Como superar a dependência de fármacos importados
Questão de segurança nacional e por isso merecedora de uma política de Estado. Assim o especialista em fármacos e medicamentos Leoberto Costa Tavares, professor titular da Faculdade de Ciências Farmacêutica (FCF) da USP e participante do Programa Ano Sabático do IEA, vê a dependência brasileira da importação de fármacos biológicos e sintéticos.
Evidenciada na pandemia de Covid-19, essa dependência não é nova e coloca o país em condição de alta vulnerabilidade, segundo Tavares: “O Brasil tem autonomia na fabricação de medicamentos e consegue atender a demanda da população, mas essa autonomia é parcial, já que depende da importação de fármacos, principalmente da China e da Índia, principais fornecedores internacionais.”
Para discutir as condições para a superação dessa independência, Tavares entrevistou quatro especialistas no webinar A Dependência Brasileira da Importação de Fármacos, no dia 30 de agosto. O encontro fez parte da série Jornadas Científicas Contemporâneas, composta de sete webinars coordenados pelos participantes do Programa Ano Sabático. A série foi organizada em parceria com a Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação e integrou a programação do ciclo USP Pensa o Brasil, realizado de 29 de agosto a 2 de setembro.
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De acordo com Tavares, os posicionamentos discutidos pelos entrevistados levam a concluir que o Brasil tem condições de superar, ainda que parcialmente, a dependência de fármacos. No caso dos sintéticos, a independência total ou parcial dependerá de o país estabelecer uma política de Estado, a fim de promover o incentivo e financiamento à produção, sendo necessária também uma reserva de mercado inicial até que a atividade industrial se consolide, afirmou.
“No caso dos biofármacos, a conclusão é que o Brasil tem grande possibilidade de se tornar independente e até exportador desses produtos, já que possui pessoal altamente qualificado e estrutura para a produção já instalada e em pleno funcionamento, faltando apenas aumentar o incentivo ao segmento que tem sido feito pelo Ministério da Saúde, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e agências de fomento à pesquisa, em especial a Finep e a Fapesp”, disse Tavares.
Os entrevistados do seminário foram: Adalberto Pessoa Junior, professor livre docente da FCF-USP, pela qual é doutor em tecnologia bioquímico-farmacêutica, com pós-doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, EUA; Benedito Barraviera, professor titular de infectologia da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) da Unesp, onde coordena a implantação da fábrica de amostras de biofármacos no Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos (Cevap); José Antônio Graciano, profissional do mercado atuando há 40 anos em laboratórios nacionais, nos últimos 10 anos envolvido no fornecimento de IFAs (insumos farmacêuticos ativos) por produtores internacionais aos laboratórios brasileiros; e Lauro Moretto, consultor de inovação do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), mestre em tecnologia bioquímico-farmacêutica e doutor em ciência dos alimentos pela FCF-USP.
Em sua entrevista, Adalberto Pessoa Jr. explicou que os biofármacos são produzidos a partir de seres vivos ou processos biológicos, como bactérias, fungos, vírus e células animais, e são de grande importância, por exemplo, na produção de vacinas, como ficou demonstrado no caso da Covid-19. “Todo mundo está correndo atrás dessas tecnologias”, afirmou, lembrando que a Pfizer desenvolveu sua vacina de RNA mensageiro para o Sars-CoV-2 em menos de 70 dias. Outras tecnologias de vacina a partir de biofármacos são as de vírus desativado e as retrovirais.
Também está crescendo muito o desenvolvimento de medicamentos a partir de anticorpos monoclonais, muito utilizados no tratamento de câncer de forma muito específica e pontente e para o tratamento de doenças sem fármacos sintéticos disponíveis, acrescentou.
Sobre a possibilidade de os biofármacos virem a substituir em parte os fármacos sintéticos (que respondem por 90% do total) a médio ou longo prazo, Pessoa Jr. afirmou que eles não devem substituir, mas complementar o uso de sintéticos. “O que se vê é que o aumento na utilização dos biológicos aumenta também a de sintéticos, pois um tratamento nunca é exclusivo de um ou de outro. A tendência é que haja uma mudança na proporção entre eles, com o uso de mais biológicos.”
Um dos fatores para a permanência dessa complementaridade é que o fármaco sintético é muito mais barato do que o biológico, mais caro porque a escala de produção é menor e as tecnologias envolvidas são mais complexas. Além disso, explicou, é relativamente fácil produzir um genérico do fármaco sintético, enquanto o biofármaco não permite a produção de algo idêntico, apenas biossimilar.
Provar que um biofármaco é similar ao de referência é processo muito complexo e caro, disse Pessoa Jr.: “A estrutura é, geralmente, uma molécula proteica e esse tipo de molécula é tão complexo que exige, para a comprovação de similaridade, que sejam feitas inúmeras análises físico-químicas, microbiológicas e estruturais, estudos in vitro e de atividades biológicas”.
Quanto à possibilidade de o país se tornar independente da importação desses insumos, ele disse não ter dúvida quanto a isso e exemplificou com a produção de vacinas pelo Instituto Butantan e pela Fiocruz.
Ele lembrou que em 2015 a Eurofarma desenvolveu o primeiro medicamento biossimilar da América Latina, o Fiprima (filgrastim), que começou a ser comercializado em 2016. Ele é indicado para pacientes que apresentam o sistema imunológico comprometido pelo tratamento quimioterápico. Por meio de acordo de transferência tecnológica, o medicamente é produzido também pela Fiocruz, para fornecimento ao Sistema Único de Saúde (SUS).
“De lá para cá temos diversas empresas trabalhando com produção de biofármacos. Isso está crescendo porque temos pessoal altamente especializado, incluindo profissionais com doutorado e pós-doutorado em bioinformática, engenharia genética, tecnologia de fermentações, nanobiotecnologia, purificação biomolecular e formulação.” No entanto, falta mais investimento, pois grande parte dos especialistas está saindo do emprego por falta de oportunidades de trabalho, afirmou.
Pessoa Jr. considera que a infraestrutura existente permite produção de biofármacos suficiente para atender parte significativa da demanda. Bio-Manguinhos, a unidade produtora de imunobiológicos da Fiocruz, “possui estrutura enorme de produção a partir da bactéria Escherichia colli, uma bactéria amplamente conhecida e responsável pela produção de muitos biofármacos”.
Quando se trata de proteínas muito especializadas, o volume não é tão grande, apontou. Por exemplo, a asparaginase é um medicamento para tratamento de leucemia linfoblástica aguda, que tem de 3 a 5 mil novos casos por ano. Para atender a esse mercado, o Brasil precisa importar o produto. Se tivéssemos um biorreator de apenas 100 litros, conseguiríamos produzir o necessário em seis meses de produção, afirmou.
Com mão de obra, equipamentos de médio porte e infraestrutura, questiona-se por que o país ainda depende da importação. No caso da asparaginase, com mercado pequeno, Adalberto acredita que o biofármaco deveria ser produzido por algum órgão público para ser fornecido pelo SUS.
"Começamos a pesquisar a asparaginase em 2013, pois faltou o produto. Se o paciente ficar um mês sem tomar, morre. Era uma questão de independência, até de soberania nacional."
Para Leoberto, o norte a ser perseguido pelo Brasil é o aumento da produção e atendimento a países vizinhos, e essa é a proposta que tem sido feita em conversas com a Fiocruz, que tem a planta para e. coli, afirmou Adalberto. "A gente transferiria a tecnologia para fornecimento gratuito pelo SUS. O que sobrasse, seria vendido para o mercado latino-americano e depois para o resto do mundo."
Estamos produzindo uma asparaginase melhorada em relação ao que há no mercado, que causa diversos efeitos colaterais, disse Adalberto. Ele afirmou que um biorreator de mil litros abasteceria o Brasil e a América Latina, e acredita que isso é "altamente prioritário", não apenas enquanto questão econômica, mas de segurança nacional.
Cerca de 50 anos atrás, a China estava na mesma situação que o Brasil. Ela reagiu e agora é a principal fornecedora de biofármacos, disse Leoberto. "Os custos poderiam ser competitivos com os China, Índia e Itália, ou teríamos que fazer num primeiro momento uma espécie de reserva de mercado?", questionou.
Para Adalberto, isso depende do produto. No caso da dose da asparaginase, atualmente ela custa 1.600 dólares. "A chinesa está em torno de 60, 70 dólares, mas causa diversos efeitos colaterais." Avaliando o custo de produção da asparaginase peguilada, ele afirmou que seria possível produzi-la por 100 dólares a dose. "Eles também estão produzindo por menos de 100; vendem a 1600 porque são os únicos no mercado." A China apresenta mão de obra barata, mas tem custo de transporte, imposto e a questão da validade, que diminui conforme a demora para chegar nos hospitais brasileiros.
Para Graciano, o Brasil tem autonomia na produção e exportação de medicamentos, mas alta dependência de fármacos da China e Índia. Ele apontou que em 2021, o país importou 3,2 bilhões de dólares e produziu 338 milhões de dólares de IFA. "Entendo que não estamos dando a devida importância à necessidade de independência de insumos base para atendimento da população."
Em 2019, foi apresentada uma lei para privilegiar os registros de medicamentos que tenham IFAs nacionais. Está tramitando até hoje, mas não passou da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), lembrou. O mercado brasileiro farmacêutico é o oitavo do mundo, crescendo 5% ao ano.
Para Moretto, não apenas o governo federal poderia ter uma ação, como também vários governos estaduais poderiam ter plataformas próprias, além de pedir ajuda para o governo central e adquirir protagonismo no contexto geral.
Fotos: Rogério Reis/Fiogruz; arquivo pessoal de Leoberto Costa Tavares; arquivo pessoal de José Antônio
Graciano; Secom-UFG; arquivo pessoal de Adalberto Pessoa Junior; Câmara Municipal de São Paulo