 4.0, então teremos uma história a ser construída."
Alterações na globalização
Para ele, vive-se um momento que daqui a 150 anos será visto pelos historiadores como "uma mudança de época, o início de um novo ciclo". Disse se pautar pela premissa de que os países ficam mais prósperos e influentes quando se adaptam competitivamente aos contornos cambiantes da globalização. "Mas a globalização é como se fosse um ecossistema, um organismo que evolui, com certas características sendo válidas durante algum tempo e depois o quadro muda."
Para contrastar com a atualidade, Troyjo comentou o quadro geral de 30 anos atrás, marcado por quatro aspectos. O primeiro sendo a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética: "Havia a ideia de que o Ocidente tinha triunfado, resumido no argumento de Francis Fukuyama sobre o fim da história. Era um momento eufórico de final da guerra fria".
O segundo aspecto era a constatação de "uma tendência de mudança do meridiano geoeconômico do Atlântico para o Pacífico. Falava-se pouco sobre a China. Na época, a influência vinha do Japão". A consolidação de grandes áreas de cooperação, por meio de acordo e tratados como o de Maastricht, do Nafta e do Mercosul, é apontada por Troyjo como a terceira característica do período.
A forma como a inovação era concebida no início dos anos 90 era o quarto componente da caracterização geral do início daquela década. "A inovação era vista como uma reinvenção corporativa, própria de grandes empresas transnacionais. A IBM fazia máquinas, enormes mainframes com sistemas de refrigeração tão grandes quanto os computadores. Considerava-se que apenas as grandes corporações tinham estrutura e recursos para a inovação." Ele citou como referência para a mudança desse quadro o fato de 35 entre as 50 empresas com maior valor na Nasdaq não existirem no começo dos anos 2000.
Assinatura do Protocolo de Intenções
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Para Troyjo, os países que se tornaram mais prósperos no período de "globalização profunda" iniciado naquela época foram os que se adaptaram competitivamente a um ecossistema que conjugava quatro fatores: ideias de livre mercado, democracia representativa e Estado de Direito; atenção à mudança do meridiano econômico para a Ásia; aumento do tamanho de escala de integração regional; e embarque na onda da inovação, sobretudo a partir das grandes corporações.
"Esse ecossistema de globalização foi predominante até a crise de 2008. Parece que pisamos no freio da globalização profunda e ela mudou. Os paradigmas surgidos com a tese do fim da história passaram a ser criticados", disse.
A mudança das "placas tectônicas da economia em direção à Ásia" passou a ser liderado pela China, não mais pelo Japão. A validade dos processos de integração econômica e política também passou a ser criticada: "Vejam-se a decisão de 2016 dos britânicos em deixar a União Europeia; a decisão dos EUA em renegociar o Nafta, que até mudou de nome; e o caso do Mercosul, que ficou durante muito tempo algo imobilizado".
A ideia de inovação também passou por uma mudança importante. "Não apenas os gigantes corporativos continuaram motores da inovação, pois rapidamente as startups tornaram-se vetores agilíssimos da atividade."
Riscos de desglobalização
Troyjo considera que o mundo passou de um modelo de globalização profunda para o risco de um modelo de desglobalização, que "começou em 2008 e talvez ainda não tenha terminado". No entanto, sua minha impressão é que esse quadro de risco de desglobalização vivido nos últimos 15 anos também esteja passando por uma metamorfose.
"Muitos acham que um elemento essencial dos novos fatores seja o fato de que ainda estamos vivendo os efeitos da Covid-19. Outros vão dizer que vivemos também um grande intervalo, pois muitas decisões econômicas de longo prazo estão com o freio de mão puxado, pois queremos um pouco mais de clareza no horizonte e, portanto, esse prolongamento da pausa cria uma sensação geral de subdesempenho da economia, com uma série de efeitos sociais graves em diferentes partes do mundo."
Troyjo acrescenta que há quem veja nesses dois efeitos indícios de algo parecido com os anos 30, com a Grande Depressão. Há ainda a associação disso a uma "estonteante expansão" da base monetária. "Um e cada seis dólares atuais não existia há 18 meses." Ele considera que essa expansão se deu muito como reação ao momento mais grave da pandemia, que teria influenciado as decisões econômicas, tendo como resultado a elevada inflação na Europa e nos EUA.
"Algumas pessoas dizem que estamos numa repetição do cenário de estagflação - baixo crescimento, possível recessão e inflação - ocorrida na virada dos anos 70 para os 80, que prenunciou, dentre outras coisas, a crise da divida dos países latino americano nos anos 80, a chamada Década Perdida."
Há ainda o fato de o mundo estar vivendo, com a guerra na Ucrânia, a situação mais delicada desde o final da Segunda Guerra, afirmou. Mas ele não considera todos esses "vetores fragmentários as principais características da globalização que vem por aí, pois há outras coisas que terão impacto maior e mais duradouro".
O fenômeno a predominar deverá ser, segundo ele, o desempenho das economias emergentes: "Se considerarmos o PIB combinado, com paridade de poder de compra, dos países do G7 (EUA, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Canadá e Itália), estaremos falando de 49 trilhões de dólares. Se somarmos o PIB combinado, também com paridade de poder compra, dos países que chamo de e7, as sete maiores economias emergentes (China, Índia, Brasil, Indonésia, Rússia, México e Turquia), o total é de 60 trilhões de dólares, 20% mais que do G7. Isso é uma coisa muito importante."
Redes de valor
Isso deverá marcar o mundo nos próximos 15, 20 anos, com impactos diretos nas redes globais de valor, segundo Troyjo. "Falo delas e não de cadeias globais de suprimentos, porque as de valor são um fenômeno muito mais abrangente do que apenas a questão da produção em si, da oferta em si, dos suprimentos em si. Elas abarcam as redes globais de demanda, de marketing, de pesquisa, de desenvolvimento e inovação, portanto, são redes globais de conhecimento e que afetam a divisão internacional do trabalho."
Como exemplo disso, citou as mudanças no perfil do comércio exterior brasileiro. De acordo com Troyjo, o comércio bilateral Brasil-China em 2001 era de 1 bilhão de dólares por ano e agora esse é o valor atingido a cada 60 horas. "Em 2021, o Brasil exportou mais para Cingapura do que para a Alemanha, para a Malásia do que para a Itália, para a Tailândia do que para a França, para a Coreia do Sul do que para a Espanha, para Bangladesh do que para Dinamarca, Noruega, Austrália, Nova Zelândia e Israel juntos."
De acordo com Troyjo, o Brasil exporta para a Ásia, excluindo-se Oriente Médio, China e Japão, mais do que exporta para a União Europeia. E exporta mais para a China do que para os Estados Unidos, União Europeia e Mercosul juntos.
Em 2021, a corrente comercial (soma de importações e exportações) do país atingiu meio trilhão de dólares, com as exportações chegando a 280 bilhões de dólares e superavit comercial atingindo 61 bilhões de dólares, disse. "É a maior corrente comercial da história, maior nível de exportações da história e o maior superavit comercial da história. E os números até julho deste ano indicam que estamos com desempenho 20% maior do que o do ano passado, com toda a probabilidade de fecharmos o ano com 600 bilhões de dólares de corrente comercial."
Troyjo comentou estudo que fez - quando era secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia - sobre o grau de abertura das economias dos países. "Um dos critérios para essa análise é somar as importações e exportações e ver quanto o total representa em termos percentuais do PIB. A China, no começo dos anos 2000, quando crescia 12, 13% ao ano, apresentava um total de 65% do PIB. Hoje ela cresce 4,5, 5% e aquela soma representa 37% do PIB."
O valor para o Brasil em 2018 chegava a 19% do PIB e só três países tinham percentual menor: Cuba, Sudão e Turcomenistão, disse. "Agora, se levarmos em conta o PIB nominal brasileiro de 1,8 trilhão de dólares em 2022 e que o país venha a ter uma corrente comercial de 600 bilhões, ela representará 30% do PIB."
"Quando o atual governo começou, uma das prioridades era a reforma da Previdência, que representará 1 trilhão de reais de economia aos cofres públicos ao longo de uma década. Nos próximos 10 anos, a China importará 25 trilhões de dólares do Brasil, 2,5 trilhões por ano. O Brasil, pela média dos últimos anos, corresponde a 4% de tudo que a China compra do mundo. Se nos próximos anos apenas mantivermos esses 4% das compras chinesas, ingressarão no país 100 bilhões de dólares por ano, que correspondem a 520 bilhões de reais. Isso significa que o Brasil terá o equivalente a uma reforma da Previdência a cada 20 meses, seis reformas em 10 anos. São números brutais, ainda mais se levarmos em consideração outras características desse novo período da globalização."
Demanda por alimentos
Troyjo destacou também perspectivas atraentes para o Brasil em razão do perfil de consumo das economias emergentes da Ásia nos próximos 20 anos. De acordo com ele, se levados em conta os cerca de 1,5 bilhão de chineses, 1,4 bilhão de indianos, 280 milhões de indonésios, 230 milhões de paquistaneses e 180 milhões de bengaleses, "estaremos falando de um contingente gigantesco da população que vai crescer a taxas econômicas superiores a 7% ao ano, o que significa dobrar a renda per capita ao longo de uma década".
"Se pensarmos num país asiático com grande população e renda per capita de 3 mil dólares que dobrará para 6 mil dólares, sabe-se pela experiência e pela literatura econômica que o aumento da renda será direcionado para o consumo de alimentos. As pessoas comem mais e os países investem mais em infraestrutura".
A demanda mundial por alimento, alterada em termos recentes, tem essas mudanças por razões muito mais profundas, estruturais e duradouras do que apenas problemas logísticos ou do conflito geopolítico no coração da Europa, afirmou. "O mapa da demanda mudou para sempre." Para Troyjo, é um erro os jornais falarem de um novo boom, um novo ciclo de commodities: "As coisas estão mudando estruturalmente e isso vai gerar uma série de oportunidades para países como o Brasil".
Um diferencial importante nesse processo, segundo Troyjo, será em que medida o Brasil conseguirá agregar conhecimento às atividades produtivas e desse modo agregar valor, "mesmo em setores em que temos vantagens comparativas".
Fosto: Cecília Bastos/SCS-USP