Os direitos humanos no campo, na cidade e na educação
Em agosto, ocorreram dois encontros do Modulo 2 do Ciclo de Debates Direitos Humanos e Desenvolvimento. O primeiro (dia 15) tratou das relações entre desigualdades sociais e violação dos direitos humanos no campo e na cidade. O segundo (dia 23) discutiu os direitos humanos na educação e o respeito à diferença.
CAMPO E CIDADE
Na primeira parte do evento do dia 15, Ricardo Rezende, da UFRJ, e Rossana Rocha Reis, da FFLCH-USP, falaram sobre desigualdade e direitos humanos no meio rural. Na segunda rodada de discussões, Lúcio Kowarick e Vera da Silva Telles, ambos da FFLCH-USP, exploram a questão no universo urbano.
Rezende tratou do tema a partir do contexto do sul do Pará, região marcada por conflitos entre posseiros e trabalhadores rurais, onde a prática da pistolagem e da escravidão por dívida é recorrente e o índice de assassinatos ligados a disputas agrárias é alto.
Sua exposição concentrou-se no trabalho de defesa dos direitos humanos realizado pela Igreja Católica na região, desde a chegada de frades franceses no final do século 19, com a missão de catequizar os índios, até a intensificação da violência no campo durante a ditadura militar, quando o governo brasileiro lançou o programa de ocupação da Amazônia através da concessão de terras.
Segundo o professor, num primeiro momento, a visão católica sobre direitos humanos estava vinculada à tradição teológica. Mas, a partir da década de 60, tem início um processo de secularização e a Igreja abre-se ao diálogo com a sociologia, antropologia, ciência política e demais correntes teóricas voltadas para a situação vivida pelo povo.
“Surge, então, a ideia de respeito ao outro. A questão da classe social é integrada ao discurso católico e emergem as noções de liberdades sociais, econômicas e individuais”, relatou Rezende, lembrando que a Igreja passou a defender a reforma agrária e chegou a ser perseguida pelos militares sob a suspeita de comunismo.
Mas o marco dessa transformação no sul do Pará, afirmou, foi a chegada da Pastoral da Terra em 1975, da qual foi membro por quase 20 anos. A Pastoral deu início ao registro e à denúncia das mortes e fez uso de mecanismos jurídicos para pressionar o governo brasileiro a tomar providências.
Eixo rural
Retomando alguns aspectos tratados por Rezende, Rocha Reis destacou que a Secretaria Nacional de Direitos Humanos está recontando o número de mortos e desparecidos durante a Ditadura Militar na tentativa de contabilizar as mortes ocorridas no campo.
Para a pesquisadora, é preciso repensar a história dos direitos humanos no Brasil a partir da interação entre movimentos sociais, Igreja e partidos de esquerda que defendiam a reforma agrária. "Esse caldo intelectual envolvendo teologia, marxismo e oposição à ditadura produziu uma interpretação particular dos direitos humanos no Brasil", disse, ressaltando que a bandeira da emancipação no país também passou pelo campo.
Ela afirmou que, apesar disso, a história da luta pelos direitos humanos no Brasil geralmente é contada com foco na dimensão urbana, privilegiando a atuação dos grupos do eixo Rio-São Paulo no confronto político com a ditadura. "Mas pelo menos 40% das atas de fundação dos movimentos estaduais de direitos humanos versam mais sobre a questão da terra que sobre a violência política nas cidades", concluiu.
Moradia e periferização
Kowarick abordou a questão da desigualdade e dos direitos humanos a partir de uma perspectiva histórica do problema da moradia na cidade de São Paulo. Segundo o pesquisador, o surgimento e a multiplicação das favelas e autoconstruções na capital é reflexo do processo de periferização dos pobres disparado nos anos 40.
Até então, a pobreza ficava próxima da riqueza, já que a maior parte da população de baixa renda vivia em cortiços nas áreas centrais da cidade, nos quais as condições de habitação eram precárias: os banheiros eram coletivos e os moradores se amontoavam em cubículos sem ventilação e extremamente úmidos. Isso tornava o ambiente insalubre e sujeito a epidemias. Por isso, propunha-se remover a classe pobre para as periferias.
De acordo com Kowarick, a medida só foi possível a partir dos anos 40, graças a três fatores: a construção do plano de avenidas Prestes Maia, que atravessa a cidade; a lei de inquilinato de 1942, que deu margem para que de 10% a 15% da população fossem desalojados de suas moradias; e a mudança do bonde para o ônibus, "que é um produtor de lotes e terras, porque seu alcance determina até onde é possível construir casas".
O professor frisou que, após ser empurrada para as bordas da cidade, a população pobre acabou em favelas e autoconstruções, localizadas em regiões longínquas, onde os índices de violência são altos e a infraestrutura urbana é deficiente. "Atualmente, cerca de 12% da população de São Paulo vive em favelas", disse.
Celebração da pobreza
O debate foi fechado com a exposição de Silva Telles. A professora falou sobre o que chama de "celebração da pobreza" nas favelas, principalmente nas pacificadas, e sobre o paradoxo que isso representa num cenário marcado por desigualdades.
"Nos lugares em que há intervenção de programas sociais, observa-se uma espantosa e desconcertante celebração da pobreza como o lugar da criatividade, da invenção, das promessas. A pobreza se transformou em mercado. Há uma onda de empreendedorismo, a ideia de transformar o pobre em consumidor e em empreendedor", destacou.
No entanto, se por um lado a pobreza é celebrada, por outro as favelas são consideradas zonas de risco e ficam sujeitas a formas de controle social extremamente agressivas e repressivas, muitas vezes ligadas à força militar, advertiu.
EDUCAÇÃO
O segundo encontro do Módulo 2 do ciclo (dia 23) debateu o tema Direitos Humanos, Diferença e Educação. Três enfoques tiveram destaque nas discussões: a militância, a prática educativa e a prática sociológica.
Militância
Margarida Genevois, integrante do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, evocou sua militância política, desde os tempos da ditadura, época em que presidiu a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, para afirmar que a luta pelos direitos humanos deve permear todas as disciplinas escolares, na formação contínua dos indivíduos.
Ela explicou que a opção pela defesa dos direitos dos presos políticos levou muitos dos que haviam sofrido nos porões da ditadura a se voltarem, depois, para a defesa dos direitos de todos os presos. Genevois disse que essa escolha de luta, após a lenta e gradual volta à democracia, fez com que a extrema direita acusasse a Igreja de defender os "direitos de bandidos", ideia que perdura até hoje, na sua opinião. "Na realidade, aquelas ações eram para melhorar as condições de cárcere de todos os presos, independentemente dos crimes praticados."
Não foi diferente a trajetória de Flávia Schilling, professora do Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da USP. A militância política dos tempos da juventude, quando foi encarcerada no Uruguai, no início dos anos setenta, deu lugar à militância educativa.
Ela lembrou o choque que teve quando, ao ler a Declaração Universal dos Direitos Humanos num curso de licenciatura, um aluno de biologia lhe perguntou: "O que eu tenho com isso?" Capítulo por capítulo, ela lhe mostrou que "sim, temos tudo a ver com isso". Para ela, a declaração é "o único documento laico que nos sugere alguma possibilidade de viver juntos e isso é inigualável”.
Prática educativa
Flávia Schilling explicou que sua linha de trabalho adota o pensamento filosófico de Michel Foucault (1926-1984) como fio condutor para os estudos na análise do papel da educação na sociedade, embora Foucault não tenha trabalhado diretamente com a questão da educação ou dos direitos humanos: "O pensamento do filósofo sobre a educação e seus dilemas sintetizam as problemáticas vividas pela escola desde sempre".
Segundo a pesquisadora, Foucault afirma em uma aula, depois publicada com o título “A Ordem dos Discursos”, que todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos com saberes e poderes que trazem. Sob esse ponto de vista, comentou, pode-se perceber as várias correntes nas quais a efetiva participação da escola permitiu ou perpetuou, ou simplesmente reproduziu e modificou a sociedade, incluindo a rejeição aos direitos humanos.
Para ela, pensar em como a melhoria dos outros direitos – à moradia, à saúde, ao trabalho – podem repercutir em uma melhora do ensino é o que se deve levar em conta quando, novamente, surge a assertiva de que a educação é a salvadora da sociedade: "Pergunto, invertendo a questão: o que os demais direitos tem a dizer e a fazer em relação aos direitos à educação?".
Diversidade
Outra experiência, que não a militância nem a prática da docência, levou o sociólogo Richard Miskolci, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, a entender que a área educacional tem suas especificidades, mas que faz parte da mesma história que todos vivenciam em qualquer área de atuação.
Miskolci vivenciou essa experiência num curso online que coordenou sobre o tema Gênero, Diversidade na Escola para cerca de 1.400 professores da rede do ensino médio de todo o país. Esse contato com realidades distintas e desconhecidas o fizeram perceber que o processo educacional não está além de outras realidades. As demandas sociais fazem com que a escola se torne uma fronteira de embate, de luta entre "o passado autoritário, preconceituoso e problemático e a promessa de um futuro plenamente democrático e de acesso a direitos".
Para Sérgio Adorno, coordenador da Cátedra Unesco Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, o módulo sobre Direitos Humanos, Diferença e Educação permitiu ver quais são "os desafios que a educação coloca e a atualidade das questões que estão sendo postas". Advertiu que é preciso ir além da dialética entre igualdade e diferença, entre universalidade e relatividade dos direitos para que “possamos construir uma sociedade mais justa, mais igualitária e, sobretudo pacificada internamente".
O ciclo de debates é uma realização da Cátedra Unesco, sediada no IEA, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) e do Centro Universitário Maria Antonia (Ceuma) da USP. A iniciativa tem o apoio do Departamento de Ciência Política (Proex-Capes) da FFLCH-USP e da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (Andhep).
Foto: Sandra Codo/IEA-USP