A dimensão do espaço-tempo na cultura digital
Massimo Canevacci, professor visitante do IEA |
Segundo o antropólogo Massimo Canevacci, a cultura digital desafia a clássica distinção entre espaço e tempo ao promover o sincretismo entre essas duas dimensões e romper com o pensamento dualista hegemônico. O professor visitante do IEA falou sobre o tema na última conferência da Intercontinental Academia (ICA), realizada no dia 27 de abril.
A exposição se concentrou na noção de "ubiquitempo", neologismo criado por Canevacci para definir, do ponto de vista etnográfico, "as experiências descentradas e não-lineares de espaço-tempo" favorecidas pela comunicação digital contemporânea.
UbiquidadeDe acordo com ele, a concepção de ubiquitempo combina três conceitos centrais: simultaneidade, "uma estética feita de fragmentos entre metrópole e tecnologia", tal como defendia o movimento artístico futurista; cronotopo, elaborado pelo filósofo Mikhail Bahktin para demarcar a relação dialógica entre o horizonte espacial e o temporal, que "se tornou essencial no desenvolvimento da polifonia literária"; e ubiquidade, metáfora que expressa a possibilidade de estar em qualquer lugar ao mesmo tempo graças ao potencial de conexão em escala global das redes digitais.
A definição de caráter metafórico proposta por Canevacci estende o alcance da ubiquidade para o mundo material da vida cotidiana, expandindo "a presença de todos os seres humanos ou divinos a todos os lugares". Na avaliação do antropólogo, a ubiquidade é um conceito-chave na cultura digital, pois "caracteriza as relações humanas e não-humanas de espaço-tempo na Internet". Ele lembrou que a definição tradicional do termo tem matriz teológica e está ligada à ideia de uma divindade onipresente, invisível e inescapável, que observa tudo e todos: "Deus sabe tudo e julgará você", resumiu.
Para o antropólogo, os indivíduos ubíquos podem transitar entre diversas identidades, espaços e tempos, dando origem ao multivíduo. Trata-se, afirmou, da multiplicação de subjetividades para além das identidades fixas: "A ubiquidade desafia a identidade, que se torna mais flexível. O sujeito ubíquo da experiência etnográfica é multidividual".
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Casos empíricos
Canevacci tratou de quatro casos empíricos que exemplificam a experiência de ubiquitempo em diferentes culturas, começando pela divindade mitológica grega Kairós, que simboliza "um momento de um período indeterminado no qual algo especial acontece".
Diferentemente de Chronos, Deus do tempo cronológico, de natureza quantitativa, Kairós representa uma temporalidade não mensurável, que remete à ideia do Carpe Diem — viver intensamente o momento — e ao poder de tomada de decisão. Segundo o antropólogo, o conceito de Kairós "não cabe em definições fechadas porque está situado entre dois conceitos: a ação e o tempo, a competência e a habilidade."
Ele afirmou que a dimensão do ubiquitempo em Kairós está relacionada com o que define como "estupor metodológico" ou "vagar metodológico indisciplinado" — postura de abertura ao desconhecido, a partir da qual o "etnógrafo gira e se move, desloca-se e caminha com lentidão abandonada e atenta aos mínimos detalhes", sempre disposto a observar e agarrar objetos de estudo espontâneos e casuais.
O segundo caso mencionado por Canevacci foi a arquitetura pós-euclidiana de Zaha Hadid. De acordo com o antropólogo, Hadid constrói formas híbridas, que rompem com as regras clássicas da composição e da representação do espaço-tempo. "Ela transforma a geometria não-normativa em formas geométricas misteriosas, distorcidas e impuras", destacou.
O funeral dos Bororo, povo indígena estudado por Canevacci, foi o terceiro caso empírico abordado na conferência. O ritual é longo e complexo: envolve o enterro do corpo numa vala rasa, a espera pela decomposição dos tecidos e a limpeza do crânio, seguida da ornamentação típica para a cerimônia final.
Canevacci explicou que, neste último estágio, com duração de três dias, o tempo fica suspenso. "É um período em que não há período; só há a celebração do ritual para reafirmar a não distância entre a vida e a morte, entre o espaço e o tempo."
O último exemplo, também relacionado aos Bororo, foi a "subjetividade multividual" do nativo Kléber Meritororeu. Para Canevacci, Meritororeu personifica a ideia do multivíduo ao transitar entre diversas identidades: é, ao mesmo tempo, um indígena que vivencia sua cultura cotidianamente e professor da Escola Estadual Indígena "Sagrado Coração de Jesus", da Aldeia Meruri, no município de General Carneiro (MT).
"Ele tem duas identidades: é Bororo e professor", disse, ressaltando que Meritororeu enfrenta o desafio não só de conectar essas duas identidades, como também de se auto-representar com o auxílio das tecnologias digitais, sem abrir mão das tradições de seu povo, aliando cultura digital e cultura bororo.
"O uso da tecnologia por parte dos nativos facilita o desenvolvimento de uma rede descentralizada incomparável à existente na rede analógica", destacou o antropólogo. "A relação dicotômica entre tecnologias e culturas, ciências e artes, é obsoleta", completou.
Foto: Leonor Calazans/IEA-USP