A imprensa livre entre o poder, a transparência e o coração do público
Por Marcello Rollemberg, do Jornal da USP
Um dos pilares do Estado democrático de direito é uma imprensa livre, independente e combativa. Não é à toa que, sistematicamente, vê-se a imprensa ser demonizada por governos com tendências autoritárias irrefreáveis – mesmo quando chegam ao poder pela via democrática –, elegendo o jornalismo e jornalistas como os inimigos públicos número um, aqueles que trabalham para desorientar um país, seja ele de qual latitude for. Basta publicar algo que não interessa aos poderosos de plantão. “Toda imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”, ensinou Millôr Fernandes. Mas muita gente não pensa assim. E ataca o mensageiro.
Justamente para trazer à reflexão o papel da imprensa hoje no Brasil, e ajudar a mapear seus caminhos – desde um novo modelo de negócio até formas de cativar um leitor cada mais exigente e desconfiado -, a Superintendência de Comunicação Social (SCS) e o Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP organizaram o seminário Liberdade de Imprensa e Democracia, que aconteceu no dia 19 e contou com a participação de seis jornalistas convidados. “A criação da imprensa inaugura a polêmica, inaugura o conflito. E sempre houve tentativas de calar a imprensa, já que é constitutivo dos governos o desejo de censurar a imprensa, em menor ou maior grau, dependendo dos dispositivos constitucionais”, afirmou o diretor do IEA, Paulo Saldiva, na abertura do encontro. E ele tocou ainda em um outro ponto essencial nos tempos atuais, quando se confunde acesso à informação, muitas vezes de forma excessiva, com a aquisição de conhecimento. “Achava-se que, com o acesso total à informação, a ignorância iria acabar, mas ela veio com força total. Sem uma imprensa livre, vamos nos perder no mar da ignorância.”
“A ideia deste seminário surgiu em função da hostilidade à imprensa manifestada por autoridades federais e autoridades de outros escalões”, esclareceu o jornalista Luiz Roberto Serrano, superintendente de Comunicação Social. “Hostilidade que se amplia para outros setores, atingindo as manifestações culturais, especialmente no cinema e teatro. Até as universidades são alvos. Temos convivido com ataques pessoais a jornalistas, às suas vidas pessoais. Assistimos também a tentativas de cerceamento econômico a grandes veículos”, afirmou ele, antes de passar a palavra aos convidados.
Futuro da imprensa e da democracia
O encontro foi dividido em duas mesas, com três expositores se apresentando por vez, com a mediação de Serrano. No primeiro painel, intitulado Há democracia sem imprensa livre?, se apresentaram o jornalista, professor e colunista da Rádio USP Carlos Eduardo Lins da Silva, a jornalista Marina Amaral, uma das fundadoras da Agência Pública, e Pedro Varoni, diretor editorial do Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo e editor responsável pelo Observatório da Imprensa, criado justamente por Alberto Dines, que nos anos 1970 teve que deixar a direção do Jornal do Brasil por pressão do governo militar.
Lins da Silva começou sua fala com uma dúvida que fazia eco ao tema do encontro. “Hoje, não sabemos o que será da imprensa e da democracia diante do mundo que estamos vendo.” E foi adiante: “A situação americana serve como balizamento, já que entre 2008 e 2017 o número de jornalistas empregados nos Estados Unidos caiu pela metade. Isso mostra como os jornalistas estão perdendo espaço”, afirmou ele, mostrando ainda um outro dado americano: 20 anos atrás, o número de relações públicas era o dobro do número de jornalistas. Hoje, a proporção é de seis RPs para um jornalista.
Outro ponto que o professor e colunista da Rádio USP frisou foi com relação aos governos de viés autoritário que querem calar a imprensa e como isso pode ser combatido. “Quem está hoje no poder no Brasil quer destruir a independência da imprensa. Vemos isso acontecer também nos Estados Unidos, Venezuela e Hungria, por exemplo, seja de formas legais ou paralegais. Mas, para combater ações assim, precisamos cativar nosso público. Temos que mostrar ao público que há saída”, afirmou. “Sem imprensa independente, não há democracia saudável.”
Já Marina Amaral enveredou por um outro caminho, não menos importante: como fazer chegar a notícia ao maior número possível de leitores. “O compartilhamento da informação pode ser uma grande arma para mudar a situação atual, já que a ideia de exclusividade está cada vez menos forte”, garantiu ela. O que Marina quer dizer com isso é que, ao ter uma informação nas mãos, uma agência de notícias como a dela deve disponibilizar para o máximo de publicações que puder, já que isso seria uma garantia de que a informação chegaria ao grande público. A ideia do furo – a chamada informação exclusiva -, tão cultuada anos atrás, pode estar com seus dias contados. Porque o que interessa, de fato, é combater com a verdade os ataques que a imprensa vem sofrendo e ampliar o escopo de vozes que falam com a sociedade. “Quando o governo brasileiro persegue a imprensa, ele persegue e ataca a verdade. Precisamos olhar de outra maneira nossa forma de fazer jornalismo.”
Essa outra “forma de fazer jornalismo” foi, de algumas maneiras, objeto da fala de Pedro Varoni, do Observatório da Imprensa. Afinal, tanto o observatório quanto o Projor, também dirigido por Varoni, se notabilizaram por fazer uma análise sistemática e acurada do papel social e informativo da imprensa. “Liberdade de imprensa e democracia sempre fizeram parte do nosso foco. Fazemos uma curadoria de crítica à imprensa, em um contraponto ao que mais vemos hoje, que é crítica à mídia vinda das redes sociais. Por isso temos o projeto de um ‘Atlas da Notícia’, já que que identificamos que 70 milhões de brasileiros vivem em um ‘deserto de notícia’, ou seja, as notícias não chegam a essas pessoas”, contou ele, emendando com uma possível solução para esse deserto noticioso. “O jornalismo local pode proporcionar um vínculo maior com o processo democrático. Por isso é importante reforçar o jornalismo local para as comunidades pequenas.”
Credibilidade e transparência
Durante o debate e perguntas que se seguiram a essa mesa, um ponto foi comum nas falas: a questão da credibilidade. Carlos Eduardo Lins da Silva, por exemplo, chamou a atenção para o fato de que o furo jornalístico virou commoditie, e ao se ter pressa em publicar, pode-se errar, e isso mexe com a credibilidade que o leitor pode ter.
“O jornalismo nunca está do lado do poder. Se isso acontece, alguma coisa está errada”, afirmou Lima, iniciando sua fala para, a seguir, chegar ao ponto de tangência das falas anteriores: “As fontes de informação se multiplicaram e muitas vezes são usadas para atacar a imprensa. Faz parte do processo democrático. Porém, muitos governantes usam as redes sociais para minar a credibilidade do jornalismo”. Segundo ele, isso faria parte de uma estratégia articulada. “A ideia é dizer, ou insinuar, que quando a imprensa ataca membros do governo, ela teria uma agenda oculta político-partidária. Quando se publica algo que desagrada o governo, isso não seria informação, e sim oposição. E mina-se a credibilidade dessa forma.”
Para o editor-executivo do Estadão, há um antídoto para isso: transparência. “Temos que deixar claro para o leitor qual é a missão do jornalismo, sem partidarismos, sem sectarismo, e como nossas reportagens são feitas. Temos que ser mais honestos com nossos leitores. Assim, podemos manter nossa credibilidade.”
Nessa esteira de credibilidade e transparência, Vinicius Mota, da Folha, apresentou uma série de reportagens de seu jornal que sofreram ameaças de censura. “Estamos em uma sociedade de superpoderosos, como a Presidência da República, o Congresso, o STF. O jornalismo não tem esse poder, mas precisamos manter nossa independência, mesmo sofrendo com as ‘sutilezas do poder’”, argumentou ele. Essa “sutileza”, na verdade, seria um eufemismo para o nome que ela tem, de fato: censura. “É como se perguntássemos: quem fiscaliza o fiscal?”
A fala de Eugênio Bucci, da ECA, foi como um amálgama das falas anteriores. Ele traçou um fio condutor apresentando os desafios do jornalismo hoje. “Devemos vencer o preconceito, justificado, sobre financiamento público para o jornalismo. Por outro lado, devemos manter nossa independência, e seguir no caminho da transparência e do esclarecimento”, afirmou. “O jornalismo precisa levar mais em conta a função do esclarecimento, que tem a ver com educação, com a formação tanto de novos leitores como de novos cidadãos. Mas tudo isso ainda está por ser feito”, ponderou.
Para Bucci, diferentemente do que muitos podem pensar, o grande desafio para o jornalismo não é a tecnologia. “A tecnologia é um desafio desde sempre, mas não é esse o problema. Nossa grande crise é uma crise de pensamento, como se a imprensa tivesse desaprendido a pensar, se vendo como linha de montagem de publicação de notícias, não como manancial de pensadores”, acredita ele. “Dessa forma, o jornalista no Brasil acaba sendo uma espécie de ‘profeta do senso comum’, sem reflexão, e isso pode acabar desaguando no autoritarismo”, afirmou. “Se o discurso do governo não pertence ao campo democrático, não há ponto de equilíbrio, não há equidistância entre o jornalismo e a democracia e o que está fora do campo democrático. Só o pensamento livre pode nos levar a defender as causas democráticas que se opõem ao autoritarismo.”
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP