Os critérios para a definição da nova época geológica, o Antropoceno
Sonia Maria Barros de Oliveira: "Os tecnofósseis caracterizariam a passagem para a nova época" |
De acordo com a geoquímica Sonia Maria Barros de Oliveira, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, já estão bem adiantados os trabalhos da Comissão Internacional de Estratigrafia, organismo da União Internacional de Ciências Geológicas, para a definição de uma nova época da Terra, o Antropoceno, resultante do impacto das ações humanas no planeta. A decisão final será tomada em 2020, durante o Congresso Internacional de Geologia em Nova Delhi, Índia.
Sonia fez a exposição central do encontro Conversa sobre o Antropoceno, no dia 24 de abril. Debateram com ela o jornalista Reinaldo José Lopes, da "Folha de S.Paulo", e o economista José Eli da Veiga, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, que coordenou o evento. O encontrou tratou dos critérios para a definição da nova época geológica a partir dos pressupostos das ciências naturais, sem deixar de lado considerações vinculadas à ciências sociais.
Logo no inicio, Veiga alertou que não é possível discutir o Antropoceno sem levar em considerar o debate sobre o Sistema Terra [discutido por Carlos Nobre, do Inpe, em encontro no dia 10 de abril], cuja formulação "foi bastante influenciada pela hipótese Gaia". Proposta pelo cientista britânico James Lovelock em 1979, essa hipótese considera o planeta um único organismo vivo.
O termo “Antropoceno” já era utilizado de forma não rigorosa há algum tempo, mas “só pegou mesmo a partir do momento que foi utilizado por Paul Crutzen", segundo Sonia. Ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1995, Crutzen utilizou o termo em encontro do IGBP (Programa Internacional Geosfera-Biosfera) em Cuernavaca, México, em 2000.
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“Em janeiro de 2002, ele publicou o artigo ‘Geology of Makind’ na revista 'Nature’. Nele, Crutzen defendeu que o começo da Revolução Industrial, nas últimas décadas do século 18, seja considerado o marco do início do Antropoceno.”
Sonia destacou que a espécie humana interfere na natureza desde seu surgimento há cerca de 200 mil anos, mas, até o fim da última era glacial, há 12 mil anos, quando se inicia o Holoceno, a população do planeta era muito pequena e “esteve à beira da extinção muitas vezes”.
A população só se estabilizou com o início do Holoceno. “Começou a sedentarização, houve a invenção da agricultura e o aumento da população. A partir desse momento a intervenção na natureza começa a se tornar mais evidente.”
Segundo Sonia, naquela época, a população do planeta era de um milhão de habitantes. “Em 1500, era de 450 milhões. O crescimento se expande fortemente a partir dos anos 50 e hoje somos 7,6 bilhões de habitantes.” A curva do consumo de energia doméstica cresceu em paralelo à curva do crescimento populacional, “mudando a participação dos gases de efeito estufa na atmosfera”.
Duas questões se colocam para definição da nova época geológica, explicou: se os depósitos geológicos mostram uma assinatura realmente distinta daquela do Holoceno; e a partir de quando esses sinais são marcantes ao ponto de se poder dizer que a Terra está em outra época de sua história. “É preciso saber se os fósseis são diferentes e se as assinaturas geoquímicas das rochas são diferentes antes e depois do limite definido.”
Em sua opinião, os tecnofósseis presentes nos estratos caracterizariam a passagem para a nova época: “Os três principais são o alumínio metálico – antes havia apenas o alumínio associado ao oxigênio -, plástico e concreto”. Sonia elenca também como fatores relevantes a presença de partículas carbonáceas no solo, resultantes da queima de combustíveis fósseis, e a descontinuidade na biodiversidade, com a extinção de várias espécies.
“A partir do século 20, a taxa de extinção tornou-se muito elevada. Na história da Terra, já houve cinco grandes extinções, que marcaram mudanças de períodos. Agora estaria acontecendo a sexta grande extinção de espécies, com grande mudança no conteúdo fossilífero”.
Em relação à emissão de CO2 pela queima de combustíveis fósseis, Sonia afirmou que é também a partir dos anos 50 que isso cresce vertiginosamente. “Antes, a maior contribuição para as emissões de CO2 vinha das queimadas; hoje elas respondem por apenas 10% das emissões.”
Outra alteração nos solos é a associada à interferência humana nos ciclos do fósforo e do nitrogênio, utilizados na produção de fertilizantes. "Em paralelo ao crescimento da população aumenta, o uso de fertilizantes torna-se intensivo para a produção de comida. A partir dos anos 50, há grande produção de fósforo a partir de rochas fosfáticas.”
Ainda quanto à formação de rochas, outra peculiaridade a ser utilizada na definição do Antropoceno é a mudança no regime de sedimentação na foz dos rios. Essa alteração é resultado da enorme quantidade de barragens para a produção de energia e abastecimento de água, com impacto direto na composição das rochas sedimentares na foz dos rios.
Reinaldo José Lopes disse que alguns geólogos veem interferência política na ciência nas discussões sobre o Antropoceno |
Há também um marcador geoquímico nas rochas devido aos testes nucleares na atmosfera, realizadas até os anos 60, com pico de ocorrência em 1962. “Esses testes deixaram uma assinatura isotópica de carbono-14 e plutônio-238 nas rochas.”
Apesar de Crutzen ter proposto o início da Revolução Industrial como início do Antropoceno e haver que defendem o início do uso do fogo ou a invenção da agricultura foi inventada como pontos iniciais, a discussão hoje converge para um período bem mais próximo da atualidade, segundo Sonia.
“Quem decidirá é a Comissão Internacional de Estratigrafia, que vem trabalhando nisso há bastante tempo, colecionando argumentos que convergem para a datação do início do Antropoceno em meados do século 20.”
A proposta da comissão é que o Antropoceno seja definido como uma época do período Quaternário (iniciado a 2,6 milhões de anos) da era Cenozoica (iniciada há 65 milhões de anos milhões de anos, depois da extinção dos dinossauros).
Nos comentários à exposição de Sonia, Reinaldo José Lopes disse ter sentido falta de menção à produtividade primária [taxa de produção de compostos orgânicos por um ecossistema durante determinado período de tempo] como indicador da nova época geológica, pois “há humanidade está consumindo cada vez mais biomassa”.
Ele introduziu no debate duas questões relacionadas com aspectos políticos. A primeira é o fato de alguns geólogos consideraram haver “uma mistura de política com ciência” nas discussões sobre o Antropoceno. “Para eles, ao ser comparada com outras transições, a mudança para a nova época não seria tão clara e estariam sendo introduzidos alguns juízos de valor, com considerável impacto político.”
A outra questão tem a ver com "um refluxo generalizado no Ocidente" em relação às mudanças no planeta provocadas pela atividade humana. “Com Trump na presidência dos EUA e a chamada ‘direita avessa aos dados’, as preocupações ambientais são associadas à esquerda.” Ele acredita que os opositores à imputação das mudanças ao ser humano ficarão ainda mais “barulhentos” a partir do estabelecimento do Antropoceno.
Na fase da discussão entre os debatedores e respostas as perguntas do público (presencial e online), José Eli da Veiga afirmou que já há uma apropriação da ideia do Antropoceno por diversas áreas não relacionadas com as ciências naturais. “Há livros com títulos como ‘Aprender a Morrer no Antropoceno’ [Learning to Die in the Anthropocene, de Roy Scranton] e ‘O Amor no Antropoceno’ ['Love in the Anthropocene', de Bonnie Nadzam e Dale Jamieson]. No entanto, ao falar para públicos mais amplos, tenho a sensação de estar falando grego. A familiaridade que as pessoas têm com os tempos geológicos é muito inferior ao que se imagina.”
José Eli da Veiga: "Estamos muito mais nas mãos do acaso do que gostaríamos" |
Quanto à objeção de alguns geólogos que veem a definição do Antropoceno como uma questão influenciada por ideias políticas, conforme comentário de Lopes, Veiga disse que isso era observável no em 2016. “Alguns desses geocientistas até publicaram artigos em jornais e conseguiram que não houvesse uma decisão. Mas agora essas manifestações são bem mais reduzidas."
Para Sonia, “as mudanças climáticas são uma questão de fato, mas se há Antropoceno é uma questão de convenção”. Quem acha que não deve ser definida uma nova época geológica pode ter argumentos de outra natureza, diferentes dos argumentos negacionistas utilizados pelos que se opõem à ideia de a humanidade ser a causadora das mudanças climáticas, ponderou a pesquisadora.
A não definição da nova época em 2016 deveu-se muito mais à falta de condições técnicas do que ao conhecimento já existente, de acordo com a pesquisadora. “Para formalizar uma unidade de tempo geológico são necessárias muitas condições técnicas, a descrição de muitas seções estratigráficas e identificação de marcadores de excelência.”
Veiga disse que o que importa é verificar quando a intervenção humana passou a ter escala e velocidade que colocam em risco os ciclos mencionados por Sonia. “O fato de o ser humano ter interferido em um ou outro ecossistema é irrelevante.”
Ele ressaltou que os impactos ambientais da agricultura só foram marcantes depois da síntese da amônia, no início do século 20. “Antes a atividade agrícola era até amigável com o meio ambiente.”
A alteração no ciclo do nitrogênio tem também imenso impacto na esterilização de grandes áreas dos oceanos, segundo Veiga, por causa da eutrofização [concentração excessiva de matéria orgânica]. "Isso tornou a foz do rio Mississippi uma imensa zona morta.”
E como enfrentar o Antropoceno? Para Sonia, a humanidade está feliz no Antropoceno: “Nunca fomos tão alimentados e ricos como nessa nova época, nunca a vida foi tão próspera, apesar de 1 bilhão de pessoas ainda passar fome. A população mundial deve se estabilizar em torno de 10 bilhões de pessoas em meados do século. A questão é como administrar com mais sabedoria os recursos naturais para não construir nossa própria aniquilação".
Para Veiga, o principal é não dar prioridade à questão demográfica e imaginar que a solução seja encontrar algum método de controle da população. “Se acreditarmos na possibilidade de usar o progresso tecnológico para resolver os problemas, então entraremos num cenário otimista. Mas o grau de confiança nos cenários é irrisório. Estamos muito mais nas mãos do acaso do que gostaríamos.”
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP