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Canclini coordena livro sobre transformações nas instituições e políticas culturais no Brasil e no México

por Mauro Bellesa - publicado 07/06/2023 15:40 - última modificação 30/06/2023 20:40

IEA e Edusp lança livro “Emergências Culturais – Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México”, resultado da pesquisa coordenada pelo antropólogo cultural argentino Néstor García Canclini como titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência no biênio 2021/22.

Capa do livro 'Emergências Culturais"As relações entre instituições culturais, artistas, trabalhadores do setor e públicos na América Latina têm se transformado nas últimas décadas, num contexto em que redes digitais alteram a comunicação entre criadores e receptores e no qual proliferam instituições comunitárias. No entanto, esse quadro foi gravemente afetado pela pandemia de Covid-19, que deixou centenas de milhares de profissionais sem trabalho e interditou cinemas, teatros e centros comunitários.

Uma análise dessas transformações, seus impactos e seus percalços é o objetivo central do livro “Emergências Culturais – Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México” (258 páginas, R$ 56,00, à venda aqui), uma coedição IEA e Edusp, lançado este mês. É o quinto volume da coleção da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência dedicada aos projetos coordenados pelos titulares da cátedra desde sua criação, em 2015.

O livro contém cinco ensaios resultantes do projeto “A Institucionalidade da Cultura e as Mudanças Socioculturais”, coordenado pelo antropólogo cultural argentino Néstor García Canclini, professor titular da Universidade Autônoma Metropolitana (UAM), do México, e titular da cátedra no biênio 2021-22. Além de Canclini como autor e coordenador, participam do livro outros três pesquisadores. Os ensaios são:

  • “Instituições, Comunidades e Criadores: Da Precariedade à Emergência”, introdução de autoria de Canclini;
  • “Pela Onda Luminosa: A Articulação em Rede a Favor da Lei Aldir Blanc no Contexto das Políticas Culturais Brasileiras”, da pós-doutoranda Sharine Melo, gestora cultural na Funarte e doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP;
  • “Fora de Jogo? Territórios Latino-Americanos e Instituições Culturais no Brasil”, do pós-doutorando Juan Brizuela, doutor em cultura e sociedade pela UFBA;
  • “México: Instituições, Monumentos e Movimentos”, de Canclini e de sua assistente de pesquisa Mariana Martínez, antropóloga social graduada pela Universidade Autônoma do México (Unam);
  • “Brasil e México: Olhares Recíprocos”, epílogo com diálogo dos quatro pesquisadores sobre procedimentos e dificuldades para a realização das pesquisas e sobre concepções iniciais e constatações sobre aspectos surpreendentes.

Capa do site Diálogos de Canclini no Brasil

Cátedra inaugura site
sobre Néstor García Canclini

Este mês foi lançado também o site Diálogo de Canclini no Brasil, dedicado ao sociólogo e aos eventos e publicações relacionadas ao projeto coordenado por ele na Cátedra Olavo Setubal.

O site apresenta também os projetos desenvolvidos pelos pós-doutorandos Sharine Melo e Juan Brizuela, colaboradores de Canclini na cátedra, e depoimentos de vários intelectuais brasileiros sobre a importância da obra do sociólogo para a reflexão sobre o panorama da cultura (instituições, políticas) no Brasil e na América Latina em geral.

Canclini afirma que pesquisa documental e etnográfica realizada, tendo o Brasil e o México como marcos de referência latino-americana, “forneceu surpresas ao comparar o ocorrido em países cujas histórias institucionais e tipos de governo insinuavam resultados diferentes dos encontrados”.

A pandemia acabou interferindo até no método utilizado na pesquisa. A maior parte das entrevistas foi feita por aplicativos de videoconferência e durante um ano os autores trabalharam de forma virtual.

Para Canclini, as três crises da área – envolvendo instituições, criadores e comunidades culturais – estão relacionadas, mas é preciso distinguir se seus problemas são diferentes e, portanto, exigem modos diferentes de enfrentamento.

Segundo ele, “nunca experimentamos um colapso mundial das atividades econômicas, so­ciais e culturais como o que foi causado pela pan­demia de 2020 a 2022”. Entre as alterações drásticas nas indústrias culturais e nos comportamentos dos públicos, Canclini relaciona o predomínio do audiovisual sobre o escrito, o fechamento de jornais, editoras e livrarias e a concentração de conteúdo em computadores e celulares.

Para ele, o livro é uma experiência nova: “Aumenta o intercâmbio e a pesquisa conjunta, comparada, sobre o que ocorreu nos últimos anos nas instituições culturais no Brasil e no México”.

Segundo Canclini, “o debate sobre os usos e interpretações do patrimônio histórico, material e cultural e sobre os agentes que o representam tor­nou-se central em grande parte da América Latina”. Diante disso, ele vê a necessidade de respostas a perguntas que “entraram com uma força sem precedentes na disputa pela institucionalidade e pelas transformações socioculturais”, entre elas:  quando e como ocorreram a colonização e as independências, e que contribuições dos povos originários, dos escravos, das mulheres e dos colonizadores devem ser resgatadas?

Lei Aldir Blanc

De acordo com Sharine Melo, autora do texto  - “Pela Onda Luminosa” - que condensa os resultados de sua pesquisa na cátedra, a força do processo que levou à formulação e aprovação da Lei Aldir Blanc (14.017/2020), que dispôs sobre ações emergenciais para o setor cultural durante a calamidade pública causado pela Covid-19, parece ter nascido de uma fissura: “De um lado, a ideia de arte e cultura como transformação social, tão presente nos discursos oficiais, nos re­latórios da Unesco e nos sucessivos planos de governo; de outro, a precarização neoliberal do setor e as desigualdades de acesso, agravadas pelas frequentes quedas nos investimentos públicos e privados”.

Relacionado

Eventos

Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México

1º encontro (restrito a convidados)
23/11/2021

2º encontro
25/11/2021

3º encontro (público)
18 e19/1/2022

Publicações



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Cátedra Olavo Setubal

A lei destinou R$ 3 bilhões a ações em três eixos principais, destaca a pesquisadora: renda mensal aos trabalhadores da cultura; subsídio mensal para manutenção de espaços artísticos e cultu­rais, micro e pequenas empresas, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitá­rias; e editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural, entre outras ações relacionadas.

Metade dos recursos foram destinados aos estados e ao Distrito Federal, a outra metada foi repassada aos municípios, “o que reforçou a eficácia de modelos de execução descentralizados”, segundo Sharine. Outro mérito da lei foi a abrangência da noção de espaço cultural, englobando de teatros e galerias a aldeias in­dígenas e comunidades quilombolas, diz. “Por outro lado, foram registradas falhas na regulamenta­ção federal, falta de estrutura local, baixa qua­lificação de gestores e curtos prazos para o pla­nejamento das ações.”

Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo
Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo

O resultado disso foi a adesão de todos os estados e do Distrito Federal e de apenas 75% dos municípios à lei, afirmou. Os problemas também foram familiares, como as desigualdades entre as metrópoles e os interiores do Brasil, de acordo com Sharine. “As ci­dades com mais de 100 mil habitantes foram as que tiveram mais planos aprovados para a transferência dos recursos federais, o que reforça as contradições de um país continental”.

Por outro lado, “a marca histórica de execução de 95% dos re­cursos da Aldir Blanc impressiona quando com­parada à média de 19% de execução do Fundo Nacional de Cultura nas últimas décadas”. Mas houve visíveis diferenças entre as unidades federa­tivas, devidas a dificuldades estruturais e por desinteresses políticos, afirma.

Em consonância com o caráter coletivo da elaboração da lei, a pesquisa de Sharine foi estruturada a partir de 18 entrevistas (individuais ou em pequenos grupos) com 23 pessoas. Foram mais de 18 horas de conversas tendo como ponto de partida a medida emergencial e adentrando em reflexões sobre diversos aspectos no campo da cultura e da arte, diz a pesquisadora.

México

Em “México: Instituições, Monumentos e Movimentos”, Canclini e Mariana comentam que a estabilidade institucional mexicana a partir da revolução de 1910 teve entre seus fatores a legitimidade, o sentido social e as adesões conferidas pela cultura e pelas políticas culturais.

No entanto, “A partir dos anos 1980, diversos movimentos sociais e demandas de partidos de oposição abalaram as continuidades entre institui­ções de Estado, sociedade e comunidades”. Para eles, uma das principais mudanças que aproximaram o México de outros países latino-americanos aconteceu em 1982, quando o governo abandonou o protecionismo sobre a produção nacional em diversas áreas. "A lógica globalizada neoliberal reconfigurou as políticas culturais e o sistema institucional.”

A oferta midiáti­ca se ampliou com conteúdos transnacionais. “O Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta), formalizado em 1994, facilitou os investimentos externos em negócios desregulados, so­bretudo nas telecomunicações e na produção audiovisual de cir­culação maciça”, afirmam os pesquisadores.

No campo editorial do país, o declínio da indústria deu-se em função da “de­terioração interna da economia, da concorrência com as editoras espanholas em ascensão, da retração do mercado leitor regional e do fechamento de centenas de livrarias nos países latino-americanas”.

“A cultura nacional deixou de funcionar como marco predominante da informação e do entretenimento cotidianos. Ao conectar saté­lites, computadores e outros dispositivos midiáticos em redes de circulação global, a esfera pública mudou de escala. A noção de identidade continuou ecoando nos discursos de políticos e gestores culturais, mas perdeu a capacidade de organizar os debates sobre o desenvolvimento”, escrevem Canclini e Sharine.

Para eles, uma mudança fundamental que alterou a interação global na informação, no entretenimento e na comunica­ção é a “digitalização das práticas produtivas, entre elas as cultu­rais”.

Instituições no Brasil

Em seu texto – “Fora de Jogo? Territórios Latinos-Americanos e Instituições Culturais no Brasil -, Juan Brizuela afirma que os processos regionais de (re)democratização cultural e de construção de uma cidadania plena sofreram episó­dios contraditórios de desmobilização, “descidadanização” e “des­democratização” da cultura pública, “nas tristes tradições da política cultural no Brasil: ausências, autoritarismos e instabilidades”.

Considerados os últimos 50 ou 100 anos, “observamos que democracia e institucionalidade cultural não são fenômenos que necessariamente se retroalimentam, especial­mente na esfera estatal”. Essa é a razão de os movimentos artísticos dos anos 80 terem lutado “inicialmente pela desinstitucionalização da cultura pública sedimentada por governos autoritários”. Para Brizuela, “os processos de institucionalização de uma cultura pública, democrática e cidadã são a exceção e não a regra nos nossos países [latino-americanos], ao longo do século 20”.

Mas há os movimentos de resistência, que pro­curam renovar as instituições e/ou promover outra institucionali­zação da cultura, mais ampla, participativa, democrática e públi­ca no seu sentido mais profundo, diz o pesquisador. Como exemplo, cita os Pontos de Cultura [criados a partir dos anos 2000, na gestão de Gilberto Gil como Ministro da Cultura no primeiro governo Lula]  e as articulações do Movimento Cultura Viva Comunitária [fórum latino-americano surgido de várias iniciativas ocorridas entre 2009 e 2012].

A questão a ser pesquisada proposta por Brizuela reside na simultaneidade de dois processos (“não necessariamente opostos”): a debilitação das políticas culturais e, em contraste, movimentos culturais geradores de certa institucionalidade alternativa, de base social. Diante disso, ele pergunta: “Que tipo de institucionali­dade é possível criar a partir dos movimentos socioculturais? E que tipo de alcance, êxito e estabilidade pode ter essa institucionalidade ‘experimental’ de base comunitária, sem o Estado?”.

Néstor García Canclini
Néstor García Canclini

Para essas organizações de base co­munitária as ameaças não se limitam à redução do orçamento governamental para o setor, ao deslocamento do público para aplicativos ou ser­vidores digitais ou às mudanças impostas pelo neoliberalismo e, mais recentemente, pela pandemia de Covid-19, comenta Brizuela.

“Uma disputa importante desses grupos culturais comunitários é territorial, perante o aumento cada vez maior e mais expressivo de instituições neopentecostais, que, ao menos no Brasil – e sobretudo nos ter­ritórios mais afastados das metrópoles –, são as que mais intensamen­te estão modificando hábitos de consumo, práticas culturais, artísticas e modos de vida que afetam profundamente a própria sobrevivência de grande parte dos segmentos culturais, muitas vezes minoritários e agrupados no movimento Cultura Viva Comunitária.”

Em sua pesquisa, ele analisou as experiências socioculturais de Pontos de Cultura e estudos ligados ao movimento da Cultura Viva Comunitária produzidos no Brasil, México e Argentina – entre ou­tros países –, destacando as disputas territoriais nos processos de institucionalização, desinstitucionalização e reinstitucionalização das políticas públicas de cultura. Para isso, considerou a multiplicidade de atores estatais em suas diversas esferas de atuação, partidos políticos e sindicatos, instituições eclesiásticas e neopentecostais, além de setores empresariais com interesses difusos.

Processo

No último texto do livro, o epílogo "Brasil e México: Olhares Recíprocos”, Canclini explica que o objetivo principal da obra não foi produzir conclusões que sintetizem os estudos realizados no Brasil e no México, mas sim pensar sobre o que aconteceu durante o processo de pesquisa nessas condições peculiares e o que isso poderia significar para o desenvolvimento das instituições culturais estudadas, para a USP e para a UAM.

Na opinião de Sharine, a mudança no que ela pensava sobre o assunto deveu-se ao que aprendeu sobre a relação entre os movimentos sociais, a sociedade civil e o Estado. Outra mudança, disse, foi o fato de que antes pensava muito nas linguagens artísticas (teatro, cinema, artes visuais, música, circo) e com a pesquisa passou a ter uma visão muito mais ampla da cultura em geral, englobando a cultura indígena, a cultura quilombola, a cultura popular, principalmente aquela do interior do Brasil e das periferias das cidades.

Brizuela, por sua vez, diz que a alteração ocorrida no desenvolvimento de sua pesquisa foi a mudança da pergunta inicial. Antes, pensava que as ações se davam em paralelo: de um lado, as instituições culturais modernas, no sentido mais tradicional; de outro, grupos artísticos e culturais comunitários que procuravam disputar espaço com aquelas instituições tradicionais.

“Vi, que não é bem assim (...). Não se trata necessariamente de integrar circuitos já institucionalizados e sim de construir outra série de circuitos, isto é, de ampliar o significado do artístico e do cultural em uma linha diferente daquilo que as instituições culturais modernas puderam alcançar.”

Canclini afirma que vinha trabalhando há anos na comparação entre políticas culturais e consumos culturais e, “de repente, esse olhar que foi aberto pela pesquisa nos abrigou a nos situarmos diante de diversas instituições e, claro, a repensar essas instituições clássicas (...) Também nos obrigou a repensar a institucionalidade mais tradicional das comunidades locais e das redes nacionais, que no México não são muito robustas”.

A pesquisa também obrigou Canclini a observar as corporações digitais, redes que não são reconhecidas "de forma tão clara como os museus ou as redes sociais, mas que têm muito peso e surgem nas entrevistas como protagonistas da cultura”.

Outro aspecto está relacionado ao trabalho que Canclini tinha iniciado antes de assumir a cátedra: as consequências da pandemia e a mobilização da cultura, forçada pelo fechamento das instituições. Havia os dados iniciais sobre perdas de emprego e depois levantamentos regionais de instituição internacionais nos principais países produtores de cultura na América Latina. Na pesquisa, “esses números adquiriam outra densidade, outra espessura, quando personalizados nos trabalhadores culturais que entrevistamos”.

Uma terceira questão tem a ver com a pesquisa que vinha realizando na última década sobre a precariedade dos trabalhadores culturais. Isso se acentuou na pandemia: “Já não se tratava apenas de trabalhadores culturais que não esperavam poder se aposentar, mas que tinham ficado sem trabalho durante oito ou dez meses, mais de um ano, e não contavam com recursos do Estado, no caso do México”.

Os quatro pesquisadores relataram as peculiaridades do trabalho online para a pesquisa, sobretudo quanto às entrevistas. Sharine disse ter tido dúvidas no início sobre a eficácia do processo, receio que foi dirimido quando passou a perguntar aos entrevistados sobre o contexto do local e da sociedade onde atuavam.

Sharine Melo
Sharine Melo

Para Juan, a entrevista presencial oferece muito mais elementos quando o pesquisador conhece minimamente o contexto em que ela se desenvolve. “Acho que um dos desafios desse processo em particular – as entrevistas a distância – é tentar entender não apenas o que cada pessoa diz ou faz, mas compreender um pouco melhor em que contexto se desenvolve o processo em foco.”

Mariana disse que seu maior interesse é a relação entre o espaço e a sociedade, a significação e a ressignificação. “Foi um tanto difícil redirecionar a pesquisa, porque meu objetivo era observar como as pessoas interagem no espaço, e agora esse espaço era um lugar de risco.” Para ela, perdem-se algumas coisas nas pesquisas online, mas ganham-se outras, como permitir que se observem aspectos das mobilizações sociais e da criação de redes.

Canclini disse que o trabalho tornou mais evidente a carência de pesquisas sistemáticas e contínuas nas informações reunidas por órgãos do Estado sobre o desenvolvimento cultural, como se dá a gestão de verbas, a quem são destinadas e sua utilização.

Outra questão tratada no “Epílogo” foram as coincidências e diferenças mais importantes que apareceram para cada um dos quatro ao tratar das realidades brasileira e mexicana. Para Sharine, o México trabalha melhor com as culturas populares, diferentes línguas e etnias, enquanto o Brasil “vê a todos com uma certa unidade étnica irreal”. Por outro lado, considera que o Brasil possui uma estrutura sistêmica para as políticas culturais, “ainda que não funcione muito bem”.

As políticas culturais mexicanas a partir da revolução de 1910 e, especialmente, a partir dos anos 30, 40, difere de outros processos da América Latina por sua continuidade ao longo do tempo, explica Brizuela. O que o surpreendeu é a existência de vários grupos artísticos e comunitários que não querem estabelecer um vínculo com o Estado.

Mariana disse que quando soube o que eram os Pontos de Cultura brasileiros fez uma associação com o Programa de Cultura Comunitária mexicano, “uma iniciativa bem recente, dentro da definição dos objetivos do governo atual”. A diferença é que o programa mexicano “não visa a criação de redes pelas comunidades nem estas interagem com outros grupos do país”.

Canclini também ressalta a história de desenvolvimento comunitário no México desde a revolução. Ele destacou o surgimento mais recente das comunidades feministas, entre outros movimentos, que formularam demandas claras e conseguiram a formulação de leis e a criação de órgãos, “apesar de todos os governos tentarem neutralizar essas formas de intermediação criadas de baixo”.

Mas, no caso das organizações culturais, o desenvolvimento foi menor, segundo Canclini, com movimentos independentes, que não querem relações com o Estado, e outros que negociam formas de autogestão e ao mesmo tempo mantêm uma atitude reticente para com o Estado.

Para ele, o fato é que as sociedades brasileira e mexicana são muito verticais. No México há estruturas sociais semelhantes e formas de relação verbal equivalentes ao “Sabe com quem está falando?” brasileiro, explica.

O que mais surpreendeu Canclini foi “a força a longo ou médio prazo que a criação de Pontos de Cultura e de um sistema nacional deu à organização comunitária desde 2004”.

Outro ponto destacado por ele é a multiculturalidade religiosa e a diversidade territorial do Brasil. “O México também tem diversidade territorial, reforçada por uma diversidade étnica mais organizada que no Brasil. Mas causa certo estranhamento, no México, saber que os Pontos de Cultura podem se localizar não apenas em um edifício lai­co, mas também em igrejas, católicas ou evangélicas, e em terreiros de candomblé. Esse tipo de experiência multicul­tural que assume formas institucionais próprias me parece um traço muito diferencial do Brasil.”

Sharine destacou que um dos fatores decisivos do ponto de vista negativo no Brasil é a falta de continuidade, com cada novo governo, federal, estadual ou municipal, parando tudo que está sendo feito para começar do zero, fazendo praticamente a mesma coisa, mas “querendo colocar a marca da gestão”.

Juan Brizuela
Juan Brizuela

Outra coisa que atrapalhou no caso da Lei Aldir Blanc foi a falta de estrutura dos municípios, que não receberam recursos ou tiveram que devolvê-lo por não contarem com um funcionário habilitado a elaborar um edital, afirma. Ela lembra que muitas cidades do interior não possuem sequer secretaria de cultura.

Juan disse que pensava que a luta ou as dificuldades dos atores do setor cultural residia na maneira como os recursos são distribuídos, que “podem ser maiores ou menores, conforme o peso histórico de cada movimento, talvez, ou por causa das condições do contexto em que se dá a disputa por recursos”.

Agora, tomando a Lei Aldir Blanc como exemplo, ele pensa que a boa organização do movimento que deu origem a ela só foi possível graças a “condições anteriores muito adversas e ao fracasso de algumas iniciativas, até bem-intencionadas, como foram as conferências de cultura participativas, enquanto processos históricos”.

Mariana comenta que parte do problema no México é o mesmo apontado por Sharine no Brasil: a falta de continuidade das políticas públicas. Acrescenta a isso o “confronto absoluto entre partidos; não há negociação nem intercâmbio de ideias entre os partidos, e essa tendência foi aumentando.”

Papel das universidades

No final do livro, os quatro falam sobre a situação atual dos organismos dedicados à difusão cultural na USP e na UAM. Para Sharine, as universidades não trabalham o suficiente com a comunidade, com a sociedade, “são um pouco fechadas em si”. Ela defende que as universidades obtenham mais verbas para trabalhar na área cultural e aprofundem as pesquisas sobre políticas culturais.

“Talvez seja interessante criar núcleos nas universidades que realmente pesquisem os indicadores culturais, os recursos que são ou não investidos.” Também é preciso trabalhar a formação de público e a educação, diz. “Faltam pesquisas sobre a formação de público.”

“Acho que o papel das universidades nas políticas públicas deveria ser esse, o de aprofundar a pesquisa do ponto de vista prático, e não somente teórico, como às vezes acontece.”

Para Juan, apesar de esforços feitos para ampliação de acesso às universidades públicas, elas ainda são minoritárias em termos de capacidade de gerar algum tipo de impacto em relação à articulação dos setores artísticos e culturais.

Um desafio para elas é “gerar processos participativos nas pesquisas, a fim de intervir de alguma forma no espaço público e na geração de alternativas em relação à situação que as universidades e a sociedade em geral atravessam”.

Mariana disse que na Cidade do México, a UAM e a Universidade Autônoma do México (Unam) são as maiores universidades públicas, com rádios, canais de televisão, jornais, revistas, sites, teatros e galerias, e apesar das tentativas para melhorar suas ações de difusão cultural, ainda não conseguiram criar vínculos com seus estudantes, e muito menos com o público em geral.

Mariana Martínez Matadamas
Mariana Martínez Matadamas
Para ela, isso tem a ver com o que foi dito sobre o Brasil: “Faltam estudos de públicos e, portanto, não se sabe como elaborar estratégias de difusão cultural. E muitas vezes o que é oferecido é extremamente acadêmico, muito distante das expectativas do público”.

Ainda quanto ao caso mexicano, deu-se uma relação um pouco oblíqua entre o saber universitário acumulado e algumas políticas oficiais nas quais desembocou, afirma Canclini.

Ele atribui isso ao fato de pesquisadores terem se incorporado à máquina pública depois de abastecerem com pesquisas, sobretudo de antropologia, as políticas públicas voltadas a integrar as comunidades indígenas a uma cultura nacional, a um “desenvolvimento socioeconômico planejado de forma ‘moderna’”.

“Às vezes existe até uma ruptura entre o desempenho de pesquisadores que têm uma posição quando são professores universitários, formam alunos, têm uma produção científica, e sua posterior integração à máquina pública”.

Canclini comenta que as publicações universitárias, em grande parte, “mofam nos depó­sitos, pois não conseguem entrar nos circuitos comerciais, e muito menos nos sistemas mais recentes de comunicação. É muito difícil convencer as universidades que é preciso produzir podcasts, que as rádios não podem se dedicar apenas à alta cultura”.

Mesmo os centros culturais que algumas universidades mantêm em locais es­tratégicos das cidades “são subutilizados como espaços à disposição das comunidades do entorno, dos bairros, dos condomínios, das zonas hipsters”, acrescenta.

Para Brizuela, é preciso trabalhar a esfera pública para além da dimen­são estatal, para pensar os diálogos, os debates e a solução de conflitos em nível intercultural. “Penso que é um desafio muito concreto em termos das políticas culturais visando o futuro. Isso implicaria imaginar a capacidade de lobby e que tipo de recursos são neces­sários, muitas vezes não apenas recursos econômicos, mas outra série de articulações que facilitem o desencadeamento desses processos”, acrescenta.

Foto (a partir do alto): 1 - arquivo pessoal de Néstor García Canclini; 2 - Quilombo do Sopapo; 3 a 5 - Leonor Calasans/IEA-USP; 6 - Fabricio Bahena.