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Fármacos carecem de ambiente institucional para inovação

por Sylvia Miguel - publicado 15/12/2015 17:10 - última modificação 14/01/2016 17:25

Cultura para produção de conhecimento de alto impacto melhora e favorece a área de biotecnologia, mas gargalos ainda impedem que a pesquisa nacional alcance patamares internacionais.
Fármacos
Inovação e fármacos foram temas de workshop organizado pela Pró-reitoria de Pesquisa  (PRP) da USP.

A produção científica brasileira e o volume de artigos publicados cresceram nas últimas décadas, mas ainda é uma ciência considerada de baixo impacto. Faltam ousadia e qualidade para que a pesquisa nacional melhore em termos de inovação, geração de patentes e conhecimento novo, além de desenvolvimento de produtos. O tema vem ocupando a agenda de instâncias governamentais e acadêmicas na busca de um caminho por novos patamares para a pesquisa brasileira.

Como resultado desses debates, a comunidade acadêmica vem sedimentando a ideia de que a colaboração científica e tecnológica entre cientistas e entidades nacionais e estrangeiras poderá ser um caminho para a superação dos desafios em comum. Foi pensando em estruturar um ambiente colaborativo para a pesquisa que a Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo (PRP-USP) vem organizando a série Strategic Workshops PRP/USP.

O terceiro encontro do ciclo, Desenvolvimento de Fármacos e Medicamentos na USP, reuniu no dia 10 de dezembro no IEA especialistas como Jorge Kalil, diretor do Instituto Butantan; José Fernando Perez, ex-diretor científico da Fapesp e presidente da empresa de biotecnologia Recepta Biopharma; o professor Glaucius Oliva, do Instituto de Física da USP de São Carlos, além do pró-reitor de Pesquisa, José Eduardo Krieger, entre outros.

A inovação no cenário farmacêutico nacional e as dificuldades nas etapas de desenvolvimento de produtos inovadores na área de fármacos no Brasil foram o foco dos expositores. A série iniciada em setembro já debateu a eletroquímica produzida na USP e a inserção da bioeconomia na vida cotidiana.

Com apoio da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (ACIESP), o ciclo é organizado por Hamilton Varela, assessor da PRP-USP, professor do Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP) e presidente da Comissão de Pesquisa do IEA, e Adriano Andricopulo, professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP).

Luiz Henrique Catalani, Adriano Andricopulo, Hamilton Varela e José Eduardo Krieger
A partir da esq.: Catalani; Andricopulo; Varela e Krieger.

Participaram o professor Luiz Henrique Catalani, do Instituto de Química (IQ) da USP; Célia Regina da Silva Garcia, do Instituto de Biociências (IB) da USP; Norberto Peporine Lopes, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP (FCF-RP); Hamilton Varela, do Instituto de Química de São Carlos da USP (IQSC-USP); Gustavo Kesselring, da Associação Brasileira de Medicina Farmacêutica (SBMF).

Inovação e parques tecnológicos

Krieger contextualizou a realização dos workshops dentro da iniciativa pioneira da USP e instituições parceiras em fomentar espaços de cooperação científica e inovação tecnológica, como foi a criação do Cietec Inovação e Empreendedorismo, citou.

“Precisamos identificar players dentro da USP e representantes das demandas externas para que possamos explorar oportunidades de forma sistêmica. A ideia no médio e longo é prazo darmos andamento a muitos convites recebidos. A saúde é certamente uma área com tremendas oportunidades, seja por demandas sociais ou de empresas”, disse o pró-reitor.

Para qualificar o debate, é preciso esclarecer confusões em torno do conceito de inovação, acredita o cientista. “A inovação não é missão da universidade nem no Brasil e nem no exterior porque a universidade não constitui o ambiente mais adequado onde isso pode ser feito. Quem inova são as empresas. Mas isso não tira a responsabilidade de a universidade garantir o envolvimento de seu quadro nesse processo. É por isso que devem existir espaços físicos contíguos à Universidade para pesquisa e desenvolvimento”, disse, ao citar o papel dos parques tecnológicos.

Para o pró-reitor, faltam espaços contíguos à Universidade não só para dar vazão às empresas incubadas, mas também para absorver a oferta de novas modalidades de incubação.

“Temos 114 empresas incubadas e muitas das graduadas não têm para onde ir porque faltam espaços. Há uma tentativa de termos um parque tecnológico próximo à USP. Mas na verdade aquele espaço que temos é um arremedo de parque, porque o local tem apenas 80 mil metros quadrados, sendo metade do Estado e metade da USP. Para que o terreno fosse encaixado na lei dos parques tecnológicos, que exige 200 mil metros quadrados, incluiu-se o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) como parte disso. Porém, não podemos criar nada lá dentro do IPT. Isso foi um truque”, disse Krieger.

Segundo o pró-reitor, há negociações entre governos, iniciativa privada e agências financiadoras no sentido de disponibilizar a atual área do Ceagesp, de 770 mil metros quadrados, para essa finalidade. As conversações incluem também um terreno pertencente à Votorantin, de 105 mil metros quadrados.

Lembrou os desafios para o país criar um ambiente de fomento à inovação. Citou o exemplo do mercado de saúde brasileiro, que é imenso, mas com grandes assimetrias. De toda a cadeia do sistema de saúde, 80% das 500 maiores empresas transnacionais têm envolvimento no país, mostrou.  “Mas isso não se reverte em investimentos em P&D no país. Elas não investem seja pelo custo Brasil ou por questões jurídicas. Mas para nós da academia isso representa oportunidade”, disse.

Jorge Kalil
Para Kalil, o atraso na ciência e na saúde é pago com vidas.

Desafios na saúde pública

A área de pesquisa e o desenvolvimento (P&D) de fármacos já passou por diversos ciclos, desde o uso de produtos naturais e derivativos para a criação da penicilina, por exemplo, até chegar à engenharia genética e à biologia celular. As técnicas mais recentes permitem alcançar o tratamento de doenças degenerativas e autoimunes, além do câncer.

Os anticorpos monoclonais, produzidos a partir de um único clone celular, são possíveis graças aos avanços da biologia celular. Por sua alta especificidade em atuar em determinado grupo de células, representam o que há de mais moderno na farmacologia.

Porém, não há no mercado anticorpos monoclonais produzidos no Brasil, o que vem sobrecarregando os gastos do sistema público de saúde, segundo Kalil. Os medicamentos biológicos representam 2% do volume total dos remédios comprados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sendo que 1% deles é monoclonal. Se os monoclonais representam 0,1% do volume de medicamentos adquiridos pelo SUS, o dispêndio com esses produtos chega a 14% do gasto total com medicamentos, comparou o imunologista.

“Estamos com um atraso terrível, apenas aprendendo a copiar os biossimilares. Acredito que o problema é termos economistas planejando ciência, tecnologia e saúde desde o Regime Militar. É preciso dizer que cortar investimentos nessas áreas não é igual a parar uma obra que depois pode ser retomada. O atraso na ciência e na saúde é pago com vidas”, disse Kalil.

Kalil questiona os números oficiais sobre a intensidade do gasto em P&D, que atribuem às empresas 42% do volume de investimentos, 38% à esfera federal e 18% aos recursos estaduais. “Ao menos no ramo de fármacos, o dado é falacioso porque as empresas investem majoritariamente em genéricos, o que não representa propriamente inovação”, disse.

Os baixos investimentos em ciência, tecnologia, desenvolvimento e inovação, além de um ambiente fiscal e regulatório nocivo, não permitirão que o país consiga enfrentar os desafios de saúde pública nas próximas décadas, acredita Kalil.

O cientista citou as doenças crônicas, o ressurgimento de doenças infecciosas e o envelhecimento da população como alguns dos desafios que já despontam no país e carecem de investimentos. “O Brasil infelizmente não pensa nisso. Primeiro pensamos se outros países já resolveram o problema, mas não enxergamos que nós também podemos resolver”, disse.

“Não é a toa que tenho 12 de meus alunos atuando no exterior. Um dos que achávamos que não precisávamos aqui está chefiando um departamento no MIT (Massachusetts Institute of Technology)”, disse o cientista.

Burocracia e dengue

Mosquito da dengue

Laboratórios estrangeiros quiseram comprar vacina contra dengue antes que ANVISA aprovasse fase 3.

Durante o debate no IEA, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ainda não havia aprovado a realização da fase 3 de testes da vacina polivalente contra a dengue. A vacina vem sendo desenvolvida pelo Instituto Butantan há 10 anos, numa parceria com os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH). O pedido feito no dia 10 de abril à ANVISA já havia sido aprovado por outros órgãos, mostrou Kalil.  A aprovação da agência veio na sexta-feira, 11 de dezembro.

Os testes clínicos, ou de fase 3, terão a duração de um ano. Nesse período, 15 centros de imunização em todo o país irão testar a vacina em 17 mil voluntários de 2 a 59 anos de idade. A notícia foi um alívio para uma população assolada pela dengue, já que somente após os testes clínicos é possível disponibilizar uma imunização segura e eficaz. “Acompanharemos essas pessoas por cinco anos, mas é provável que em nove meses já tenhamos uma resposta sobre a ação da vacina”, disse Kalil.

A morosidade dos órgãos governamentais em aprovar ou dar seguimento a processos que envolvam inovação de produtos, novas técnicas ou mesmo pesquisas clínicas em geral foi uma das críticas feitas por Kalil. Para o imunologista, a burocracia e o excesso de leis representam os principais obstáculos ao ambiente de inovação no país.

“Cheguei ontem dos Estados Unidos e recebemos pela terceira vez uma oferta de um grande laboratório para a compra da vacina da dengue ainda na fase 2. Eles estão muito otimistas quanto aos resultados obtidos até agora. Mas no Brasil, pedem 10 formulários, você responde e depois pedem outros e mais outros. Nossos órgãos públicos têm medo de dizer sim porque aprovar pesquisas significa assumir riscos e  responsabilidades”, disse.

Para o especialista, as empresas farmacêuticas no Brasil estão muito longe do empreendedorismo porque falta capital, além de um ambiente institucional para inovação.

“A ciência produzida na universidade morre nela, porque as barreiras são enormes até o desenvolvimento de um novo produto. As próprias farmacêuticas nacionais investem no exterior. Precisamos pensar por que isso está acontecendo. Temos que saber como atravessar o ‘vale da morte’ entre a descoberta científica e o produto. Muito desse papel está sendo feito por empresas de biotecnologia”, disse Kalil.

Ilhas de excelência

José Fernando Perez
Para Perez, há pouca competência em áreas estratégicas da inovação e falta experiência na elaboração de protocolos clínicos.

“A Universidade tem ilhas de excelência com uma competência extraordinária, de nível internacional. Mas os desafios começam quando há muita publicação e pouca descoberta. As pessoas e as instituições têm medo de buscar o risco, mas é aí que está a inovação. Temos uma cultura de apresentar só projetos que vão dar certo, mas o impacto disso é pequeno”, disse Perez.

Físico e engenheiro, Perez explicou o papel da empresa de biotecnologia onde é diretor presidente. “Só fazemos pesquisa, não produzimos drogas nem comercializamos. A ideia é chegarmos a uma descoberta molecular, demonstrar sua potencial eficácia em testes de fase 1 ou mesmo pré-clínicos e negociar com a indústria farmacêutica, que então irá prosseguir o desenvolvimento até a fase 3 e a posterior comercialização do produto”, explicou.

Segundo Perez, ainda falta mão de obra qualificada para esse trabalho no Brasil. Além disso, há pouca competência e experiência na elaboração de protocolos clínicos. “Na verdade as multinacionais criaram uma infraestrutura para testes clínicos, mas os brasileiros ainda não chegaram lá e não usam essa estrutura. A competência ainda precisa ser garimpada. Apesar de tudo houve uma mudança cultural para incentivar a inovação”, disse.

A Recepta não seria bem sucedida se não houvesse uma mudança cultural para a inovação e a empresa se beneficiou de todas as mudanças recentes nesse ambiente, disse. “Fomos a primeira empresa brasileira a fazer um teste clínico de fase 2 oncológico. E a ANVISA titubeou. Porque falta competência na agência regulatória, falta gente. Não acredito que seja má vontade”.

A empresa também patenteou recentemente um peptídeo com efeito tumoral muito significativo, disse. Contou também que foi a primeira empresa nacional a licenciar propriedade intelectual de uma droga para tratamento de câncer no Brasil.

“O sistema não está preparado para a inovação. Ele não é só burocrático. Falta conhecimento e as questões tributárias também dificultam. Mas muita coisa tem sido possível graças às parcerias. Temos o maior interesse em sermos receptores de alvos interessantes para possível desenvolvimento de produto”, disse.

Fotos:  no alto: Daino_16/Free Images;
James Gathany