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Humanidades pela evolução dos métodos disciplinares

por Sylvia Miguel - publicado 19/04/2016 16:20 - última modificação 03/05/2016 16:38

A busca de diálogos interdisciplinares norteou um dia inteiro de discussões durante a Intercontinental Academia (ICA), no dia 14 de março, no Japão.
Till Roenneberg

Roenneberg: "Parecem estar querendo eliminar as Humanidades".

A existência de “relógios biológicos” tem sido cada vez mais aceita pela comunidade científica. O estudo da temperatura central – ou do sangue arterial nas regiões centrais do organismo – é um dos exemplos de como a cronobiologia vem descobrindo como, quando e porque o cérebro e os hormônios são modulados por ciclos naturais. A interação dos organismos com o ambiente tem dado pistas para muitas descobertas científicas e isso demonstra que inúmeros fatos científicos não podem ser estudados isoladamente, mas num contexto amplo.

A interlocução entre os saberes, ou o que a academia chama de interdisciplinaridade, tem sido apontada como um método capaz de revolucionar o ensino e a pesquisa no futuro. O tema tomou um dia inteiro de discussões, durante a programação da Intercontinental Academia (ICA). A segunda fase da ICA reuniu, de 6 a 18 de março, cientistas de diversas áreas e 13 jovens pesquisadores selecionados para desenvolver estudos sobre o tema “tempo”. O conteúdo das pesquisas subsidiará a criação de um Massive Open Online Course (Mooc), que será disponibilizado gratuitamente na plataforma Cousera.

Os workshops In Search of Interdisciplinary Dialogue, promovidos pelo Waseda Institute of Advanced Studies (WIAS), da Waseda University, Japão, foram realizados no dia 14 de março, em Tóquio, com a participação de palestrantes de muitas áreas.

Se o tema geral era interdisciplinaridade, nada mais adequado do que abrir os debates com a exposição de um cientista múltiplo. Professor do Institute of Medical Psychology at Ludwig-Maximilians University (LMU) de Munique, Alemanha, o cronobiologista Till Roenneberg, que nas suas bases de formação tem a física, a medicina e a biologia, foi convidado para a palestra de abertura.

Na visão de Roenneberg, a ciência precisa mais do que interdisciplinaridade. Para ele, há um “desenvolvimento trágico” ocorrendo especialmente nas universidades e nos governos do mundo todo, ao orientarem suas pesquisas apenas sob o foco monetário e esquecerem a importância das Humanidades.

“Parecem estar querendo eliminar as Humanidades porque existe a ideia de que aparentemente esse campo não traz muito dinheiro nem muitos estudantes para as instituições. Esta é a pior direção que poderíamos tomar. Há uma crise na forma como lidamos com as Humanidades e devemos mudar isso”, disse.

Atomium de Bruxelas

Atomium de Bruxelas, estrutura composta por esferas interligadas.

Comparou a interdisciplinaridade praticada atualmente ao Atomium de Bruxelas, um cartão postal como o The London Eye (ou Millenium Wheell), de Londres. Composta por esferas interligadas, a estrutura em aço é uma espécie de roda gigante que proporciona uma vista privilegiada aos visitantes.

“São esferas incrivelmente orgulhosas de pertencer a uma rede. Mas o que elas fazem, apesar de conectadas, é permanecer no mesmo lugar. Na verdade, elas apenas se conectam para permanecer no círculo. Isso não é interdisciplinaridade. Mas a interdisciplinaridade de hoje se resume a isso”, disse.

Para Roenneberg, a rede UBIAS, que reúne 34 institutos de estudos avançados ligados a universidades, vem possibilitando a realização de uma ciência interdisciplinar. Na sua visão, a maior vantagem desses institutos em relação a outras instituições de pesquisa é que possuem um pé na comunidade internacional ao mesmo tempo em que mantêm o vínculo com a comunidade acadêmica e o ambiente universitário.

Para o biólogo, cada esforço acadêmico está relacionado aos seres humanos e tudo o que diz respeito a humanos está ligado a motivações biológicas e psicossociais básicas. “Em minha opinião, além da obtenção do alimento e da reprodução, os humanos também buscam reduzir a própria angústia e obter recompensa ou aprovação social por meio do comportamento. Isso é o que nos faz existir”.

Para reduzir a angustia e ganhar aprovação social, Roenneberg diz que as pessoas recorrem à religião ou à ciência. Porém, o conhecimento teórico, filosófico e experimental que nos leva ao conhecimento científico está repleto de arrogância e, com isto, não há entendimento entre os cientistas.

“Isto é vergonhoso, porque sabemos que precisamos dos outros para sermos críticos com nós mesmos e com nosso próprio pensamento. E é também para superar isso que precisamos da filosofia e das Humanidades”, disse.

Por outro lado, não há como substituir o cérebro. Os dados do mundo tornam-se acessíveis graças ao cérebro, que transforma dados em informação. Nesse processo, recorre à memória e às expectativas. Para exemplificar, o professor mostra um experimento de laboratório com patos em que os animais, para obter alimento e interação social, permanecem escorregando e subindo incessantemente numa espécie de escorregador.

“Aparentemente podemos pensar que os patinhos estão escorregando e correndo um atrás do outro por diversão. Mas a verdade é que estão num looping desesperador por alimento e interação social, pois são animais que não conseguem viver sozinhos. Eles são como as pessoas num jogo de caça-níqueis em busca de recursos que nunca poderão ser alcançados”, disse.

Portanto, tudo pode ser uma questão de narrativa, resume Roenneberg. Os conhecimentos disciplinares como física, cultura, biologia e outros, também têm a ver com narrativas, disse. “Aparentemente, as disciplinas nada têm a ver com pessoas. Mas na verdade elas têm profundo impacto sobre nós, pois tudo o que o conhecimento produz retorna para a humanidade”, disse o professor, mostrando cenas de bomba atômica, de campos de concentração e de ataques ao World Trade Center de Nova York.

Relacionado

Vídeo:

Keynote Lecture by Till Roenneberg, Ludwig-Maximilians University

Mais informações:

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Vida moderna, ciência e religião

Outro exemplo “sutil” e com impactos enormes sobre a humanidade foi o advento da luz artificial, disse. Citou os experimentos de Jürgen Walther Ludwig Aschoff (1913 – 1998), físico, biólogo e fisiologista comportamental alemão que construiu bunkers subterrâneos para investigar a relação dos hábitos cotidianos das pessoas e a incidência de luz solar. Ao lado de outros cientistas, foi um dos fundadores da cronobiologia ao inaugurar as pesquisas sobre ritmos circadianos. O relógio ou ciclo circadiano é o período de aproximadamente 24 horas, sobre o qual se baseia o ciclo biológico de quase todos os seres vivos. Portanto, é um ciclo influenciado pelas variações de luz, temperatura, marés e ventos entre o dia e a noite.

Nas primeiras semanas vivendo em bunkers, as pessoas mantinham contato com o mundo exterior. Depois, permaneciam dentro do abrigo, podendo usar a luz artificial conforme seus ritmos internos de acordar, dormir e comer, por exemplo. Após estudarem os ciclos de sono, temperatura do corpo, produção de urina e outras questões fisiológicas e comportamentais, os pesquisadores viram que o que regula os horários e a vida das pessoas é um relógio endógeno que oscila de acordo com a luz e a escuridão. Essa descoberta ajudou a compreender a origem de muitos problemas de saúde relacionados ao envelhecimento, desordens do sono e sintomas do chamado jet lag como enjoos, irritação, fadiga, insônia, prisão de ventre e outros desconfortos fisiológicos.

“O sono na era pré-industrial era regulado pela luz solar. Ficávamos despertos quando havia luz externa e dormíamos quando cessava o dia. Mas, agora, com a luz elétrica, estamos sempre num ambiente interior recebendo um mínimo de luz em relação ao que receberíamos num ambiente externo. E à noite, em casa, não ficamos sem luz porque escureceu. Recebemos luz insuficiente durante o dia e luz em excesso à noite”, disse.

“Criamos um curto circuito em nosso cérebro, ao custo de mais pessoas adoecendo. As pessoas vitimadas pelo que chamamos social jet leg fumam mais, bebem mais café, sofrem mais de depressão e de problemas metabólicos”, disse o cientista.

A consequência de viver fora da sincronia do relógio circadiano não traz apenas prejuízos individuais. Os custos diretos e indiretos resultantes de distúrbios do sono e problemas relacionados ao relógio biológico somam 1% do produto interno bruto (PIB) dos países, algo como US$ 185 trilhões na União Europeia, US$ 173 trilhões nos Estados Unidos, e US $ 103 trilhões na China, mostrou.

A ciência também não pode prescindir do método de hipóteses, disse. “Não podemos nos tornar pretensiosos. Uma biologista molecular uma vez disse que não precisava de hipóteses para investigar o gene e o que ele faz. Mas a natureza não é um conjunto de peças de lego. A informação científica é gerada por muitas etapas abstratas envolvendo diferentes métodos e maquinários. Uma pesquisa científica depende de um encadeamento de etapas que precisam de verificação e não é possível fazer isso sem hipóteses. A hipótese é necessária para certificarmos de que não estamos indo para a direção errada. E também para isso, precisamos das Humanidades”, enfatizou.

Outro alerta: a ciência precisa superar a mentalidade masculina que ainda impera no mundo acadêmico, disse. “Garotos gostam de brinquedos enormes e talvez isso explique nosso gosto por máquinas grandes e caras. Mas se continuarmos a investir em máquinas caras, processaremos cada vez mais dados que ainda não podemos analisar apropriadamente. Portanto, deveríamos investir em jovens cérebros capazes de descobrir estratégias matemáticas inteligentes que permitam analisar redes de genes e células cerebrais, por exemplo”, disse.

Alertou também sobre conceitos relacionados a religião, ciência e conhecimento, num meio cada vez mais devotado à ciência. “A ciência está se tornando uma nova religião. Veja o Salk Institute, dos Estados Unidos, um prédio lindo que parece um templo. Não podemos confundir as coisas. E inclusive para lidar com isso, precisamos das Humanidades e talvez até de religiosos para nos dizer o que é religião. Afinal, temos de respeitar as ideias e os avanços da ciência. Mas, ao mesmo tempo, devemos faltar com o respeito e tentar prová-las erradas”, concluiu.