Curso Floresta dos Saberes reuniu mulheres indígenas para discutir a representatividade de seus povos
De acordo com a lei 11.465/08, os estabelecimentos de ensino fundamental e de médio, públicos e privados, são obrigados a incluir a história e cultura afro-brasileira e indígena em seus currículos. A legislação está em vigor desde 2008, porém segundo as palestrantes do curso “Floresta dos Saberes: a Diversidade de Existências e Territórios das Mulheres Indígenas”, esses saberes indígenas milenares ainda não são bem representados na academia. A partir de relatos sobre suas próprias trajetórias, as convidadas questionaram a falta de visibilidade desses saberes nas escolas e universidades.
Realizado de 2 a 4 de setembro pela Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência (IEA), a atividade reuniu mulheres indígenas de diferentes etnias, atuações e gerações, para discutir a visibilidade dos povos indígenas no âmbito político, científico e artístico. Elas apresentaram um panorama das dificuldades enfrentadas por elas e seus territórios na luta pela resistência indígena, além de debates e exposições sobre machismo, noção de território, racismo, meio ambiente e maternidade. Todas as aulas foram gravadas e estão disponíveis no canal do YouTube do IEA.
O curso foi dividido em seis aulas e integrou as atividades do programa “Caminho da Cutia: Territórios e Saberes das Mulheres Indígenas”. Proposta pelas catedráticas Arissana Pataxó, Francy Baniwa e Sandra Benites, a programação foi pensada para “contribuir para o reconhecimento da diversidade dos saberes de mulheres indígenas”.
“Ainda que o protagonismo seja de mulheres indígenas, suas contribuições não se encerram no debate sobre mulheres, uma vez que suas preocupações políticas envolvem sempre seus povos como um todo, das crianças aos mais velhos, dos jovens aos adultos, dos homens às mulheres, dos rios às florestas”, explicam as organizadoras.
A arte indígena
A primeira aula do curso “Traçando as artes: mulheres indígenas e suas expressões artísticas” apresentou as trajetórias artísticas das convidadas Graça Graúna, escritora e professora adjunta na Universidade de Pernambuco (UPE); e Patrícia Para Yxapy, professora, roteirista, curadora e realizadora audiovisual indígena de etnia Mbyá Guarani.
Com a exposição de algumas obras de sua autoria e leitura de trechos, Graça falou sobre a falta de representatividade da arte e cultura indígena na literatura, e a importância da escrita para resgatar as tradições e a ancestralidade. “Eu não aceitava a nossa inexistência nos livros didáticos”, declara Graça.
A partir da apresentação de seu livro “Contrapontos da Literatura Indígena Contemporânea”, a escritora contou que durante o mestrado tentou falar sobre literatura indígena, porém foi impedida pela falta de representação no meio acadêmico. “A pesquisa ainda está muito construída nos moldes acadêmicos”, o que, segundo ela, dificulta a expansão dos saberes indígenas.
A cineasta Patrícia explicou que o audiovisual é uma forma de resistência e registro da vida indígena, de seus pensamentos, costumes e modos de ver a vida. “Assim que a gente terminou o primeiro filme, eu entendi a importância dessa ferramenta de trabalho e de luta para nós.”
Política e movimento indígena
“Gestando políticas: liderança, política e movimento indígena” foi a segunda aula do curso, que teve a presença das convidadas Catarina Tupi Guarani, liderança indígena, artesã e educadora formada em Pedagogia pela Universidade de São Paulo (USP); Beatriz Pankararu, representante da Reserva Indígena Filhos Dessa Terra, em Guarulhos, artista visual e ativista; e Eliane Potiguara, primeira autora de literatura indígena no Brasil e doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ).
Neste encontro, as expositoras contaram suas trajetórias políticas e discutiram sobre a importância dos movimentos indígenas na política brasileira e na luta pela inclusão da literatura indígena nas escolas. “Sem luta a gente não consegue nada”, declarou a educadora Catarina Tupi.
Para a professora Eliane Potiguara, as estratégias políticas nas escolas brasileiras poderiam incluir os pensadores indígenas, que, segundo ela, não são valorizados. Ela defendeu a aproximação desses pensadores com os programas escolares para inserir a literatura indígena nas escolas. “Gestão política é trazer os professores indígenas para dentro das escolas junto com os professores.”
“Eu dentro da escola também sou política”, declarou Beatriz Pankararu. A ativista contou como foi sua trajetória nos estudos, e os problemas que ela viu na educação oferecida em seu território: “Naquele momento, eu com 14 anos entendi que aquela educação não iria abrir as portas pra mim da forma como esperava”. Ela conta que terminou os estudos em São Paulo, por conta da falta de acesso à informação em sua aldeia. Ainda criança, Beatriz lecionou na escola indígena para ajudar na falta de professores e atraso na educação.
Além disso, ela comentou sobre a falta de professores e acervos indígenas nas escolas regulares. “O que mais me chateia, enquanto professora e indígena, é não poder trabalhar as questões indígenas e afro-brasileiras nas escolas”.
Sobre isso, a catedrática Francy Baniwa acrescentou a importância dessa representatividade nos acervos das universidades. “Hoje não há mais essa desculpa de que não há produções indígenas. Temos teses, dissertações, TCCs e publicações de livros.”
A saúde da mulher indígena
A terceira aula do curso tratou sobre a noção de corpo como território, as inter-relações entre as violências sofridas pela Terra e as violências sofridas pelas mulheres indígenas, a questão da saúde da mulher e possíveis formas de cuidados tradicionais dos povos.
Com o título “Redes de amparo: saúde da mulher”, a aula reuniu as convidadas Kellen Kaiowá, bióloga e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Cinthia Guajajara, especialista em Direitos Indígenas, coordenadora da Articulação das Mulheres Indígenas do Maranhão (Anima), presidente do Conselho de Educação Escolar Indígena do Maranhão (CEEI - MA); e Eufelia Tariano, pesquisadora, enfermeira e especialista em saúde indígena.
Neste encontro, as especialistas falaram sobre a questão da cura indígena e a problematização da academia não reconhecer esses saberes milenares. Kellen contou que gostaria de abordar em suas pesquisas a cura indígena, porém teve entraves por conta dos padrões acadêmicos. “Muitas vezes dentro do laboratório é difícil, a área biológica é cansativa.”
Especialista em medicinas indígenas, Cinthia falou da importância da preservação da natureza e do reconhecimento do canto como cura tradicional. “Os conhecimentos indígenas também são ciência, é isso que estamos passando para a juventude”, acrescentou.
Sobre a questão da violência contra a mulher indígena, as convidadas falaram sobre a relação entre território e corpo e a dificuldade de lidar com essas violências dentro dos territórios. “Território é nosso corpo e espírito, tem que respeitar esse território”, explicou Cinthia.
Para Eufelia, as violências se relacionam com os preconceitos e estereótipos que, ainda hoje, os povos indígenas sofrem. A enfermeira também defendeu a ideia de que a proteção e apoio para mulheres e crianças indígenas é uma questão de saúde pública.
Representatividade no meio acadêmico e nas lideranças
“As tecituras das mulheres indígenas na universidade” foi o tema da quarta aula do Floresta dos Saberes. Participaram as convidadas Rutian Pataxó, ouvidora adjunta da Defensoria Pública da Bahia e especialista em Direitos Humanos; Márcia Mura, escritora, articuladora política e cultural, educadora, percorre o território Mura e outros lugares com a pedagogia da afirmação indígena; e Jera Guarani, liderança indígena comunitária na aldeia guarani mbya Kalipety (SP).
Neste encontro, as pesquisadoras falaram sobre as dificuldades de ser mulher indígena dentro das universidades, os entraves nos currículos e ementas dos cursos e a importância de figuras femininas nas posições de liderança nos territórios.
“Antes de existir feminismo, nossas antepassadas já estavam na luta”, declarou Márcia Mura. Ela contou que, a partir da história oral e saberes de seus antepassados, construiu sua carreira no meio acadêmico. “Custa muito caro pra gente estar nessa academia, não é fácil. Eu não desisti porque eu sabia que a minha tese de doutorado, assim como a minha dissertação, não era um trabalho meu, mas sim algo coletivo.”
“Era uma grande humilhação, só porque a gente era indígena”, declarou Rutian Pataxó ao se referir a sua experiência dentro da universidade. Ela contou como era ser indígena e militante na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e discutiu sobre a importância das cotas e incentivos indígenas para incluir diferentes povos e saberes no meio acadêmico. “Se a gente não tivesse entrado na UFBA, talvez ela nunca seria a referência de políticas afirmativas para povos indígenas que é hoje.”
Sobre o movimento de lideranças indígenas, Jera explicou que o aumento do número de mulheres líderes em seu território guarani diminuiu os casos de violência. Ela também contou sua trajetória com a liderança comunitária e as dificuldades que teve ao propor mudanças para seu povo. “Já fui xingada de vários nomes e jeitos na aldeia, e algumas pessoas da liderança querem ir para a ‘porrada’ por isso, mas eu tento lembrar e fortalecer a ideia de que se a gente se comportar assim vamos estar fazendo a mesma coisa que os caciques, cabos e capitães faziam aqui.”
Luta pelas línguas indígenas e território
No último dia do curso, o encontro “Ecossistema de línguas indígenas” tratou do impacto da destruição do meio ambiente no “ecossistema” de línguas originárias, com a exposição de diversas iniciativas que visam à preservação das línguas nativas como um resgate de suas ancestralidades. A aula contou com a presença das pesquisadoras Altaci Corrêa Rubim, pesquisadora e ativista, ela foi a primeira professora indígena a ingressar no corpo docente da Universidade de Brasília (UnB); Sueli Maxakali, professora, cineasta e liderança indígena; e Anari Pataxó, membro do Grupo de Pesquisadores Pataxó Atxohã.
“A concepção da língua índigena é espírito, e sendo espírito ela não morre”, declarou a fundadora do centro de língua materna de Manaus, Altaci. Ela falou sobre sua trajetória como pesquisadora e a dificuldade que tinha para entender as apresentações e textos obrigatórios do programa. “Eram todos em inglês ou francês”. Para a pesquisadora, é necessário reconhecer a língua de sinais indígenas e o português falado por eles. “Precisamos salvar as línguas indígenas para o bem de todos.”
Anari Pataxó questionou a existência de cursos de letras focados apenas em línguas estrangeiras: “Estamos no século 21, já passando para o 22, e ainda não foi criado um curso de letras focado em línguas indígenas. Isso é vergonhoso porque as línguas indígenas são parte das línguas brasileiras”.
As pesquisadoras também relacionaram a preservação desse “ecossistema de línguas” com a preservação do meio ambiente e dos ensinamentos indígenas, que, segundo elas, podem ser a solução para a crise climática atual. “Nossa trajetória é gigante, de sobrevivência, de resistência, de luto e de luta, para hoje estarmos falando aqui pro mundo que nós precisamos salvaguardar as línguas indígenas para o bem de todos”, acrescentou Altaci.
Organizado pelo IEA em parceria com a Fundação Itaú, o curso Floresta dos Saberes foi encerrado com um momento de partilha coletiva e apresentação de relatos críticos e considerações feitas por estudantes de pós-graduação sobre o programa. A catedrática Sandra Benites explicou que a meta do evento é se tornar um programa da Cátedra e uma prática presente na universidade.