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Manifestações falharam em promover a democracia representativa no Brasil

por Sylvia Miguel - publicado 04/03/2016 18:15 - última modificação 08/03/2016 13:52

Ao comparar os ganhos pós-mobilizações de massa ocorridas nos últimos anos no Brasil, na Espanha, Portugal e outros países, especialistas avaliam que correntes de direita avançaram no mundo, ao passo que a liberdade e a democracia perderam terreno.

Existem diferenças fundamentais entre os movimentos que levaram milhares às ruas em junho de 2013 em relação ao que foi chamado de “indignação seletiva”, ao final de 2015, no Brasil. Porém, nenhum dos episódios de massa recentes trouxe resultados políticos concretos para a cidadania e a democracia participativa. Ao contrário, houve um avanço dos discursos neopopulistas de direita, a perda de espaço das esquerdas, uma sofisticação das táticas de repressão policial, um crescimento da sectarização sociorracial nas redes sociais em vez de integração e inclusão, além de uma deslegitimização e uma desconfiança generalizada em relação aos governos e às instituições. Essas foram as principais conclusões do debate O Desafio da Democracia Participativa: Brasil, Portugal, Espanha, realizado no dia 26 de fevereiro com a organização do Laboratório Megatendências Globais e Desafios à Democracia do IEA.

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Para especialistas, correntes de direita avançaram no mundo, ao passo que a liberdade e a democracia perderam terreno.

“A falta de cultura política leva as pessoas a terem um pensamento mágico, achando que depois das ruas receberiam um presente. Isso é incompatível com a construção política, a mediação e a negociação que fazem com que os eventos das ruas tenham uma continuação. Em comparação, dois dos principais líderes eleitos na Câmara chilena vieram das manifestações recentes daquele país. Em 1992, a mobilização pelo Impeachment de Collor alçou a uma posição de liderança política um líder estudantil. É marcante o fato de que os movimentos recentes não deixaram um legado organizado”, disse o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFCLH) da USP, durante o debate.

“A repressão às manifestações se sofisticou. Antes era uma verdadeira batalha campal. Agora os policiais se dividem em grupos e reprimem os focos como os bombeiros combatem o fogo. Mas a combatividade dos manifestantes não diminuiu por conta disso”, avalia Gabriel Silva, graduando do curso de filosofia da FFLCH-USP e representante do Movimento Passe Livre (MPL).

Com abertura do então diretor do IEA, Martin Grossmann, e a moderação do professor Pedro Dallari, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, a primeira mesa discutiu A crise da representação e a exigência da participação. Também debateram o professor Álvaro Vasconcelos, do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa (IEEI), a professora Helcimara Telles, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Juliana Fratini, cientista política da ASA Comunicação.

Para o estudante, entre os saldos mais importantes de junho de 2013 está o fato de que as esquerdas foram tiradas das ruas. “Ao mesmo tempo, pipocaram muitos coletivos políticos e surgiu um debate sobre classe social. No geral, houve uma deslegitimização do governo e das instituições”, acredita.

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Professor Álvaro Vasconcelos (IEEI) e o estudante Gabriel Silva (MPL).

Silva disse que os coletivos políticos temem que a lei antiterrorismo aprovada no Senado traga um retrocesso aos movimentos sociais e aumente a capacidade de repressão às mobilizações. “A consequência da contrarreação pode ser a barbárie. Se maio de 1968 foi o inicio da desilusão, nós nascemos na desilusão”, disse.

Globalização como barreira à liberdade e à política

Para Vasconcelos, na maioria dos países democráticos, os cidadãos vêm paulatinamente saindo da pobreza e conquistando acesso ao ensino e às tecnologias da informação e comunicação (TICs). O resultado é uma maior autonomia em relação às estruturas tradicionais de representação e mediação. Os cidadãos tornam-se atores de si mesmos sob o ponto de vista de que criam a informação e participam dela.

Com isto, a difusão de poder fragiliza os governos e as estruturas institucionais tradicionais como a mídia, por exemplo. Assim, há um déficit de expectativas com relação ao que os cidadãos desejam e aquilo que os governos e as instituições têm capacidade de atender.  Portanto, há um déficit de representação nas democracias modernas, avalia Vasconcelos.

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“No centro da crise democrática está a convicção dos cidadãos e dos políticos de que não há alternativa. Por vias eleitorais, o regime democrático permitiria mudar o governo. Mas hoje há uma convicção de que não importa quem esteja no governo, a política vai ser a mesma. Os cidadãos estão convictos de que sua liberdade está posta em xeque pela racionalidade econômica ou por exigências da tecnocracia”, disse o professor.

As exigências financeiras da globalização impedem uma alternativa, diz Vasconcelos. “Governos de esquerda e os tradicionais fazem a mesma política econômica. No caso da Europa isso é muito forte porque a União Europeia impõe um conjunto de regras de racionalidade econômica. Mas a falta de alternativa é a morte da política. Daí decorre que caímos numa questão lembrada pela filósofa Hannah Arendt, de que não há liberdade sem política e não há política sem liberdade”, disse o professor.

Na nova configuração dos regimes democráticos, a ideia de território deixou de fazer sentido, afirma Vasconcelos. “Caminhamos para uma democracia de valores fortes e voto fraco. Há uma tendência de surgirem regimes autoritários liberais, como já ocorre em países da África e na China, por exemplo. Serão mantidos valores como direitos humanos, justiça, processos judiciais mais transparentes. Nesses regimes autoritários, é possível fazer reformas sem dar opção política que vem do direito de voto”, disse.

Alternativas à democracia fraca

Duas grandes vias podem ter surgido como reação ao enfraquecimento dos regimes democráticos. Nos países nórdicos e do centro-leste europeu, surgiram partidos de extrema direita, xenófobos, opostos ao espaço aberto da globalização e a favor dos Estados nacionais fortes, como é o caso da Polônia, Hungria, Dinamarca, França e República Checa, cita Vasconcelos.

A outra via é o que tem ocorrido no sul da Europa, em países como Espanha, Portugal e Grécia. “A alternativa surgiu à esquerda, com partidos que defendem uma democracia participativa. São menos nacionalistas e o marco comum é a defesa de uma integração europeia alternativa à política econômica neoliberal”, disse.

Manifestação de 'Indignados' na Espanha

Manifestantes do movimento Indignados, da Espanha.

No caso da Espanha, os protestos que antecederam as eleições municipais de 2011 deram origem a três grandes movimentos de massa – o Movimiento 15-M, Indignados e Spanish Revolution. Sob o slogan “Democracia Real Já!”, os protestos espontâneos organizados pela internet reivindicavam mudanças profundas na política e no modelo econômico.

“Os ativistas consideravam que os partidos políticos não representavam o povo e que em vez de democracia, o país vivia um regime de partidocracia, praticamente um governo paralelo ao próprio governo”, disse Vasconcelos.

Os movimentos populares espanhóis criaram comitês de bairros e desenvolveram ações políticas para consolidar uma oposição aos partidos que dominaram a política desde o fim da Ditadura. Os grupos criaram o Podemos, de esquerda, um dos mais influentes partidos da Espanha, e o Ciudadanos, de direita.

“Ambos expressam a recusa à hegemonia de partidos que pactuaram a mesma política ao longo dos anos num sistema que ficou absolutamente corrupto. Como resultado, os tradicionais Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e Partido Popular perderam a liderança”, disse Vasconcelos.

Em Portugal, conta, o Partido Socialista e o conservador Partido Social Democrata dominaram a política desde o fim da Ditadura. Também exerciam o poder de forma coligada, em governos alternados ao longo dos anos. Mas, recentemente, o Partido Socialista acabou se recusando a viabilizar o governo. A direita havia vencido as eleições, mas estava longe da maioria parlamentar. O Partido Socialista então criou uma aliança inédita com a esquerda antiliberal, removendo o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. O impasse mostrou que a política de austeridade resvalou na hegemonia dos partidos tradicionais, como ocorreu na Grécia.

Na Grécia, o Partido Socialista Grego PASOK, que já esteve entre os dominantes, obteve menos de 5% dos votos para os 300 assentos do Parlamento Helênico nas eleições de 2015. Os gregos passaram a questionar a política de austeridade do PASOK e deram apoio ao Syriza, que passou a ser majoritário. Porém, defrontou a realidade imposta pela política econômica da União Europeia, disse Vasconcelos.

“As alternativas foram limitadas para Portugal e Grécia devido às imposições de Bruxelas. Então, sem alternativas imediatas para a Europa, a opção é abrir uma via terrível que é a desintegração da União Europeia e a volta aos Estados nacionais”, avalia o professor.

“A constatação de que as redes sociais têm sido muito mais utilizadas por movimentos antidemocráticos e populistas nos leva a uma conclusão perturbadora. É um comportamento que vai contra a utopia de que a sociedade da informação construiria um mundo mais democrático.”

(Helcimara Telles)

“A esquerda não tem mais uma agenda”

Os desafios da governança na democracia representativa será o tema da aula magna para alunos e professores da USP, ministrada pelo ex-primeiro ministro espanhol Felipe González Márquez, no dia 9 de março, no auditório 5 da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP.

“González será o novo titular da Cátedra José Bonifácio e coincidentemente o tema que escolheu trabalhar este ano será o da democracia participativa, mostrando como essa questão é importante e atual”, lembrou o moderador Pedro Dallari.

Dallari pontuou as questões levantadas pelos debatedores lembrando a importância de dimensionar historicamente a questão. “Sempre ouvimos falar de crise e há uma tendência de superdimensionarmos os fatos. Precisamos avaliar se a crise de representatividade vem operando desde o século 19 e se tornou um problema estrutural que ameaça a governabilidade, ou se é uma crise associada à incapacidade dos partidos hegemônicos de absorver as mudanças do mundo e lidar com o empoderamento dos cidadãos”, disse.

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Helcimara Telles (UFMG) e Juliana Fratini (ASA Comunicação).

“Tenho pensado muito sobre o isso e acredito que o alcance da crise de representação é algo que os partidos de esquerda deveriam se preocupar. Porque vemos grupos de direita avançando em muitos países e usando as mesmas técnicas discursivas de mobilização que a esquerda usou no passado. A esquerda não tem mais uma agenda. Ela simplesmente responde à agenda da direita e não se atualizou diante das novas demandas da sociedade”, disse Helcimara Telles.

Para a professora, o neopopulismo renascido nas redes sociais é intolerante, significando uma negação ao outro e, portanto, uma negação da política. Tal retrocesso é resultado da crise de representatividade que, por sua vez, tem origem na diferença entre o discurso dos partidos e aquilo que eles de fato praticam, acredita.

Ativismo de direita nas redes

Redes sociais e ação cívica foi o tema que abriu os debates da tarde. A professora Helcimara Telles mostrou uma extensa pesquisa que realizou em diversos países sobre ativismo nas redes sociais e demonstrou que a internet tem sido o principal veículo de recrutamento da direita para mobilização de massa.

"A diferença de escolaridade, classe social e acesso à internet são fatores que facilitam o recrutamento dos simpatizantes da direita. A esquerda ainda continua sendo recrutada pelas vias tradicionais de lideranças, sindicatos e partidos”, disse Telles.

“A constatação de que as redes sociais têm sido muito mais utilizadas por movimentos antidemocráticos e populistas nos leva a uma conclusão perturbadora. É um comportamento que vai contra a utopia de que a sociedade da informação construiria um mundo mais democrático”, ressaltou.

Juliana Fratini avaliou a questão do discurso sobre racismo nas redes sociais, com a palestra Racistas brancos e racistas negros nas redes sociais e a narrativa política – inclusão ou sectarismo?

Racismo na rede

Discurso nas redes evidencia sectarismo e não inclusão, diz cientista política Juliana Fratini.

A cientista política citou uma aula magna na USP e fatos sobre racismo que ganharam popularidade na web para demonstrar que os protestos, dentro e fora da internet, acabam tomando a forma de acusação. O discurso contraria aquilo que defende: a inclusão e integração de minorias.

“As comunidades nas redes sociais estão se fortalecendo em si mesmas, pelo sectarismo, sem se integrarem à sociedade como um todo. Portanto, reafirmando a separação sociorracial.”, avaliou Fratini.

A cientista acredita que as narrativas acabam sendo usadas de acordo com determinados interesses. “Há um problema que precisamos pensar que é como manter agendas de inclusão a partir de narrativas mais universalizantes”, disse.

As artes e a exigência da participação foi o tema de encerramento do debate, que contou com a moderação de Grossmann e a participação de Diogo de Moraes, integrantes do grupo de pesquisa Fórum Permanente do IEA. Participaram das considerações finais Geraldo Adriano de Campos, do Laboratório Megatendências Globais e Desafios à Democracia, além de Massimo Canevacci , professor visitante do IEA entre 2013 e 2015.

Fotos:
Fernanda Rezende, Sandra Sedini, Manu Torío e divulgação