Em um mundo multipolarizado, especialistas questionam o modelo de política externa do Brasil
Com a intensificação das tensões no Oriente Médio, a invasão da Rússia na Ucrânia, crises climáticas e sanitárias como a pandemia do Covid-19, a ascensão comercial da China, expansão do Brics e crise nas democracias, a geopolítica global foi impactada, o que gerou o questionamento em especialistas: neste atual cenário, o modelo tradicional de política externa brasileira ainda funciona?
O tema foi discutido no encontro “A Nova Geopolítica Global e o Lugar do Brasil”, no dia 2 de outubro, no IEA, quando pesquisadores também analisaram as vantagens e desvantagens do sistema multipolar e da presença brasileira em grupos econômicos.
Participaram Cristiane Lucena, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP); Eduardo Viola, professor sênior e pesquisador associado no IEA; Matias Spektor, fundador e professor da Escola de Relações Internacionais da Faculdade Getúlio Vargas (FGV); Lourdes Sola, professora sênior do IEA, vinculada ao Departamento de Ciência Política; e Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais na FGV.
A partir da análise da história da política externa brasileira e seus princípios, os palestrantes apresentaram o atual panorama da geopolítica global e os desafios do Brasil nesse contexto. Cristiane explicou que o cenário contemporâneo da geopolítica é baseado na ordem liberal internacional, institucionalizada após a Segunda Guerra Mundial pelos países vencedores (Inglaterra, Estados Unidos, União Soviética e França), com foco no princípio do multilateralismo. Para ela, “é uma geopolítica de bastante ruído”.
Em comparação com esses países da ordem, Spektor disse que o Brasil é considerado um “latecomer”, ou seja, atrasado. O pesquisador explicou que o atual modelo de política externa brasileiro foi idealizado pelo advogado, sociólogo e cientista social Hélio Jaguaribe. O projeto foi criado com base no nacionalismo e autonomia de alinhamentos em geral, o que, segundo Spektor, “permite ao Brasil modelar dois tipos de autonomismo: o autonomismo de esquerda e o de direita. Esse feitio não acontece em nenhum outro país da América Latina”.
Geopolítica contemporânea e o Brasil
Para o pesquisador Eduardo Viola, o mundo está vivendo uma bipolaridade na multipolaridade, marcado pela divisão entre as democracias ocidentais e asiáticas e as autocracias. “Nós temos a aliança das democracias ocidentais, OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], e asiáticas – Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Filipinas, Austrália, Nova Zelândia e Israel – de um lado. Do outro lado, o bloco das autocracias, cada vez mais interdependentes – China, Rússia, Irã e Coreia do Norte –, que não constituem uma aliança formal.”
Esse sistema multipolar, segundo Spektor, é considerado o pior sistema pela literatura de relações internacionais por ser altamente instável. O pesquisador explicou que esse cenário trouxe questionamentos sobre a atual política externa do Brasil. “Esse arcabouço serve ao Brasil na multipolaridade? A minha resposta é não. É impossível você se manter em cima do muro em um ambiente multipolar, como estamos vendo, não estamos conseguindo.”
Viola declarou que a melhor opção para a política externa brasileira seria o não alinhamento, com certa inclinação pelo bloco das democracias ocidentais, historicamente próximas ao Brasil. Em relação ao governo atual, ele afirmou que a “política externa do governo Lula tem certa inclinação pelo bloco das autocracias”.
“O Brasil tem buscado, em vários sentidos, traçar ou articular algum tipo de multi-alinhamento, por exemplo apoiando resoluções das Nações Unidas altamente críticas à Rússia, mas ao mesmo tempo, no ano passado, sendo o principal comprador de diesel russo e aceitando feliz da vida o fertilizante russo à um grande desconto”, declarou Oliver Stuenkel. Para o professor, o multi-alinhamento brasileiro ainda não teve custos reais para o Brasil, o que pode mudar com a possível reeleição de Donald Trump nos Estados Unidos.
Política anti-China e o Brics+
Com a ascensão da China como potência econômica, os palestrantes também trataram da relação do Brasil com o país, e a propaganda anti-China defendida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. “Existe um consenso, talvez maior do parece, entre a esquerda e a direita brasileira, porque durante o governo Bolsonaro a relação entre a China e o Brasil não sofreu de fato. O comércio cresceu e a China, apesar de alguns incômodos, também aprendeu que talvez não seja tão relevante o que o candidato diz durante a campanha, porque em alguns quesitos centrais o Bolsonaro se recusou a se alinhar com os Estados Unidos”, explicou Stuenkel.
Para os palestrantes, apesar do Brasil ser um grande exportador de alimentos, minérios e energia, ele ainda depende economicamente da China. Spektor explicou que essa posição contrária de Bolsonaro, durante sua campanha, atraiu eleitores, porém não se concretizou por conta dessa dependência estrutural.
Sobre a atuação brasileira no Brics, expandido em 2023, Stuenkel afirmou que o Brasil “tem tido um papel moderador”, com uma posição favorável ao multi-alinhamento. Segundo ele, o grupo é positivo para as relações Brasil-Ásia: “O Brasil ganha ao fazer parte do Brics a possibilidade de, em parte, recuperar esse grande déficit de ignorância em relação à Ásia, o que ajuda o Brasil a articular uma estratégia um pouco mais sofisticada em relação à ascensão asiática”.
Já para Viola, a permanência do Brasil no grupo é cada vez mais problemática, por conta da hegemonia chinesa, o predomínio dos regimes autocráticos e das economias intensivas no uso de carbono, como Rússia, Irã, China, África do Sul, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.
Organizado pelo Grupo de Pesquisa Economia Política Internacional, Variedades de Democracia e Descarbonização, o encontro foi transmitido ao vivo e está disponível na midiateca do IEA. Clique aqui para assistir ao evento completo.