Dados preliminares de censo mostram crescimento populacional das comunidades vizinhas à USP
Em 10 anos, a população das quatro comunidades vizinhas aos campi da USP na capital aumentou 12%. No Jardim São Remo e em Sem Terra/Vila Clô, localizados ao lado da Cidade Universitária, o crescimento foi de 10%, enquanto que no Jardim Keralux e na Vila Guaraciaba, próximas à USP Leste, registrou-se uma alta de 13% no número de moradores. Os dados são do censo Pontes e Vivências de Saberes, que comparou os números obtidos em sua pesquisa de campo ao levantamento de 2010 do IBGE.
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Desde janeiro de 2019, a Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência (parceria do IEA com o Itaú Cultural) realiza o diagnóstico sociocultural e econômico dessas comunidades. Os números completos serão publicados na última semana de maio, quando ocorrerá também a divulgação das análises sobre os resultados obtidos. O principal objetivo do mapeamento é produzir dados que subsidiem as demandas sociais das áreas periféricas à Universidade e incentivar a formulação de propostas a serem apresentadas ao poder público e instituições privadas.
“Com o censo, a USP investiu e colocou seu conhecimento técnico a serviço de um estudo que tem um enorme potencial para a comunidade, principalmente, para a atuação de lideranças, organizações, coletivos e empreendedores locais”, afirma a coordenadora do estudo, professora visitante do IEA Eliana Sousa e Silva.
Além das informações demográficas básicas, como naturalidade e identidade racial, a pesquisa questionou os moradores sobre as condições de moradia, escolaridade, saúde, práticas culturais, trabalho, renda e a relação com a USP. Também foi realizado um censo animal, considerando cães e gatos domésticos, número de aves, acidentes com escorpiões e incômodos com diferentes tipos de animais.
Descobriu-se, por exemplo, que nas quatro comunidades, há mais animais de estimação do que crianças entre as famílias. O número de cães e gatos domésticos encontrados (total de 3.399) é maior que o de crianças de até 11 anos de idade (total de 3.130). “O desconhecimento das favelas leva a pensar que nelas só existem humanos. As pessoas dividem o pouco que têm materialmente para dar o maior conforto possível aos seus companheiros não humanos, muitas vezes considerados filhos ou filhas”, comenta Oswaldo Baquero, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP e coordenador do censo animal.
Sobre o censo
O estudo demográfico das comunidades compõe o projeto Democracia, Artes e Saberes Plurais (Dasp), idealizado por Eliana em 2018, quando assumiu a titularidade da Cátedra [leia mais]. Fundadora e diretora da ONG Redes da Maré, entidade que visa garantir o desenvolvimento social e sustentável no Complexo da Maré (Rio de Janeiro), ela já trazia na bagagem a experiência da realização de diagnósticos sociais e demográficos na comunidade da Maré, projeto que iniciou em 2011. Após a troca de titular da cátedra, Eliana tornou-se professora visitante do IEA e deu continuidade às ações do projeto.
No IEA, a educadora propôs a realização do Dasp de forma integrada com o ensino da Universidade, oferecendo bolsas de pesquisa para alunos de graduação e pós-graduação de diversos cursos da USP. Para a seleção, foram considerados o desempenho acadêmico, relação pessoal e profissional com as periferias, condições socioeconômicas e interesses por questões sociais. Dos 63 estudantes selecionados, 56 contribuíram especificamente com a realização do censo - coleta e processamento de dados, análise dos resultados e elaboração do relatório. A maioria é ingressante dos primeiros anos de graduação.
Compilação dos dados
A divulgação dos resultados estava prevista para o início de 2020, mas a pandemia de covid-19 interrompeu o trabalho de campo. A pesquisa tinha a meta de alcançar 92% dos 5.846 domicílios dos territórios e já havia entrevistado 83% das residências habitadas quando as medidas de isolamento social foram iniciadas. “À medida que a realidade foi se desenhando, o planejamento foi sendo refeito. Assim, as atividades de tratamento dos dados com os bolsistas começaram em junho. A distância, o ritmo foi mais lento”, comenta o coordenador da sistematização e tratamento de dados do censo, Dalcio Marinho.
Ele explica que, mesmo sem atingir a meta de 92%, a cobertura alcançada representa um sucesso: “O mais importante é que essa cobertura estava uniformemente distribuída por todos os 40 setores em que dividimos operacionalmente os territórios. As entrevistas foram obtidas em, no mínimo, 16 a cada 20 domicílios”, afirma o estatístico.
Para Eliana, ao avaliar preliminarmente os resultados, é possível dizer que as comunidades apresentam muitas semelhanças, mas a quantificação das diferenças internas é relevante para que as favelas não sejam sempre definidas por uma suposta homogeneidade de carências. Um exemplo detectado: nas comunidades São Remo e Sem Terra/Vila Clô há serviços urbanos mais satisfatórios do que em Keralux e Vila Guaraciaba.
“Por outro lado, os moradores do Keralux (Zona Leste) declaram, em média, um nível de escolaridade e renda um pouquinho mais favorável que o dos moradores da São Remo. Portanto, essas características precisam ser interpretadas como um todo, com suas correlações e contextos próprios e, principalmente, de modo interdisciplinar”, afirma Eliana.
A percepção da Universidade parece ser algo em comum entre os moradores das quatro áreas: “Uma observação preliminar sugere que, de um ponto de vista longitudinal, a vizinhança com a USP é reconhecida como algo de muito valor e as vantagens decorrentes são destacadas”, conta Eliana.
Em compensação, os pesquisadores destacam que há um tensionamento histórico entre os moradores das periferias e a USP, segundo Érica Peçanha, pós-doutoranda do IEA e coordenadora dos bolsistas. “Há um discurso recorrente entre os moradores dos territórios pesquisados de estarem saturados de participar de projetos de ensino, pesquisa e extensão sem acesso aos seus resultados, ou mesmo sem ver esses resultados revertidos em benefícios para suas comunidades”, afirma Érica. Ela é organizadora do livro “Narrativas periféricas: entre pontes, conexões e saberes plurais”, que reúne relatos de quem participou do Dasp, incluindo pesquisadores do censo e moradores que ajudaram a estruturar as atividades. O livro será lançado no dia 19 de março (leia mais).
Se por um lado houve certa desconfiança para a participação do censo socioeconômico, o levantamento animal ajudou a aproximar os moradores dos pesquisadores. “O bloco animal facilitou a realização das entrevistas, pois as pessoas gostavam de falar dos seus animais e tornavam-se mais receptivas”, conta Baquero. Além da alta presença de bichos de estimação, as informações também permitiram à equipe identificar migração de zoonoses, demandas de atendimento veterinário e quantidade de animais precisando do controle reprodutivo, segundo o professor.
A USP e as comunidades
Coordenador acadêmico da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, Martin Grossmann avalia que a realização do censo, assim como de outras ações do Dasp, mostrou à USP novas formas de se relacionar com as periferias. “As cátedras têm esse papel de trazer especialistas/sujeitos que contribuam para a universidade com jeitos diferentes dos que ela já abarca no seu cotidiano. São momentos mais extraordinários que pretendem contribuir e até abalar as estruturas normativas das universidades, mostrando outras práticas possíveis”, afirma o professor.
Grossmann acredita que o censo é um dos primeiros passos na reaproximação entre a USP e suas áreas periféricas. “Eliana e eu vemos muito claramente que a Universidade não pode deixar de ter uma atenção à periferia, seja de uma maneira genérica como um campo de estudo ou nessa relação com a sua vizinhança. Isso foi feito sempre de uma maneira muito ligada à cultura e extensão, não necessariamente à pesquisa e ao ensino”, diz.
Além do Censo Pontes e Vivências de Saberes, o projeto Democracia, Artes e Saberes Plurais tem outras duas frentes de ação: Centralidades Periféricas (série de eventos entre integrantes do mundo universitário e artistas, intelectuais e ativistas das periferias brasileiras) e Conexões com as Periferias (plataforma digital que reúne pesquisas e as ações de extensão da USP que tenham como foco as periferias). Os eventos foram realizados em 2018, enquanto a plataforma será lançada em abril deste ano.