Faltam pesquisas na área de contaminação dos solos e mineração
Lixões são ilegais, mas ainda persistem em 75% dos municípios brasileiros, mostrou especialista da Poli-USP |
Por lei, todos os lixões do país deveriam ter sido fechados até 2014. Segundo a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305), de 2010, o lixo urbano deveria passar por reaproveitamento e reciclarem, antes da disposição final em aterros sanitários. A omissão por parte dos agentes públicos deveria resultar em sanções administrativas e até penais. Mas nenhuma penalidade foi aplicada até o momento e 75% dos municípios brasileiros ainda jogam seu lixo a céu aberto. Além disso, persistem as lacunas de pesquisa em tecnologia e gestão nessa área, mostrou a professora Maria Eugênia Gimenez Boscov, da Escola Politécnica (EP) da USP, durante a conferência Água, Solo, Poluição e a Política Nacional de Resíduos Sólidos, realizada no dia 14 de outubro no IEA.
Engenheira civil especialista em poluição do solo e de águas subterrâneas, Boscov abordou ainda os desafios relacionados aos resíduos da mineração e do gerenciamento de áreas contaminadas. Os gargalos de pesquisa nesses setores também são grandes, mostrou. O debate teve a coordenação do professor Mario Sergio Salerno, da EP-USP e coordenador do Observatório da Inovação e Competitividade do IEA.
“O Brasil produz 215 mil toneladas de resíduos sólidos urbanos por dia e só 58% desse volume está disposto adequadamente. Os três maiores municípios brasileiros geram um terço da massa de resíduos urbanos e juntos poderiam totalizar 42% do volume que iria para aterro, caso todo o seu lixo fosse destinado corretamente. Porém, sobram 75% de pequenos municípios que ainda possuem destinação inadequada do lixo. Desde 2010, esses números praticamente não mudaram”, compara Boscov.
Entender os fluxos dos resíduos poderia melhorar a gestão compartilhada do lixo, diz Boscov. |
A construção de aterros envolve uma série de etapas e uma logística cara para pequenos municípios. Daí a importância dos governos locais se unirem. “Precisamos fomentar aterros consorciados. Mas também precisamos de uma prática nacional de trabalho integrado entre municípios e, infelizmente, ainda não temos essa expertise. O suporte dos governos é fundamental para a renegociação de contratos”, afirma.
A responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, prevista em lei, é questão resolvida em alguns países, mas difícil de equacionar, criticou. “Alguns países simplificaram isso, escolhendo responsabilizar o gerador do resíduo, ou o produtor, mesmo que seja repassado nos produtos os gastos com logística reversa. A responsabilidade compartilhada é um conceito muito diluído e todos estamos ligados a isso. Porém, quando ocorre algum problema, alguém acaba sendo responsável de qualquer maneira”, disse.
Entender os fluxos dos resíduos pode ajudar na questão da responsabilidade compartilhada, mas ainda há pouca pesquisa sobre isso, avalia. “O resíduo do processo industrial é da indústria. Mas depois que o produto vai para as casas, quem se responsabiliza pelos resíduos ligados àquele produto? Para grandes empresas, é possível criar acordos setoriais, por exemplo, em bancos, milhares de equipamentos eletrônicos não têm uma destinação definida”, afirma.
O fato de a lei reconhecer o resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social é louvável, mas ainda pouco praticado, afirma Boscov. “Os resíduos da construção, britados e peneirados, podem ser utilizados em concretos e pavimentos e até em drenos de aterros. O lodo do saneamento, se desidratado, pode ter diversas destinações. O bagaço da cana-de-açúcar ainda tem 10% de desperdício e poderia ser usado em muitos compósitos de fibra”, exemplifica.
A disseminação do reuso, porém, passa não só por aspectos logísticos e de inovação, como também sociais. “Muitas pessoas ainda têm preconceito de comprar ou usar coisas recicladas por questão de segurança. É preciso um trabalho social para que esses produtos sejam valorizados e utilizados quando há comprovação de que não representam risco à saúde humana e ao ambiente”, disse.
Toda a engenharia de construção de aterros, bem como o tratamento dos resíduos, ainda precisa de muita pesquisa, afirma Boscov. “Todo ano tem ruptura de aterro sanitário, apesar da técnica já estar bastante evoluída. Há muita necessidade de inovação nessa área. Quanto ao tratamento dos resíduos, ainda é muito tratar chorume, por exemplo. Podem ser tratados como numa estação de tratamento de esgoto industrial ou doméstica, mas há outras técnicas, com evaporação, polimento, fitorremediação ou osmose reversa. É outra área que vale a pena investir em pesquisa”, afirma a especialista.
Boscov lembra ainda que outra meta estabelecida na Política Nacional de Resíduos Sólidos era que estados e municípios deveriam ter seus planos de gestão integrada de resíduos sólidos como “condição imprescindível para receber recursos federais, mas até o momento apenas 50% desses entes fizeram planos de gestão integrada”.
Contaminação industrial
A pesquisadora deu exemplos de casos famosos de contaminação do solo por atividades industriais, como o de Love Canal, nos Estados Unidos, ou o do orfanato Cidade dos Meninos, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Ambos remetem à negligência tanto do poder público quanto das empresas no que diz respeito ao tratamento e destinação de resíduos contaminantes, bem como na readequação de terrenos utilizados como plantas industriais.
“A partir da Segunda Guerra Mundial, cresceu muito o número de disposição inadequada de resíduos contaminantes. Tanto que a Agência Ambiental dos Estados Unidos acabou incorporando a tarefa de monitorar contaminações do solo. Aqui, a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) tem essa tarefa e produz uma lista de áreas contaminadas no estado”, disse.
Segundo Boscov, há muitas técnicas para recuperar áreas contaminadas e diversos casos bem sucedidos de reinserção desses terrenos para novos usos no tecido urbano. A descontaminação pode ser feita pela remoção do solo e deslocamento do mesmo para área adequada, onde receberá tratamento químico, físico, biológico ou térmico, dependendo do resíduo. A descontaminação pode ainda ocorrer sem a remoção do solo, com o confinamento geotécnico (isolamento e confinamento) para conter os resíduos; bombeamento de água subterrânea quando for o caso de contaminação da água; além do tratamento in situ.
“O tratamento in situ é uma grande área de pesquisa e inovação e sempre há uma nova técnica sendo estudada. As técnicas variam desde extração por solvente, neutralização, incineração, ou ainda, oxidação, redução, vitrificação e muitas outras”, disse.
O gerenciamento das áreas contaminadas segue um modelo mais ou menos consolidado no mundo, mas ainda é uma área com muitos desafios, especialmente quanto à visão integrada, disse. “Por exemplo, toda avaliação de risco é feita sobre uma projeção futura do uso da área, mas há pouco consenso sobre impactos que já afetaram pessoas em áreas contaminadas”, disse.
Os passos do gerenciamento seguem uma sequência muito inflexível e muitas vezes isso produz gastos excessivos na remediação de danos, acredita. “Há soluções ou etapas anteriores que poderiam ser adotadas e os custos seriam reduzidos. Estudos e investimentos em saneamento poderiam ser muito mais efetivos do que a remediação, por exemplo. Precisamos de mais inovação para encarar o problema”, disse.
Resíduos da mineração
A atividade mineradora é outra fonte importante de contaminação dos solos e águas. O acidente de Mariana (MG), que em novembro completa um ano, foi lembrado pela professora da Poli ao comentar o tipo de barragem mais comum no mundo e também naquele estado, a barragem de alteamento a montante. É um tipo de barragem muito criticada, pois possui custos competitivos, porém, altos riscos, ressaltou Boscov.
“Por definição, essas barragens são obras de alto risco. A cada 30 anos, a produção mineradora aumenta 10 vezes e o tamanho da barragem dobra nesse período. São obras que alcançam alturas colossais. Com isso, o risco é crescente. Há métodos mais seguros de altear, por exemplo, o alteamento a jusante”, afirma.
Vale notar que recentemente o Ministério Público Federal (MPF) emitiu recomendação ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para que não aprove mais a barragem de alteamento a montante, alegando que a técnica é insegura. Recomendou também que os planos de mineração tenham destinação ecológica dos rejeitos. A destinação ambientalmente adequada deverá ser feita de forma gradual, num percentual progressivo que deverá atingir 70% em 2025, segundo o MPF. Além disso, a maioria dos acidentes com barragens de rejeito no mundo estão associados a esse método. Por exemplo, os ocorridos em Fernandinho (1986); Rio Verde (2001); Herculano (2014); e Fundão (2015), todas em Minas Gerais. No Chile, o alteamento a montante já foi proibido.
O acidente de Mariana foi considerado o maior desastre mundial do gênero. A barragem do Fundão, da mineradora Samarco – joint venture entre a Vale e a BHP Billiton –, liberou 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, destruindo o subdistrito mineiro de Bento Rodrigues. Considerado o volume e a distância percorrida pelos rejeitos, formados principalmente de óxido de ferro, água e lama, o acidente de Mariana equivale aproximadamente à soma dos outros dois maiores eventos já registrados em 100 anos, ambos nas Filipinas – um em 1982, com 28 milhões de metros cúbicos derramados, e o outro em 1992, com 32,2 milhões de metros cúbicos. Os cálculos são da Bowker Associates, consultoria norte-americana de gestão de riscos da construção pesada, realizados em parceria com o geofísico David Chambers, do Center For Science In Public Participation (CSP2), dos Estados Unidos. Chambers mantém desde 2009 uma base de dados sobre os problemas com barragens de rejeitos em todo o mundo e nota que a quantidade de eventos diminuiu com o avanço da tecnologia. Porém, tornaram-se muito mais graves. Ele projeta que deverá ocorrer um acidente grave desse tipo em média por ano, caso não melhore a regulamentação ambiental dessa atividade, conforme divulgou o site Brasil de Fato.
O caso de Mariana acabou ofuscando outros derramamentos importantes, como das barragens do rio Fubá, entre os estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais, que atingiu grande parte das cidades de Miraí e Muriaé, em 2007, lembrou Boscov.
“Tivemos sorte que ainda não houve no Brasil algo semelhante ao ocorrido na Hungria, em 2010, onde uma onda de lama tóxica se espalhou por 40 quilômetros. Aquele tipo de rejeito, resultante da produção de alumínio, leva soda cáustica e é muito comum no Brasil”, observa.
Imagens: Marcello Casal Jr. - Agência Brasil/ Leonor Calasans