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Em um mundo multipolarizado, especialistas questionam o modelo de política externa do Brasil

por Lívia Uchoa - publicado 10/10/2024 17:05 - última modificação 11/10/2024 10:13

Encontro reuniu pesquisadores em relações internacionais para analisar a atual posição brasileira na geopolítica global

Com a intensificação das tensões no Oriente Médio, a invasão da Rússia na Ucrânia, crises climáticas e sanitárias como a pandemia do Covid-19, a ascensão comercial da China, expansão do Brics e crise nas democracias, a geopolítica global foi impactada, o que gerou o questionamento em especialistas: neste atual cenário, o modelo tradicional de política externa brasileira ainda funciona?

O tema foi discutido no encontro “A Nova Geopolítica Global e o Lugar do Brasil”, no dia 2 de outubro, no IEA, quando pesquisadores também analisaram as vantagens e desvantagens do sistema multipolar e da presença brasileira em grupos econômicos.

A Nova Geopolítica
Da esquerda para a direita, Cristane Lucena, Eduardo Viola, Lourdes Sola, Oliver Stuenkel e Matias Spektor | Foto: Leonor Calasans - IEA/USP

Participaram Cristiane Lucena, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP); Eduardo Viola, professor sênior e pesquisador associado no IEA; Matias Spektor, fundador e professor da Escola de Relações Internacionais da Faculdade Getúlio Vargas (FGV); Lourdes Sola, professora sênior do IEA, vinculada ao Departamento de Ciência Política; e Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais na FGV.

A partir da análise da história da política externa brasileira e seus princípios, os palestrantes apresentaram o atual panorama da geopolítica global e os desafios do Brasil nesse contexto. Cristiane explicou que o cenário contemporâneo da geopolítica é baseado na ordem liberal internacional, institucionalizada após a Segunda Guerra Mundial pelos países vencedores (Inglaterra, Estados Unidos, União Soviética e França), com foco no princípio do multilateralismo. Para ela, “é uma geopolítica de bastante ruído”.

Em comparação com esses países da ordem, Spektor disse que o Brasil é considerado um “latecomer”, ou seja, atrasado. O pesquisador explicou que o atual modelo de política externa brasileiro foi idealizado pelo advogado, sociólogo e cientista social Hélio Jaguaribe. O projeto foi criado com base no nacionalismo e autonomia de alinhamentos em geral, o que, segundo Spektor, “permite ao Brasil modelar dois tipos de autonomismo: o autonomismo de esquerda e o de direita. Esse feitio não acontece em nenhum outro país da América Latina”.

Geopolítica contemporânea e o Brasil

Para o pesquisador Eduardo Viola, o mundo está vivendo uma bipolaridade na multipolaridade, marcado pela divisão entre as democracias ocidentais e asiáticas e as autocracias. “Nós temos a aliança das democracias ocidentais, OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], e asiáticas – Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Filipinas, Austrália, Nova Zelândia e Israel – de um lado. Do outro lado, o bloco das autocracias, cada vez mais interdependentes – China, Rússia, Irã e Coreia do Norte –, que não constituem uma aliança formal.”

Esse sistema multipolar, segundo Spektor, é considerado o pior sistema pela literatura de relações internacionais por ser altamente instável. O pesquisador explicou que esse cenário trouxe questionamentos sobre a atual política externa do Brasil. “Esse arcabouço serve ao Brasil na multipolaridade? A minha resposta é não. É impossível você se manter em cima do muro em um ambiente multipolar, como estamos vendo, não estamos conseguindo.”

Viola declarou que a melhor opção para a política externa brasileira seria o não alinhamento, com certa inclinação pelo bloco das democracias ocidentais, historicamente próximas ao Brasil. Em relação ao governo atual, ele afirmou que a “política externa do governo Lula tem certa inclinação pelo bloco das autocracias”.

“O Brasil tem buscado, em vários sentidos, traçar ou articular algum tipo de multi-alinhamento, por exemplo apoiando resoluções das Nações Unidas altamente críticas à Rússia, mas ao mesmo tempo, no ano passado, sendo o principal comprador de diesel russo e aceitando feliz da vida o fertilizante russo à um grande desconto”, declarou Oliver Stuenkel. Para o professor, o multi-alinhamento brasileiro ainda não teve custos reais para o Brasil, o que pode mudar com a possível reeleição de Donald Trump nos Estados Unidos.

Política anti-China e o Brics+

Com a ascensão da China como potência econômica, os palestrantes também trataram da relação do Brasil com o país, e a propaganda anti-China defendida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. “Existe um consenso, talvez maior do parece, entre a esquerda e a direita brasileira, porque durante o governo Bolsonaro a relação entre a China e o Brasil não sofreu de fato. O comércio cresceu e a China, apesar de alguns incômodos, também aprendeu que talvez não seja tão relevante o que o candidato diz durante a campanha, porque em alguns quesitos centrais o Bolsonaro se recusou a se alinhar com os Estados Unidos”, explicou Stuenkel.

Para os palestrantes, apesar do Brasil ser um grande exportador de alimentos, minérios e energia, ele ainda depende economicamente da China. Spektor explicou que essa posição contrária de Bolsonaro, durante sua campanha, atraiu eleitores, porém não se concretizou por conta dessa dependência estrutural.

Brics
Reunião do Brics no Sandton Convention Centre, em Joanesburgo | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Sobre a atuação brasileira no Brics, expandido em 2023, Stuenkel afirmou que o Brasil “tem tido um papel moderador”, com uma posição favorável ao multi-alinhamento. Segundo ele, o grupo é positivo para as relações Brasil-Ásia: “O Brasil ganha ao fazer parte do Brics a possibilidade de, em parte, recuperar esse grande déficit de ignorância em relação à Ásia, o que ajuda o Brasil a articular uma estratégia um pouco mais sofisticada em relação à ascensão asiática”.

Já para Viola, a permanência do Brasil no grupo é cada vez mais problemática, por conta da hegemonia chinesa, o predomínio dos regimes autocráticos e das economias intensivas no uso de carbono, como Rússia, Irã, China, África do Sul, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

 

 

Organizado pelo Grupo de Pesquisa Economia Política Internacional, Variedades de Democracia e Descarbonização, o encontro foi transmitido ao vivo e está disponível na midiateca do IEA. Clique aqui para assistir ao evento completo.