Especialistas questionam conceitos “emprestados” à história ambiental
“Poucas pesquisas abordam a história dos mananciais ou mesmo o abastecimento em São Paulo. A tarefa é grandiosa e ainda mal começou. A lista de mananciais e de fontes de água superficiais ou subterrâneas que ainda aguarda historiadores é enorme. Há muita documentação e reflexão que precisa ser feita”. A declaração é do professor Janes Jorge, do programa de pós-graduação do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), feita durante o encontro Meio Ambiente e Dimensão Histórica: Perspectivas de Abordagens, realizado no IEA no dia 28 de setembro.
A partir da esq.: Janes Jorge, Dora Schellard Corrêa e José Jonas de Almeira |
Autor de “Tietê, o rio que a cidade perdeu”, Jorge apresentou a linha do tempo das constantes crises hídricas, iniciadas no século 19 com a urbanização da cidade de São Paulo e a posterior expansão da metrópole.
Sob a perspectiva do abastecimento urbano, o professor mostrou como os historiadores podem problematizar padrões que se repetem ao longo da história. “A incorporação de novos mananciais após sucessivas degradações de rios e bacias tem sido uma constante. Quais fatores no Brasil e na Região Metropolitana de São Paulo fazem esse padrão de degradação?”, questionou.
Em meados do século 19, o Anhangabaú foi o primeiro manancial abandonado devido à urbanização de seu entorno. O mesmo movimento de ocupação desordenada, expansão demográfica e desativação de bacias e degradação de rios ocorreu periodicamente, até chegar à crise atual, disse.
Como um filme narrado, o professor apresentou a ascensão e queda da bacia da Serra da Cantareira, das fontes do Ipiranga, dos mananciais de Cotia e Rio Claro; a degradação dos rios Tamanduateí, Tietê e Pinheiros e das represas Guarapiranga e Billings e, finalmente, o colapso do Sistema Cantareira. “Será que essa lógica de urbanização deve ser mantida?”, afirmou.
Os palestrantes refletiram sobre linhas metodológicas, categorias e temáticas de pesquisa, norteados pelo tema do seminário. Organizado pelo Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade e pelo Grupo de Trabalho História Ambiental - ANPUH/SP , o debate teve a coordenação de Jorge, além da professora Silvia Helena Zanirato, do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP) e de Pedro Jacobi, coordenador do Grupo de Pesquisa do IEA e professor da Faculdade de Educação (FE-USP).
Também participaram Paulo Henrique Martinez, da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Assis (SP); Dora Schellard Corrêa, do Centro Universitário Fieo Unifieo; José Jonas de Almeida, pesquisador de História Econômica da USP; e Roger Domenech Colacios (UNESP).
Interdisciplinaridade
Em sua intervenção, a professora Zanirato questionou se a prática interdisciplinar da história ambiental está influenciando os métodos científicos da pesquisa histórica a ponto de por em risco a identidade disciplinar. “É preciso muito cuidado com as transposições de categorias e de conceitos. A abertura ao campo ambiental não deve implicar em perder o que já aprendemos”, defendeu.
Zanirato citou a historiadora Verena Winiwarter para questionar sobre o “uso irrefletido de temas ecológicos ou de outros conceitos das ciências naturais” por parte de historiadores e outros cientistas sociais. “A interdisciplinaridade não é fácil e exige uma sólida base epistemológica”, disse. A complexidade própria da teoria socioambiental propicia uma noção lógica, não quantitativa, afirmou, citando Edgard Morin.
“Não poucas vezes, a história ambiental analisa dado problema sem estabelecer o nexo, a continuidade das explicações do ocorrido com a situação atual e, menos ainda, com os desafios futuros”, acredita.
Segundo Zanirato, o tempo e o espaço devem permanecer categorias fundamentais da pesquisa em história, já que a disciplina foca as transformações das ações humanas no tempo no espaço. Porém, é preciso encontrar outros sentidos do tempo e do espaço, não mais focado na ideologia do progresso e da evolução. O tempo pode ser múltiplo, divergente. O espaço, multifacetário; um produto social que não é passivo.
"Os métodos são construídos e adaptados conforme o objeto de pesquisa. Porém, a história ambiental não possui um objeto de pesquisa próprio", disse o professor Paulo Henrique Martinez, da UNESP.
A partir da esq.: Paulo Martinez, Silvia Zanirato e Roger Colacios |
Martinez acredita que o mundo globalizado está passando por um redimensionamento da vida rural e urbana, num processo de revalorização social e cultural do ambiente. Com isto, a história vem sofrendo as influências da área ambiental. "Porém, a identidade disciplinar é fundamental para a interlocução disciplinar", ressaltou.
RelacionadoNotícia: Meio Ambiente e Dimensão Histórica: Perspectivas de Abordagens Vídeo:
|
---|
História da história
A história ambiental no Brasil nasceu de fonte americana, embora atualmente sofra grande influência da historiografia francesa. “Talvez por isso a expressão de Warren Dean seja tão marcante entre os historiadores brasileiros”, lembrou a professora Dora Schellard Corrêa, do Centro Universitário Fieo (Unifieo).
O autor da obra referencial “A ferro e fogo – A história da destruição da Mata Atlântica brasileira”, lançada no Brasil em 1996, foi lembrado por todos os expositores. Escreveu vários artigos e obras inspiradoras para os historiadores ambientais brasileiros, entre elas “A luta pela borracha no Brasil”, de 1989, ou ainda “Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura”, de 1977.
Além de Dean, José Augusto Drummond e o norte americano Donald Worster influenciaram o gênero historiográfico que se expandiu no Brasil, sobretudo a partir da década de 1980, lembrou a professora Corrêa.
A historiografia mais recente no Brasil vem ganhando as influências francesa e inglesa de autores como Marc Bloch, Fernand Braudel, Alain Corbin, Emmanuel Le Roy Ladurie, Keith Thomas, Raymond Williams, E.P. Thompson, Simon Schama e outros, disse.
Há autores que acreditam que a história ambiental tem suas raízes nos chamados “redescobridores do Brasil”, ou clássicos brasileiros como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. “Observar a paisagem e o meio ambiente não é uma prática recente”, lembrou a professora.
Autores nacionais como Regina Horta Duarte e José Luiz de Andrade Franco ou Laurenço Baeta, Navarro de Andrade, Augusto Loeffreen e muitos outros também criticaram o crescimento que destrói o ambiente natural, lembrou.
Porém, ainda não há consenso entre os autores sobre “quanto e como” a história ambiental deve avançar, ou ainda, como deve ocorrer a assimilação de teorias, conceitos e técnicas. Os programas interdisciplinares que envolvem historiadores parecem estar construindo “interlocuções e nexos que viabilizem o entendimento entre as diversas áreas”, disse Côrrea.
O pesquisador de História Econômica da USP, José Jonas de Almeida, lembrou que a questão ambiental passou a ser incorporada aos vários ramos do conhecimento a partir da década de 1970. Foi também nesse período que surgiu a chamada História Ambiental, que paulatinamente foi ganhando um corpo teórico mais consistente, disse.
Caixa-preta
Entropia, ecossistemas, biodiversidade, degradação, antropoceno, natureza, recursos naturais, paisagem, território e muitos outros termos são comumente utilizados nos trabalhos dos pesquisadores desse ramo historiográfico. Porém, o teor desses conceitos é pouco discutido, bem como seus significados e seus processos de construção. Simplesmente são aceitas “caixas-pretas”, no sentido atribuído por Bruno Latour e outros teóricos da ciência. Mas a caixa-preta precisa ser aberta, defendeu o historiador Roger Domenech Colacios, da UNESP.
“Os historiadores do meio ambiente não têm por hábito pensar na construção ou mesmo na historicidade dos conceitos que utilizam. Não há, de maneira geral, uma reflexão sobre esses conceitos e nem sobre as práticas multidisciplinares da História Ambiental. Não abrem a caixa-preta”, afirma.
Colacios acredita que no entendimento dos historiadores ambientais, há uma distância entre sociedade e natureza, meio ambiente e ser humano, como se fossem elementos descolados que interagem, porém não são reconhecidos como uma mesma entidade. Isto porque a caixa-preta permanece fechada e assim não permite a discussão do sentido que o pesquisador pretende dar ao meio ambiente. “Nesse sentido, isso determina os rumos adotados na abordagem historiográfica”, disse.
Fotos: Leonor Calasans/IEA