Eduardo Gudynas defende a virada biocêntrica como novo padrão civilizatório
É preciso abandonar o antropocentrismo e adotar o biocentrismo, no qual os direitos da natureza são tão importantes quanto os direitos humanos. Só assim será possível confrontar o atual padrão civilizatório, no qual os elementos da natureza são vistos e tratados como recursos a serem explorados indefinidamente, postura que está na raiz da catástrofe ambiental que se delineia para o planeta.
A defesa desse virada biocêntrica está no centro das preocupações atuais do sociólogo uruguaio Eduardo Gudynas, do Centro Latino-Americano de Ecologia Social, primeiro latino-americano a assumir, em 2016, a Cátedra Arne Naess em Justiça Global e Meio Ambiente, da Universidade de Oslo, Noruega.
No dia 1º de dezembro, ele proferiu a conferência Novos Horizontes Civilizatórios: Direitos da Natureza, Direitos Humanos e o Giro Biocêntrico, atividade organizada por Marcos Bernardino de Carvalho, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each) da USP e participante do Programa Ano Sabático do IEA em 2023.
Gudynas veio ao Brasil para participar do 12º Coninter (Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades), evento da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanidades (Aninter-SH), realizado na Each de 27 de novembro a 1º de dezembro, tendo por tema “Crise Civilizacional, Conhecimentos Ancestrais e Pensamento Decolonial na América Latina”.
O sociólogo é autor do livro “Direitos da Natureza: Ética Biocêntrica e Políticas Ambientais” (Editora Elefante, 2019). Ele foi consultor da Assembleia Constituinte do Equador durante a elaboração da Constituição do país promulgada em 2008, pioneira mundial na introdução dos direitos da natureza num texto legal dessa magnitude.
Na perspectiva biocêntrica, de acordo com o livro de 2016, o ser humano passa a ser “interpretado como uma parte da comunidade da vida”, ou “como mais uma, junto com as demais espécies viventes, e sem estar acima delas”, nem tampouco acima dos direitos de entes naturais, aos quais passa a ser atribuída a condição de sujeitos de direitos.
Para Gudynas, a conceitualização dos direitos possui forte vínculo com a modernidade, “numa perspectiva antropocêntrica, onde o ser humano é agente de valores e agente político”. O biocentrismo, relacionado com os direitos da natureza, põe em discussão a ideia convencional da exclusividade humana em relação a direitos e, portanto, implica um abandono da perspectiva antropocêntrica da modernidade.
Segundo ele, vem se difundindo em vários países uma ampliação do conceito de direitos humanos ou o estabelecimento de salvaguardas ao não humano. Outra corrente, disse, é a que define sujeitos jurídicos a partir da reação contra direitos humanos violados ou não assegurados no futuro. Um caso típico disso aconteceu nos Estados Unidos e foi replicado na Colômbia, com crianças e adolescentes questionando o governo pelo fato de que a não ação deste possa reduzir sua qualidade de vida quando adultos. “Aqui também a demanda e o sujeito jurídico partem dos direitos humanos.”
Geralmente a defesa do direito a ambientes saudáveis e melhor qualidade de vida levam à que um ente não humano se converta em sujeito jurídico. Trata-se de um caminho acertado e importante baseado no antropocentrismo, afirmou.
Um exemplo dessa posição aconteceu durante os recentes debates da Assembleia Constituinte Chilena, quando vários defensores de melhorias e salvaguardas em defesa da natureza seguiram um caminho antropocêntrico, “sobretudo advogados e acadêmicos vinculados às ciências jurídicas”. O outro caminho implica romper com isso, disse.
“O antropocentrismo é uma perspectiva típica da modernidade, pela qual o centro da valoração e da política está no ser humano, concebido como o único sujeito. Só há sujeitos humanos e só os humanos podem ser agentes políticos ou agentes de valor. Isso está baseado numa separação entre sociedade e natureza.
A ação de outorgar valores focados na utilidade e no benefício imediato reproduz e mantém um padrão de dominação e controle sobre a natureza, afirmou. As consequências mais claras são o utilitarismo, predominância do valor econômico e a supremacia no cultural, acrescentou
A rota dos direitos da natureza é diferente, segundo Gudynas. As referências-chave foram os debates ocorridos nos países andino-amazônicos, que partiram da ideia de que alguns elementos da natureza são sujeitos e tem valores próprios, disse.
“O aporte de sentido aos elementos da natureza vem das tradições dos povos originários e não são unanimidade. Num mesmo povo há diferentes interpretações de como avançar nesse assunto, dadas as diferentes inserções ou independência que os grupos tenham frente ao moderno.”
Esse outro caminho é o que se chama biocêntrico e a particularidade é que ele não deve ser visto como oposto ao antropocentrismo, pelo fato de compreendê-lo, explicou. A postura biocêntrica aceita a pluralidade de valores, aceita o valor econômico, o valor de utilidade, mas revela outros valores antes inferiorizados por esse valor de utilidade, como os valores históricos, estéticos, religiosos, culturais e tradicionais, disse. “Isso tem um impacto nas análises ambientais, nos cálculos de custo-benefício, que não podem ser definidos apenas por valorações utilitárias ou contabilidade em escalas monetizadas.”
O biocentrismo considera os valores intrínsecos dos sujeitos não humanos e independem da agência humana para outorgá-los, afirmou Gudynas. Ele destacou que não se trata de uma expressão exclusiva dos povos originários, pois reflete um debate existente na modernidade desde os anos 40.
Isso é importante para explicar o que aconteceu no Equador: "Os direitos da natureza incluídos na Constituição surgiram tanto no âmbito dos povos originários quanto nas discussões em parte dos modernos sobre sua própria concepção antropocêntrica".
A categoria natureza é uma invenção inevitável da condição dos modernos frente ao que nos rodeia: “Ao reconhecermos valores no não humano, a natureza passa a ser incomensurável. Não há nenhum indicador que possa dar uma representação em essência da categoria natureza, só se pode obter valorações parciais, de aspectos dela”.
Outro aspecto é a ampliação dos mandatos morais sobre o que é certo ou errado, que passam a ser estendidos ao não humano. No caso equatoriano, houve uma confluência de forças políticas que trabalharam nesse sentido nos primeiros anos de um governo progressista: “Uma parte importante dos governantes e suas bases eleitorais incluíam grupos indígenas e militantes sociais que defendiam a ideia”. Havia também na Assembleia Constituinte um líder político que promovia essa consideração, o economista Alberto Acosta, formado na Alemanha, disse.
Além disso, ocorreram casualidades. Uma delas foi um artigo do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) saído numa revista semanal. “O texto no qual ele afirmava que o Equador aprovara os direitos da natureza foi publicado numa sexta-feira e no fim de semana repercutiu em toda a América Latina. Na segunda-feira os constituintes se disseram: a imprensa mundial está dizendo que aprovamos os direitos da natureza, então temos que aprová-los.” A Constituição foi tão inovadora que incluiu um artigo sobre o direito da natureza de ter restaurados seus ambientes degradados, afirmou o sociólogo.
Quase no mesmo período da elaboração da nova Constituição equatoriana, criou-se um mito de que a Bolívia também havia aprovado os direitos da natureza, mas o que diz a constituição boliviana é justamente o contrário, segundo Gudynas. “O artigo 9º dela sustenta que são fins e funções essenciais do Estado promover e garantir o aproveitamento responsável e planejado dos recursos naturais.”.
Ele destacou que o artigo 355 especifica claramente que “a industrialização e comercialização dos recursos naturais serão prioridade do Estado”. Afirmou que o texto legal boliviano mantém alguns direitos a um ambiente saudável e à qualidade de vida a partir da visão antropocêntrica.
Diante disse, argumentou, alguém poderia dizer ser inconstitucional defender a proteção ecológica de um parque nacional onde houvesse uma reserva petrolífera passível de exploração.
Gudynas observou que se trata-se de uma visão tipicamente liberal defender a preservação da natureza por sua importância geral para a humanidade não por um valor dela em si mesma.
PachamamaO artigo 72 da Constituição equatoriana diz explicitamente que “a natureza ou Pachamama onde se reproduz e se realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos.”
A ideia de Pachamama [“Mãe Terra”, na tradução do quéchua], principal divindade dos povos dos Andes centrais, refere-se a um coletivo que envolve o humano e o não humano em bases locais enraizadas no social e no ambiental, incluindo pessoas, gado, áreas silvestres e áreas agrícolas em rotação. Não é análogo à ideia da cultura ocidental sobre áreas silvestres, explicou.
No caso boliviano, no entanto, há uma contradição entre o real sentido do Pachamama e como a ideia da natureza e do bem viver foi apresentada pelo então governo Evo Morales na cena internacional, de acordo com Gudynas. Quando a Bolívia se apresenta em fóruns internacionais, como as COP (Conferências das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima), a analogia é do Pachamama com a Mãe Terra planetária, “violando a ideia original, que é sempre local”.
“Portanto, no discurso nacional e na retórica internacional, se abrem duas avenidas aproveitando o slogan da Mãe Terra internacional. Pode-se criticar o capitalismo, pode-se evocar uma revolução mundial futura pela qual se exigiria/permitiria a proteção dos ecossistemas e acabar com as mudanças climáticas, mas como isso evoca um estado revolucionário biosférico, até que esse sonho se cumpra, os países do sul, nesse caso a Bolívia, continuam sendo extrativistas. E podem replicar aos questionadores: ‘Não temos outra opção senão explorar petróleo e seguir fazendo mineração, porque temos de esperar a revolução planetária'.”
Entre outras considerações adicionais, Gudynas comentou que a concepção antropocêntrica provoca por vezes os chamados “efeitos-derrame”, que são diferentes dos efeitos locais e afetam concepções políticas e políticas públicas, permitindo, tolerando e autorizando extrativismos. No caso brasileiro, afirmou, é o que se dá na discussão se o Ibama vai manter ou não a proibição de exploração de petróleo no litoral do Amapá.
Foto (a partir do alto): Jonathan Hurtado/Servindi; Julieta Suarez/Wikimedia