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As múltiplas facetas da arte performativa de Marina Abramovic

por Flávia Dourado - publicado 07/11/2014 18:15 - última modificação 04/02/2016 15:21

Em seminário realizado no dia 22 de setembro, Massimo Canevacci, Renato Janine e Minom Pinho discutiram as particularidades da obra da artista Marina Abramovic, pioneira na arte performativa de longa duração.
Minom Pinho, Massimo Canevacci e Renato Janine - 22092014
Os expositores concentraram-se na análise
filosófica e antropológica da obra de Marina Abramovic

Pioneira na arte performativa de longa duração, Marina Abramovic usa o próprio corpo como sujeito e objeto, tema e meio de expressão com a proposta de explorar artisticamente os limites físicos e os potenciais mentais do ser humano. A performer é conhecida por se colocar em condições performáticas extremas, penosas e exaustivas, nas quais se expõe ao perigo, à dor e à agonia. Ao longo de sua trajetória artística, já se esfaqueou, tomou drogas para induzir o estado de catatonia e de espasmos, ficou sob a mira de uma arma carregada, foi cortada, espetada e desnuda pelo público e desmaiou no centro de uma estrela em chamas por falta de oxigênio.

A obra da artista, tida como a "avó da arte performativa", foi analisada no seminário Marina Abramovic: A Arte e a Vida por Um Fio, no dia 22 de setembro. Este foi o segundo encontro do ciclo A Vida Hoje: Amor, Arte, Política, organizado pelo Grupo de Pesquisa O Futuro nos Interpela do IEA. As exposições ficaram a cargo do filósofo Renato Janine Ribeiro, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador do grupo, e do antropólogo Massimo Canevacci, professor visitante do IEA.

O encontro contou, também, com a participação da produtora cultural Minom Pinho, que fez uma apresentação sobre o documentário "A Corrente: Marina Abramovic no Brasil", ainda em fase de finalização, com previsão de lançamento para o primeiro semestre de 2015. Dirigido por Marco Del Fiol e Cauê Ito e produzido pela Casa Redonda, da qual Minom é sócia-diretora, o longa-metragem acompanha a imersão de Abramovic na espiritualidade brasileira em suas viagens mais recentes ao país, quando visitou lugares místicos e explorou manifestações do sagrado e formas não tradicionais de conhecimento.

Janine, Canevacci e Pinho abordaram as múltiplas facetas da produção artística de Abramovic a partir de eixos temáticos: as tensões entre consciência e limites corporais e mentais; a exploração radical das dimensões expressivas do corpo; as interseções entre experiência estética e temas ligados ao sagrado, à vida e à morte; e a incorporação do público no contexto das performances, que passa de expectador passivo a coautor ativo.

ECOS DAS VANGUARDAS

Ao situar a obra de Abramovic na história da arte contemporânea, Canevacci associou o trabalho da performer às vanguardas artísticas do início do século 20, particularmente ao Futurismo italiano e ao Dadaísmo franco-suíço, por terem rompido com a passividade do público e com a ideia de que a arte é exclusividade de pessoas versadas em estética.

"Futuristas e dadaístas entenderam pela primeira vez que a obra está profundamente conectada com a vida, sem o princípio dicotômico do público passivo, de um lado, e do artista como grande criador que elabora sua arte para museu ou galeria, de outro."

Massimo Canevacci - 22092014
Massimo Canevacci: "Marina Abramovic coloca em
crise a ideia do olhar como controle do espaço e dos outros"

O antropólogo observou que essas duas vanguardas estão nas origens de performances concebidas não como uma obra pronta, mas como eventos artísticos que solicitam uma "ativização do público", o qual é provocado, transformado e convertido em co-criador.

De acordo com ele, a influência vanguardista se intensifica no período pós-Segunda Guerra, quando surgem movimentos artísticos voltados para a expressão de "um tipo de sentimento, uma visão de mundo, uma percepção, um estilo de vida" associado aos horrores do conflito. Os artistas à frente dessas vanguardas acreditavam que não havia como anular e esquecer o que havia acontecido, era preciso enfrentar aquela realidade.

Entre tais movimentos, Canevacci destacou o Acionismo Vienense – grupo que rechaçava o projeto estético tradicional, caracterizado pelo estatismo, e se propunha a levar a arte para campo da ação performativa, geralmente usando o corpo como suporte. As performances incluíam práticas radicais e controversas, como mutilação, sadomasoquismo, uso de excrementos e sacrifício de animais, como forma de "afirmar a catástrofe pela qual passou a humanidade".

Na opinião do antropólogo, essas vanguardas introduziram um tipo de "reacting do ritual arcaico, no qual ninguém pode ficar parado: todo mundo é movido, transformado, modificado". Com isso, destacou, deram um passo importante no universo da arte ao transpor a dialética entre o público e o privado, convertida em "oposição reificada" pela burguesia industrial, bem como com o dualismo entre corpo e mente: "Esse tipo de arte pratica o além da dicotomia", observou.

RELIGIÃO, SAGRADO E ESPIRITUAL

Ao contextualizar a obra de Abramovic nessa conjuntura vanguardista de inserção do público na experiência estética, de exploração do corpo como forma de expressão artística e de confrontação dos conflitos que perpassam a realidade, Canevacci enfatizou a forte presença das dimensões da religião e do sagrado nas performances da artista – algo que estaria relacionado à vivência da performer durante a crise dos Bálcãs, que levou ao desmembramento da Iugoslávia, seu país natal.

Segundo o antropólogo, o trabalho de Abramovic atravessa a tensão entre a religião, entendida como "uma instituição que professa uma ortodoxia doutrinária", e o sagrado, "algo mais complexo e indefinível segundo a lógica clássica racional". E esse conflito, afirmou, envolve uma dimensão corpórea: "A religião controla o corpo, que é visto como uma fonte de pecado, algo anatomicamente determinado para um fim específico. Já o sagrado penetra, fura o corpo e assume uma dimensão corpórea que tenta conectar o que é concreto, visível e imediato com o que é invisível".

Divulgação Filme Abramovic

Pinho também abordou as interseções entre a obra de Abramovic e a questão do sagrado ao apresentar o documentário "A Corrente". De acordo com ela, ao longo da incursão pela espiritualidade brasileira, a performer conheceu o que define como "pessoas e lugares de poder": o médium João de Deus, em Abadiânia, e as comunidades mediúnicas do Jardim de Maytrea, na Chapada dos Veadeiros (Goiás); a doutrina espiritualista do Vale do Amanhecer (DF); o xamanismo cultivado na Chapada Diamantina, a confraria afro-católica Irmandade da Boa Morte, os rituais de candomblé no Terreno do Gantois e a Igreja Nossa Senhora do Bonfim (Bahia); as minas de cristais em Cortino (Minas Gerais); e os ritos com o chá ayahuasca da doutrina Santo Daime (Amazonas), entre outros.

A produtora cultural destacou que o documentário aborda o processo de apropriação artística das diversas "fontes de energia espiritual" brasileiras por parte de Abramovic, que vê nessa trajetória uma forma de expandir a consciência e o autoconhecimento através da arte. "Marina se joga nas experiências com muita intensidade, se infiltra com todos os filtros, se coloca 100% na devoção e depois volta para questionar aquilo à luz do seu lugar de fato."

De acordo com Pinho, a radicalidade da artista nessa incursão de busca espiritual incomoda profundamente grande parte das pessoas porque se difundiu a ideia de que "sagrado é uma coisa e a arte é outra e, por isso, não se deve misturá-los".

CORPO SUBJETIVADO

Ainda em referência à presença do sagrado em Abramovic, Canevacci avaliou que as performances da artista inserem-se no paradigma do corpo como um elemento transitório entre a vida e a morte. "Por isso o corpo não é só carne, é também crânio, ossos, elementos que não se decompõem", completou, lembrando que, ao utilizar crânios como matéria-prima, os artistas não criam arte, mas algo mais complexo. "O crânio incorpora o sagrado, como se unificasse a dimensão humana, animal e divina. O sagrado é um transitar entre esses elementos diferenciados, que são parte constitutiva da experiência estética."

Para ele, no sentido artístico performático contemporâneo, o corpo não seria apreendido como matéria, mas como um sujeito sem uma identidade psicológica física, dotado de uma subjetividade pluralizada, de modo que cada fragmento corporal teria uma autonomia relativa. O corpo representaria, assim, uma multidão de subjetividades e individualidades, que define como "multivíduo".

"Por isso, os artistas não utilizam o próprio corpo, mas fazem um reenact e reatualizam a potencialidade corpórea", ponderou, acrescentando que a arte ocidental como um todo reflete sobre três grandes temas que perpassam o trabalho de Abramovic: o amor, o Eros (erótico) e a amizade. "É nesse contexto que a obra dela se coloca."

Como exemplo de experimentação das potencialidades do corpo na obra da performer, Canevacci citou a performance "Imponderabilia" (1977), na qual a artista e seu então namorado, Ulay, ficaram nus um em frente ao outro, cada um de um lado da porta que dava acesso à Galleria Communale d'Arte Moderna, em Bolonha (Itália). Para entrar, os visitante tinham que passar pelo estreito espaço entre os dois artistas e escolher qual deles encarar. "Algo interessante num tipo de cultura na qual corpo nu ainda provoca reações", observou o antropólogo, ressaltando que o público era confrontado com a posição, por vezes constrangedora, de contato físico e visual com os performers.

Rhythm 0
Abramovic na performance "Rhythm 0" (1974),
marcada pela incorporação radical do público

"Um público que já não era mais público, mas co-criador da obra, precisava transitar e colocar-se do lado da mulher ou do homem, de forma rápida ou mais lenta, acariciando o corpo daquele que escolheu."

Mas, segundo o antropólogo, a exploração mais radical do corpo como meio de expressão e da relação entre artista e público se deu na performance "Rhythm 0" (1974), na qual Abramovic colocou-se na posição passiva de um suporte artístico e encorajou os expectadores a assumirem uma postura ativa. A performer disponibilizou 72 objetos que davam prazer ou infringiam dor, entre os quais uma tesoura, penas, uma rosa, azeite, um revólver e munição, e convidou os visitantes do Morra Arte Studio, em Nápolis (Itália), a utilizá-los em seu corpo da forma como desejassem, enquanto permanecia imóvel.

Na opinião de Canevecci, essa entrega de Abramovic disparou um processo incontrolável. O público, inicialmente parado, pouco a pouco começou a escolher objetos e a ferir a artista. Ao longo das seis horas de duração da performance, suas roupas foram cortadas, seu peito foi perfurado com espinhos de rosa e uma arma carregada foi apontada para sua cabeça.

"A arte frequentemente é entendida como sublimação, remoção da dimensão instintual do desejo, do sexo etc. Só que a body art, que assume o corpo como sujeito, provoca um tipo de reação pela qual o que geralmente é removido passa a ser praticado e volta". Para ele, o problema é que esse retorno não ocorre de forma tranquila, mas violenta: "O removido é uma força que pode colocar em crise o controle do ego. O tipo de performance de Marina Abramovic cria esse tipo de deslocamento corporal."

VIDA EM RISCO

Janine também apontou a "Rhythm 0" como um exemplo emblemático tanto da radicalidade da obra de Abramovic quanto da imprevisibilidade do público por implicar a submissão da artista à dor e ao risco de vida e por dar margem a uma reação violenta por parte dos expectadores.

Para reforçar essas ideias, citou um comentário de Abramovic sobre os resultados da performance: O que eu aprendi é que se você deixar nas mãos do público, eles podem te matar. Eu me senti realmente violada. Cortaram minhas roupas, enfiaram espinhos de rosa na minha barriga, uma pessoa apontou uma arma para minha cabeça e outra a retirou. Isso criou uma atmosfera agressiva. Depois de exatamente 6 horas, como eu tinha planejado, me levantei e comecei a caminhar em direção ao público. Todos fugiram para escapar de uma confrontação presente.

Segundo o filósofo, é muito significativo que os participantes da "Rhythm 0", inicialmente tímidos, tenham começado a infringir sofrimento na artista. "A satisfação, o gozo maior deles não está naquilo que seria, digamos, uma aproximação afetuosa, mas naquilo que é quase uma ameaça." Também é significativo, destacou, que Abramovic se sujeite a esse tipo de situação. "Ela está num constante colocar-se em risco, que é uma experiência, nós diríamos nos termos clássicos da filosofia, metafísica. Essa experiência vai para além do social, além do histórico e questiona o sentido ou os sentidos da vida."

Além da iminência do risco de vida e da reação violenta do público, Janine chamou atenção para um terceiro aspecto da performance: o contraste entre a construção cênica e aquilo que irrompe: "É interessante que toda essa irrupção do inesperado se dê dentro de um quadro de planejamento estrito".

ARTE E TRANSFORMAÇÃO

Marina e Ulay
O reencontro de Abramovic e o artista Ulay, seu ex- namorado,
na performance "The Artist Is Present" (2010)

Ainda com foco na relação artista-público, Canevacci abordou o potencial transformador da obra de Abramovic. Para ele, a performance "The Artist Is Present" (2010), realizada no Museum of Modern Art (MoMA), em New York (Estados Unidos), é emblemática das possibilidades de uma transformação mútua entre performer e expectador.

Ao longo da performance, com duração total de mais de 700 horas, Abramovic ficou em uma cadeira por oito horas diárias, seis vezes por semana durante três meses, enquanto visitantes eram convidados a sentar-se cara a cara com ela, em silêncio e pelo tempo que desejassem. A artista fechava os olhos cada vez que um visitante levantava e voltava a abri-los quando um outro ocupava o lugar.

"Marina Abramovic é como um corpo cheio de olhos", comparou Canevacci, para quem esse fechar e abrir de olhos é um elemento filosoficamente muito importante: "Nós também estamos metaforicamente com os olhos fechados quando encontramos outras pessoas".

O antropólogo afirmou que essa ênfase no olho-no-olho problematiza a vinculação do olhar prolongado a uma postura de afronta ou sedução. "A gente não tem costume de olhar fixo. Marina Abramovic coloca em crise a ideia do olhar como controle do espaço e dos outros. Para ela, a abertura dos olhos é uma forma de encontro com o outro, o desconhecido, o estrangeiro."

De acordo com ele, o encontro com o outro é parte constitutiva do tipo de arte criada por Abramovic e diz respeito não só ao outro como uma terceira pessoa, mas também aos nossos próprios outros. "Trata-se de uma relação dialógica entre minha alteridade interna e a alteridade dos outros", por meio da qual é possível "se transformar num ser que vê e que se vê", explicou.

"Nesse tipo de encontro de Marina Abramovic a arte é incontrolável, cria uma mudança. E esse tipo de mudança é, para mim, a estética. A estética é quando um sujeito está frente a uma obra e percebe que está mudando, que a sua identidade não é mais a mesma, que está virando outras. É como se ele fosse capturado por um evento e deslocado para um contexto totalmente diferente. A arte ou modifica a nossa identidade ou não é arte. E modificar a identidade é modificar a corporeidade. Porque a identidade está disseminada no corpo; o corpo é cheio de identidades, subjetividades", completou.

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TRANSGRESSÃO X RADICALIDADE

Assim como Canevacci, Janine contextualizou a obra de Abramovic no cenário mais amplo das artes. Mas diferentemente do antropólogo, que ressaltou a influência vanguardista no trabalho da performer, o filósofo questionou a ideia, defendida por muitos críticos e estudiosos, de que as performances criadas pela artista são transgressoras.

Para sustentar esse ponto de vista, Janine citou três romances que considera ser representativos da transgressão artística: "O Amante de Lady Chatterley" (1928), do inglês D.H. Lawrence; e "Madame Bovary" e "As Flores do Mal", ambos de 1957, dos franceses Gustave Flaubert e Charles Baudelaire, respectivamente. Acrescentou, ainda, o quadro "Olympia" (1863), do pintor francês Édouard Manet, no qual figura "uma mulher nua, adereçada por um colar, então numa situação pouco usual e absolutamente soberba na sua nudez, sem vergonha alguma".

O filósofo destacou que os autores das três obras literárias foram levados à Justiça e processados criminalmente por insultarem os bons costumes e ultrajarem a moral pública com textos que questionavam o papel social da mulher através de temas controversos, como o adultério e o erotismo.

De acordo com ele, no caso dos três livros, estão em jogo as questões do sexo e do gênero. "Nas três histórias escritas, em que há narrativa, enredo, está muito claro que o que movimenta e articula os personagens é o desejo sexual. É sexo mesmo, é cama, é corpo. São histórias em que uma lei humana é desafiada. Eu posso ir um pouco além e dizer: não é só uma lei humana, é uma lei reputada a ser divina."

Para Janine, a ideia de transgressão está ligada à violação de uma lei ou norma social. "E, mais ainda, uma violação que de certa forma prefigura a revogação da lei, pois quem vai vencer a longo prazo é a transgressão", completou.

DESAFIANDO LIMITES

Tendo em vista essa ideia de transgressão, Janine afirmou que a obra de Marina Abramovic não promove uma ruptura da mesma natureza que os romances mencionados porque, embora tenha o corpo como elemento central, lida com questões mais radicais, de ordem filosófica. "De um modo geral, as questões, por tudo que eu vi e li sobre ela, dizem respeito sobretudo à vida e à morte, ao sentido da vida e à possibilidade da morte, à intensidade do amor."

Renato Janine - 22092014
Renato Janine: "A intensidade do trabalho
de Marina Abramovic tem a ver com a presença"

Na opinião do filósofo, no lugar da transgressão o trabalho da performer traz o push the limits – expressão em inglês que poderia ser traduzida como "empurrar os limites" ou "forçar as fronteiras". Como exemplo, citou mais uma vez a "Rhythm 0": "Quando Abramovic descobre que ultrapassou o limite do que o corpo poderia suportar e se dá conta da violência do público, isso tem o valor de uma epifania".

Mencionou, ainda, "Breathing In, Breathing Out", obra que celebra a paixão entre a performer e Ulay, seu companheiro por 12 anos e parceiro em muitos trabalhos. Na performance, os artistas pressionaram suas bocas uma contra a outra e bloquearam as narinas, de modo que não podiam inspirar nada além da expiração exalada dos pulmões do outro. A ação de inspirar e expirar mutuamente o ar um do outro se estendeu por 19 minutos, até o ponto de quase asfixia, quando trocavam apenas dióxido de carbono e desmaiaram por falta de oxigênio.

"Trata-se de uma frequentação do limite, e, ao mesmo tempo, de uma metáfora de amor extremamente bela, em que tudo – o meu ar, o meu espírito – está em você", disse, lembrando que um dos significados atribuídos à palavra "alma" é "ar".

A CENTRALIDADE DA CONSCIÊNCIA

Além da transposição dos limites, Janine apontou a consciência como outro tema bastante recorrente na obra de Abramovic. De acordo com ele, essas duas temáticas se misturam e são particularmente evidentes na série de performances "Rhythm", realizadas de 1973 a 1974.

Segundo Janine, o comentário de Abramovic sobre a primeira delas, a "Rhythm 10" (1973), reforça essa ideia: Uma vez que você entra no estado de performance, você pode impelir seu corpo a fazer coisas que jamais você normalmente faria. Segundo o filósofo, a frase revela a centralidade do "estado alterado de consciência" no trabalho da performer, uma vez que, a partir dessa condição, ela conseguiria desafiar os limites do próprio corpo e criar "obras de transe".

Na performance, a artista fez uma espécie de roleta russa com 20 facas. Com a mão esquerda estendida sobre uma folha de papel em branco, ela dava golpes entre um dedo e outro usando a mão direita, enquanto gravava os sons em uma fita cassete. Quando se cortava, escolhia uma nova faca e repetia o procedimento, até utilizar as 20. Ao final do ciclo, tocou a fita gravada e, a partir do áudio, procurou repetir os mesmos erros.

Rhythm 5
Performance "Rhythm 5" (1974), na qual
Abramovic chegou a desmaiar por falta de oxigênio

Janine também mencionou a declaração da performer sobre a "Rhythm 5" (1974): Eu estava muito irritada porque entendi que existe um limite físico. Quando você perde a consciência, você não pode estar presente, você não pode performar.

Na performance em que se deu conta das suas limitações corporais, Abramovic acendeu uma espécie de fogueira em uma estrela de cinco pontas, símbolo do comunismo, e simulou um ritual de purificação, queimando pedaços de unha e cabelo que havia cortado. Em seguida, deitou-se no centro do objeto em chamas. A situação saiu do controle quando o fogo consumiu todo o oxigênio e a artista desmaiou. No entanto, o público só percebeu o que estava acontecendo e tomou providências no momento em que as labaredas começaram a chegar muito perto do corpo da artista.

Em relação à tensão entre consciência, possibilidades da mente e limites do corpo, outro exemplo dado por Janine foi "Rhythm 2" (1974), performance dividida em dois momentos: no primeiro, Abramovic tomou um medicamento indicado para o tratamento da catatonia, condição caracterizada pela paralisação dos músculos, e teve uma reação violenta, com espasmos e movimentos incontroláveis. No segundo momento, dez minutos depois de o efeito dessa droga excitante passar, a performer ingeriu um outro remédio, prescrito para pessoas agressivas e deprimidas. O resultado foi um estado de imobilidade total.

De acordo com o filósofo, na primeira parte, Abramovic "não tinha nenhum controle sobre movimentos de seu corpo, mas o espírito estava lúcido e ela podia observar tudo que acontecia". Na segunda, por outro lado, a artista "estava com o corpo presente, mas do ponto de vista mental estava completamente removida". Para ele, essa experiência performática foi determinante para Abramovic porque ela compreendeu que, "quando não há consciência, não é possível performar".

O VALOR DA PRESENÇA

"A intensidade do trabalho de Marina Abramovic tem a ver com a presença", enfatizou Janine, destacando que este tema figura, ao lado das reflexões sobre a  consciência, entre as duas grandes questões da filosofia exploradas no trabalho da artista. "Tanto que as obras dela envolvem um público presente, que deixa de ser público porque é chamado a atuar", completou.

Ele explicou que a filosofia aborda a temática da presença a partir do clássico contraponto com a representação, entendida como o espaço da falsidade e da manipulação, uma vez que pressuporia "estar no lugar do ausente" e "permitir acesso ao que está distante". Por isso, observou, não faria sentido referir-se à performance, na qual a presença é o elemento central, como uma forma de representação.

Exemplo disso seria a "Breathing In, Brathing Out", performance que, de acordo com ele, "é presença pura, é presença radicalizada, é boca, um dos gestos mais íntimos de proximidade física amorosa, é sugar o ar um do outro; é uma presença absoluta, sem nenhum limite".

A questão da presença também seria marcante em outros dois casos: na "Rhythm 5" e no ritual de separação entre Abramovic e Ulay. Segundo Janine, no primeiro, quando Abramovic se oferece como presença e também como presente, os expectadores ficam extremamente animados em poder causar o mal. "Enquanto ela está inerte, as pessoas abusam e efetivamente apontam um revolver carregado para ela, efetivamente cortam o corpo dela, efetivamente acontece a experiência da violência." Mas essa dinâmica da presença muda, observou, no momento em que a performer volta à vida, sai da inércia, se dirige às pessoas e elas fogem".

Já no segundo caso, afirmou, "a dinâmica da separação passa pela presença". Seis anos após darem início ao pedido de autorização junto ao governo chinês para percorrerem a Muralha da China, Abramovic e Ulay recebem a permissão. Mas, como àquela altura o relacionamento já estava no fim, eles decidiram fazer da marcha pelo monumento um ritual de separação. Partindo cada um de uma ponta da Muralha, caminharam um em direção ao outro por aproximadamente dois meses, totalizando 5 mil km.

Para Janine, trata-se de um ritual de separação extremamente forte e envolto num simbolismo: "A Grande Muralha é uma separação ela própria, não tem exatamente um tamanho certo, foi construída a longo de séculos, tem trechos que ruíram".

Minom Pinho - 22092014
Minom Pinho: "Marina se joga nas experiências com muita intensidade, se infiltra com todos os filtros, se coloca 100% na devoção e depois volta para questionar"

TEMPORALIDADE X ATEMPORALIDADE

No debate que sucedeu as exposições, dois temas destacaram-se nas perguntas levantadas pelo público: a temporalidade X temporalidade da obra de arte e a particularidade X universalidade dos símbolos.

A primeira questão refere-se a uma alegada atemporalidade da obra de Abramovic. Indagou-se se as performances da artista, uma vez que inseridas no amplo contexto da arte contemporânea, seriam desprovidas da noção de futuro e da perspectiva utópica que marcou as vanguardas modernas, configurando-se como algo atemporal.

Para Janine, não há como uma obra ser atemporal. "Uma das grandes mudanças dos últimos dois séculos é a convicção de que não se sai do tempo." Na sua avaliação, o trabalho de Abramovic seria radical, e não atemporal.

Da mesma forma, Canevacci disse discordar com a ideia do fim da história: "A história continua, muitas vezes dramaticamente; não acredito na inexistência de presente e futuro". De acordo com o antropólogo, o que se tem atualmente é uma ubiquidade: "o sujeito ubíquo está aqui e em muitos outros lugares, o que desafia as coordenadas clássicas de espaço e tempo".

Ele destacou que a filosofia e a antropologia seguem imaginando um futuro melhor e que ele, pessoalmente, ainda é movido pela esperança de tempos mais felizes, nos quais as dimensões da dominação e do controle não sejam tão incisivos. "Continuo a acreditar que o futuro é plural e espero que meu futuro seja sempre mais libertário."

Também para Pinho a obra de Abramovic não é atemporal, pois os trabalhos da performer só fariam sentido por estarem acontecendo no momento atual e serem embebidas numa estética situada em um contexto específico. De acordo com a produtora cultural, a presença da artista nas performances teria tanto valor porque se dá "num tempo em que as pessoas têm uma dificuldade muito grande de estarem presentes e são ubíquas, estão em mil lugares ao mesmo".

O segundo tema que mobilizou o debate foi a simbologia da caverna, numa referência à abertura do vídeo promocional do documentário sobre Abramovic. Na cena em questão, a artista aparece entranhando na Gruta da Lapa Doce, na Chapada Diamantina (Bahia), enquanto uma narração, com sua voz, diz: Estou em Mercúrio. Ou talvez em Júpiter. Na verdade, isto é Marte. Mas eu também gostaria de estar em Plutão.

Marte Divulgação filme
Abramovic na Gruta da Lapa Doce (Bahia) em cena do documentário "A Corrente: Marina Abramovic no Brasil"

Segundo Canevacci, entrar na caverna consiste numa experiência simbólica de penetrar o desconhecido, que se dá de diferentes formas em diferentes culturas. O antropólogo questionou a existência de algo contíguo e universal que una os homens através do tempo e do espaço.

"Os símbolos não são universais, mas culturalmente determinados." Por isso, advertiu, os símbolos acionados por Abramovic não seriam os mesmos daqueles acionados pela mitologia greco-romana, ligados a Mercúrio e a outros deuses.

Janine, por outro lado, associou a questão da universalidade X particularidade dos símbolos à ideia de consciência coletiva em Carl Gustav Jung. Para ele, o desafio seria iluminar o problema de "uma maneira não iluminista, sem ser pela razão do século 17 e 18, que também não seja irracional".

Fotos: dos expositores, Sandra Codo/IEA-USP; da "Rhythm 0" e "Rhythm 5", documentação das performances; demais, divulgação do documentário.