Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Pandemia reforça necessidade de novos modelos de educação, dizem pesquisadores

Pandemia reforça necessidade de novos modelos de educação, dizem pesquisadores

por Mauro Bellesa - publicado 18/05/2020 21:40 - última modificação 19/05/2020 08:57

O webinar "Vetores Saudáveis: Possível Reconfiguração dos Modelos Educacionais Pós-Pandemia", realizado no dia 14 de maio, foi organizado pelo IEA, Pró-Reitoria de Pesquisa da USP e Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp).

Escola com aulas suspensas por pandemia

Se o fechamento das escolas na maior parte dos países em função da pandemia da Covid-19 representou um desafio para a continuidade do ensino, o momento também tem possibilitado algumas transformações que podem se consolidar no pós-pandemia, como o ensino via internet.

Além disso, esse período tem incentivado a autonomia dos alunos, uma profunda interação entre redes e organismos ligados à educação e a reflexão sobre as mudanças necessárias para um ensino de qualidade, principalmente em países com baixo desempenho na área, como o Brasil.

Com o objetivo de discutir essas questões nos âmbitos internacional, do Brasil e do Estado de São Paulo, o IEA, a Pró-Reitoria de Pesquisa da USP e a Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) realizaram no dia 14 de maio, o webinar Vetores Saudáveis: Possível Reconfiguração dos Modelos Educacionais Pós-Pandemia.

Relacionado

Midiateca

Claudia Costin, conselheira do IEA e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Ebape-FGV, tratou do panorama internacional. A situação do Brasil foi discutida por Mozart Neves Ramos, titular Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do IEA, Polo Ribeirão Preto. Bernardete Angelina Gatti, integrante do Comitê Consultivo da Cátedra de Educação Básica (parceria entre o IEA e o Itaú Cultural), pesquisadora da Fundação Carlos Chagas e presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, analisou o quadro paulista. As exposições também mesclaram comentários comuns aos três níveis de análise.

Equidade e qualidade

Para Claudia Costin, que atua em diversos fóruns nacionais e internacionais sobre educação, o momento não é mais de falar apenas em garantir acesso à escola, “queremos acesso equitativo a educação com qualidade, com resultados de aprendizagem relevantes e efetivos”, conforme o expresso no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS4) da Agenda 2030 da ONU.

Ela disse que duas metas do ODS4 são fundamentais: educação primária (ensino fundamental no Brasil) e secundária (ensino médio) de qualidade para todos os meninos e meninas e acesso a programas pré-escolares para todas as crianças, para que estejam preparadas quando ingressarem no ensino primário.

No entanto, entre os países em desenvolvimento, o Brasil é citado como em crise de aprendizagem, afirmou. De acordo com os dados de 2016 do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), no terceiro ano, 55% dos estudantes de escola pública "são na prática analfabetos"; em matemática, 54,4% não sabem o que deveriam saber, segundo Costin. “Ou seja, a crise começa cedo. Não estamos conseguindo as competências básicas, e isso no pré-pandeia.”

Desempenho no Pisa

De acordo com ela, no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) da OCDE (Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento), em 79 economias avaliadas, o Brasil é uma das com maior desigualdade educacional. “Ainda, assim, entre os estudantes brasileiros, os 25% mais ricos tem pior desempenho do que os 25% mais pobres dos países mais ricos.”

Há também a questão de como a educação pode preparar os indivíduos para a chamada Revolução 4.0, caracterizada pela aceleração do processo de automação e de uso de inteligência artificial, disse. “Calcula-se que 2 bilhões de postos de trabalho serão extintos até 2030. Outros serão criados, mas demandarão competências sofisticadas. Com o crescimento da desigualdade, quem não tiver essas competências terá mais chances de ter sua renda diminuída. As consequências são uma cidadania frágil e riscos de aceitação de populismos.”

Segundo Claudia, diante desse cenário, os melhores sistemas educacionais do mundo estão enfatizando a resolução colaborativa de problemas, com estimulo à utilização dos conhecimentos e à promoção da criatividade; a personalização do ensino, com ações dirigidas a quem não sabe, em vez do modelo de repetência; e a mescla do uso da tecnologia com as aulas, reinventando o processo de ensino de modo que a escola possa ensinar a pensar.

"Vamos mal no Pisa. Sabemos a tabela periódica, mas não sabemos refletir sobre a aplicação dos conhecimentos de química em problemas da realidade."

Ela comentou que na primeira semana de maio havia 190 países com escolas fechadas devido à pandemia, com 1,5 bilhão de alunos sem aulas presenciais. “Há alguma forma de aprendizagem remota emergencial. Dois meses sem aulas nas escolas públicas enquanto as escolas privadas despejam conteúdo via internet só vai aumentar a desigualdade educacional. Nem todo mundo tem acesso à internet, computador ou celular, que às vezes é um só para toda família."

Inclusão digital

Apesar disso, reconheceu que houve aceleração na inclusão digital, “ainda sem o uso ideal das plataformas, mas com algum aprendizado que, se consolidado, servirá de base para a construção do futuro na área". Mas alertou que será preciso ampliar a conectividade e em maior velocidade de residências e escolas, pois a maneira de ensinar e aprender vai se transformar. "Os jovens que estão aprendendo em casa adquiriram certa autonomia para aprender, a pesquisar na internet. Isso é algo sobre o qual pode-se construir em cima e consolidar no ensino superior."

A utopia de Claudia, "no sentido de algo que ainda não teve lugar", é de que no fim da pandemia seja construída uma escola onde todos aprendam, com equidade, alunos e professores trabalhem colaborativamente, inclusive em comunidades virtuais, e o aluno aprenda a se reinventar para postos de trabalho novos, aprenda a empreender sua vida, os saberes não estejam fragmentados, o acadêmico e o técnico dialoguem, o tempo e o espaço sirvam formem para a autonomia e a capacidade de solidariedade.´

Panorama brasileiro

Mozart Ramos Neves, que foi presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), disse ser "extremamente pessimista" quanto ao pós-pandemia no âmbito federal diante da dificuldade de montar uma agenda a partir da baixa aprendizagem e desigualdade da educação antes da pandemia.

"O Ministério da Educação teria de ser extremamente atuante, articulado e colaborativo com as redes de ensino, apresentando um espectro mais amplo de soluções para a mudança do cenário", afirmou. “Não é isso que estamos encontrando, mas sim um ministro fazendo gracinhas enquanto o cenário do desastre passa na porta do ministério.”

O maior exemplo dessa dificuldade é o caso do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), disse. "O país inteiro pede o adiamento e só o ministério não enxerga essa necessidade. Vai avaliar o quê?”

No entanto, ele disse estar otimista em relação ao trabalho dinâmico empreendido pelas redes de ensino diante da pandemia: “Se o MEC não faz o seu faz papel, nós estamos fazendo".

“No caso de São Paulo, milhões de alunos e milhares de professores estão participando, com a colaboração da TV Cultura e o uso de aplicativos e centros de mídia.”

Outras competências

Ele manifestou seu otimismo também em relação às competências socioemocionais, que "estarão bem mais desenvolvidas, com o surgimento de pessoas criativas e inovadoras, capazes de se reinventar em ambientes complexos e voláteis como o atual".

“Vamos despertar para o desenvolvimento de outras competências que não tínhamos e de forma articulada com as competências cognitivas tradicionais da atividade escolar.”

Neves manifestou sua preocupação com a "pandemia do desemprego". Será preciso "achatar a curva do desemprego para o país voltar a crescer. Para ele, uma educação integral que propicie o desenvolvimento pleno do indivíduo "talvez seja a grande aliada para ganharmos velocidade na aceleração do crescimento”.

Escolaridade é ponto de partida, não de chegada, afirmou. "Precisamos dar educação com significado e isso exige construir as diretrizes docentes." Segundo ele, o país conseguiu construir a formação inicial dos professores, agora precisa construir a formação continuada.

Recomposição de modelos

Para Bernardete Angelina Gatti, que já presidiu o Conselho Estadual de Educação de São Paulo, é preciso pensar na recomposição dos modelos educacionais e nas condições que teremos no pós-pandemia.

“Que faz a educação não são as leis, normas, bases curriculares, são as pessoas, especialmente a educação básica, sensível à presença do professor" disse a pesquisadora para quem a educação "é feita no chão da terra" e deve considerar a territorialidade. "Precisamos ser articulados, mas respeitar a diversidade."

No retorno pós-pandemia, será preciso um planejamento integrado e localizado, comentou. "Podemos ter parâmetros amplos, mas com planejamento localizado, que mobilize não só gestores das secretarias estaduais e municipais e dirigentes regionais, mas sim cada escola, seu diretor e conjunto de professores. Isso vai demandar ajustes importantes."

Ela defende quatro diretrizes para os ajustes:

  • serenidade, “para não atropelar o retorno, alunos e o currículo”, de forma a “tirar a ansiedade da rede” e infundir os ajustes físicos e curriculares necessários;
  • pensar com objetividade, uma vez que as necessidades podem ser diferentes em cada escola;
  • flexibilidade, para a escola poder montar com autonomia seu planejamento em função de suas especificidades e considerando que os alunos voltarão com grandes diferenças de aprendizagem;
  • preparação dos professores, para que possam trabalhar com objetividade, flexibilidade e autonomia e atuar com alunos com graus variados de aprendizagem.

Segundo ela, um projeto de retorno tem de considerar o diferente e o descentralizado. “Teremos de ter alternativas criadas nas próprias escolas.”

Mas como ser criativo com grade curricular, tópicos fechados, aulas de disciplinas diferentes que se sucedem? Como pode haver interdisciplinaridade e desenvolvimento de projetos transversais? Para Bernardete, isso exigirá que se abra para as escolas a possibilidade de diferentes organizações pedagógicas.

Outro ponto importante, de acordo com a pesquisadora, é a questão da fixação dos profissionais, diante dos constantes problemas de remoção e solicitação de transferências. “É preciso favorecer a fixação de equipes, para que constituam um corpo coerente capaz de pensar a educação de forma integrada.”

Formação de professores

Ela enfatizou a necessidade de dar um sentido à educação: “Trabalhamos com conhecimentos de modo abstrato, mas na verdade eles são produtos humanos e respondem a necessidades humanas.”

Para ela, os professores não são formados para serem profissionais e aprenderem o sentido vivo de seu conhecimento. "O professor de biologia se diz biólogo e não professor; o professor de história se considera historiador e não professor."

Bernardete afirmou que os cursos de licenciatura já deveriam ter mudado há mais de 20 anos, “mas quando vamos discutir isso, são levantados problemas materiais, há o medo de alguns de que sua disciplina desapareça, ocorre disputa de espaço e ficamos no impasse da reformulação do currículo”.

Nas respostas às perguntas do público e do instigador do debate, Naomar de Almeida Filho, professor visitante do IEA e titular da Cátedra de Educação Básica, os três expositores tiveram a oportunidades de discutir diversos temas complementares às suas apresentações.

Alguns desses temas foram as condições de saúde dos professores, a possibilidade de expansão dos modelos de escolas inovadoras (“rapidamente descobertas pela classe média, o que impede a construção de um sistema para todos”, segundo Claudia) e a necessidade de melhoria na comunicação dos especialistas em educação com a sociedade (“temos muitas siglas, termos, não nos preocupamos em saber se o outro lado nos entendeu; precisamos ganhar a sociedade”, afirmou Nunes).

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil