Não frear as mudanças climáticas prejudicará saúde dos nascidos agora, alerta o relatório Lancet Countdown
Pesquisadores brasileiros e estrangeiros que estudam as mudanças climáticas globais e suas consequências alertam: o momento para agir e começar a mudar os hábitos e padrões da humanidade é agora. Não há mais tempo a perder, uma vez que a próxima geração pode ser a primeira a sentir de maneira radical esses efeitos e, possivelmente, viver menos que seus pais.
O alerta foi dado no lançamento do Relatório Lancet Countdown 2019, dia 18 de novembro, no IEA. Os pesquisadores presentes participaram da elaboração do relatório, que detalha os efeitos já observados e estabelece uma série de ações necessárias para frear o agravamento deste quadro.
A ampliação da capacidade do Aedes aegypti — mosquito transmissor da dengue, febre amarela e chikungunya — de transmitir essas doenças é uma das consequências já presenciadas. No Brasil, o aumento é estimado em 11% desde a década de 1950, segundo os pesquisadores. “É uma questão multifatorial, que envolve o aumento da temperatura, a falta de saneamento e a urbanização”, disse a médica Mayara Floss, autora principal do relatório brasileiro e residente de medicina de família e comunidade no Grupo Hospitalar Conceição, no Rio Grande do Sul.
O relatório |
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O relatório Lancet Countdown: Tracking Progress on Health and Climate Change é uma colaboração internacional de pesquisa dedicada a acompanhar as consequências das mudanças climáticas para a saúde humana e as respostas do mundo a este quadro. O objetivo é reunir e divulgar anualmente os dados que possam embasar políticas públicas e capacitar profissionais da saúde. Este ano, Mayara Floss e Enrique Barros, médicos do Rio Grande do Sul, coordenaram uma análise dos dados do relatório com foco no cenário brasileiro e, a partir disso, elaboraram um guia de recomendações para formuladores de políticas públicas do país. Os coautores nacionais são Mathias Bressel (Centre for Biostatistics and Clinical Trials, Peter MacCallum Cancer Centre, Melbourne, Australia); Sandra Hacon (Fiocruz); Carlos Nobre (IEA-USP); Daniel Knupp (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade); Daniel Soranz (Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade - SBMFC); Paulo Saldiva (Faculdade de Medicina e IEA-USP); Laura dos Santos Boeira (Instituto Veredas); e Karina Pavão Patrício (Faculdade de Medicina da Unesp). O documento também teve a coassinatura da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Para Enrique Barros, o relatório deixa claro como os efeitos das ações humanas no clima já podem ser presenciados. “As nossas escolhas já estão causando doenças hoje”, disse durante o lançamento do relatório no IEA. “Agora, cientistas de múltiplas áreas têm a responsabilidade de traduzir esses achados para o público, mostrando que ainda temos a grande oportunidade de melhorar nossa qualidade de vida, algo que terá um impacto gigantesco para nossos filhos, netos e bisnetos”. |
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Problemas causados pela poluição do ar também já deixaram de ser apenas uma projeção: ocorrências de baixo peso em recém-nascidos, diminuição da função respiratória em crianças e aumento do número de hospitalizações por doenças respiratórias nas comunidades da Amazônia brasileira estão associadas aos níveis de poluição atmosférica no país.
O aumento da temperatura do planeta e a mudança em padrões dos regimes de chuva podem causar desastres climáticos, e estes, por sua vez, aumentam as ocorrências de doenças infecciosas, das quais crianças são particularmente sensíveis. Segundo o relatório, o número de dias climáticos propícios a bactérias Vibrio (que causam grande parte das doenças diarreicas em todo o mundo) dobrou nos últimos 30 anos.
“É um absurdo pensar que crianças ainda morrem por diarreia em 2019”, disse Sonja Ayeb-Karlsson, professora de saúde global na University of Sussex, na Inglaterra. Ao pesquisar, em diferentes regiões do planeta, o bem-estar de populações em situações de risco por conta das alterações climáticas, ela conheceu mães que perderam seus filhos dessa maneira. “São famílias suscetíveis a desastres, migrações e eventos extremos, como inundações ou secas”.
Para reverter estes efeitos, o relatório Lancet Countdown tem recomendações claras. Globalmente, os países precisam seguir as diretrizes do Acordo de Paris, assinado por 195 nações, para limitar o aquecimento a menos de 2ºC. Se mantido o padrão atual da economia mundial, o aquecimento pode dobrar. Assim, pessoas nascidas hoje chegariam aos 70 anos com um planeta 4ºC mais quente.
A versão brasileira do relatório considera as particularidades do país e estipula recomendações específicas para a elaboração de políticas públicas. “No caso de um país em desenvolvimento, é preciso lembrar que os que têm menos dinheiro sofrerão as consequências antes”, disse Mayara Floss. “Hoje, temos uma janela de oportunidade e não há tempo a perder”.
Entre as medidas sugeridas, estão as que buscam mitigar o aumento da capacidade de transmitir doenças do Aedes aegypti. “É preciso fortalecer o trabalho dos agentes de saúde para melhorar a vigilância e o tratamento dessas doenças”, explicou Floss. “Mas para combater o mosquito, é fundamental que o país garanta o acesso a saneamento básico, água potável, manejo de resíduos e educação”.
No recorte brasileiro, o relatório lembra que o país é o 7º maior emissor de carbono do mundo. Por isso, ações para conter a poluição atmosférica também são necessárias. As queimadas na Amazônia, que chamaram a atenção em agosto após a fumaça chegar a estados do Sudeste, são uma das principais causas da poluição do ar no Brasil. “É essencial zerar o desmatamento até 2030, e reflorestar o que já foi desmatado”, disse a pesquisadora.
Outro agravante neste sentido é a produção de energia por carvão, material altamente poluente. “Apesar de o Brasil ter ter uma matriz de energia diversificada, tem crescido a porcentagem do carvão, com a abertura de novas usinas, algo que vai contra todas as recomendações mundiais”, disse Floss. “O objetivo deve ser eliminar esse tipo de geração de energia”.
Tantas mudanças de hábitos, porém, costumam esbarrar em padrões de comportamento definidos, muitas vezes, há várias décadas. “Uma mudança cultural é muito difícil, uma vez que ela demanda uma mudança de valores”, disse Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina, diretor do IEA e um dos coautores do relatório. “Não há como julgar quem usufrui dos benefícios da sociedade atual, porque as pessoas foram criadas para isso. Os paradigmas se quebram lentamente, nas trocas de gerações, e hoje é possível ver indícios dessa mudança: muitos jovens já preferem, por exemplo, não ter carro”.
É importante, para Saldiva, que a sua geração não passe seus “vícios” para os mais jovens. “Existe um ranço de quem achava que ia mudar o mundo e não mudou. Na visão dessas pessoas, o mundo não tem salvação. Essa desesperança não pode ser passada para os mais jovens”.
Para Floss, a discussão sobre a necessária mudança de hábitos não deve ser uma mensagem sobre um futuro limitado, e sim sobre uma janela de oportunidade. “É um trabalho em equipe, que envolve muitos profissionais, para mostrar que a humanidade funciona, sim”.
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP