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Memória cultural: o vínculo entre passado, presente e futuro

por Flávia Dourado - publicado 23/05/2013 11:45 - última modificação 12/02/2016 10:49

Os pesquisadores alemães Jan Assmann e Aleida Assmann trataram do assunto na conferência Memórias Comunicativa e Cultural, que aconteceu no dia 15 de maio, no IEA.

 

Aleida Assmann e Jan Assmann
Os pesquisadores alemães Aleida e Jan Assmann

À primeira vista, a memória parece uma coisa inerte, presa ao passado — a lembrança de algo que aconteceu e ficou parado no tempo. Mas um olhar mais cuidadoso revela que a memória é dinâmica e conecta as três dimensões temporais: ao ser evocada no presente, remete ao passado, mas sempre tendo em vista o futuro.

Na conferência Memórias Comunicativa e Cultural, os pesquisadores Jan Assmann e Aleida Assmann, ambos professores da Universidade de Konstanz, Alemanha, abordaram esse caráter dinâmico da memória. Jan tratou da durabilidade e dos aspectos simbólicos da memória cultural, enfatizando seu papel na construção de identidades, enquanto Aleida priorizou a narrativa histórica contemporânea, concentrando-se nos processos mnemônicos ligados à constituição de novos estados-nação.

O evento, realizado no dia 15 de maio, no IEA, abriu o ciclo de conferências Espaços da Recordação, que os pesquisadores proferiram no país de 15 a 21 de maio. O ciclo integrou a programação do Ano da Alemanha no Brasil e foi uma realização da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Instituto de Estudos Avançados sobre Mobilidades Sociais e Culturais, com o apoio do IEA e de outras instituições.

Após passar pelo IEA, Jan e Aleida fizeram conferências na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, no dia 16; na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioste), Cascavel, no dia 17; na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, e na Universidade Estadual de Londrina (UEL), ambas no dia 20; e na Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, no dia 21.

Memória Cultural
Jan fez uma distinção entre dois tipos de memória: a comunicativa, relacionada à transmissão difusa de lembranças no cotidiano, através da oralidade; e a memória cultural — na qual concentrou sua fala —, referente a lembranças objetivadas e institucionalizadas, que podem ser armazenadas, repassadas e reincorporadas ao longo das gerações.

A memória cultural é constituída, assim, por heranças simbólicas materializadas em textos, ritos, monumentos, celebrações, objetos, escrituras sagradas e outros suportes mnemônicos que funcionam como gatilhos para acionar significados associados ao que passou. Além disso, remonta ao tempo mítico das origens, cristaliza experiências coletivas do passado e pode perdurar por milênios. Por isso, pressupõe um conhecimento restrito aos iniciados.

A memória comunicativa, por outro lado, restringe-se ao passado recente, evoca lembranças pessoais e autobiográficas e é marcada pela durabilidade de curto prazo, de 80 a 110 anos, de três a quatro gerações. E, por seu caráter informal, não requer especialização por parte de quem a transmite.

Identidade
Jan destacou as conexões entre memória cultural e identidade. De acordo com ele, a memória cultural é a "a faculdade que nos permite construir uma imagem narrativa do passado e, através desse processo, desenvolver uma imagem e uma identidade de nós mesmos".

A memória cultural atua, portanto, preservando a herança simbólica institucionalizada, à qual os indivíduos recorrem para construir suas próprias identidades e para se afirmarem como parte de um grupo. Isso é possível porque o ato de rememorar envolve aspectos normativos, de modo que, "se você quer pertencer a uma comunidade, deve seguir as regras de como lembrar e do que lembrar", como frisou o pesquisador.

Ele ressaltou que, por funcionar como uma força coletiva unificadora, a memória cultural é considerada um perigo pelos regimes totalitários. Como exemplo, mencionou o caso da Guerra da Bósnia, quando a artilharia sérvia destruiu a Biblioteca de Saravejo na tentativa de minar a memória dos bósnios e de minorias da região.

O objetivo, afirmou, era fazer da cultura uma tábua rasa para que fosse possível começar do zero uma nova identidade sérvia: "Essa foi a estratégia do regime totalitário para destruir o passado, porque se a gente controla o presente, a gente controla o passado, e se a gente controla o passado, a gente controla o futuro".

O passado em foco
Aleida abriu sua conferência chamando atenção para um fenômeno característico das últimas décadas: a descrença na ideia de futuro e a emergência do passado como preocupação fundamental. Segundo a pesquisadora, a partir dos anos 1980, a confiança no futuro como promessa de dias melhores perdeu força e deu lugar à inquietação diante do passado: "A ideia de progresso está cada vez mais obsoleta e o passado tem invadido a nossa consciência".

Esse fenômeno, destacou, é efeito do período de violência excessiva do século 20 e de novos problemas enfrentados pela sociedade contemporânea, como a crise ambiental, por exemplo. Mas advertiu que não se trata de mera nostalgia ou de rejeição dos tempos modernos, uma vez que a memória cultural está sempre direcionada para o futuro, "lembrando para frente, por assim dizer".

A memória surge, assim, como um artifício para proteger o passado contra a ação corrosiva do tempo e para dar subsídios para que os indivíduos entendam o mundo e saibam o que esperar, "para que não tenham que inventar a roda e começar do zero a cada geração", como explicou a pesquisadora.

Memória nacional
Tomando por base o conceito de les lieux de mémoire (lugares da memória), elaborado pelo historiador francês Pierre Nora, Aleida falou sobre as transformações que se operaram na construção da memória nacional no período pós-Segunda Guerra e pós-Muro de Berlim.

Pensando a partir do caso da França — país que se definiria pelo caráter triunfal de seu povo —, o conceito de lugares da memória refere-se a objetos simbólicos concretos, como monumentos, museus e arquivos, ligados a uma autoimagem de heroísmo e de orgulho por parte das nações.

Mas, para a pesquisadora, esse conceito não se aplica aos novos estados-nação surgidos a partir de 1945 (pós-colonial) e de 1989 (pós-União Soviética). Diferentemente da França, esses países não se constituem em torno do triunfo, mas do trauma gerado por eventos passados. Assim, no momento em que ex-colônias são elevadas à condição de nações livres e definem uma identidade própria, começa a vigorar uma memória marcada pelo histórico de violência, escravidão e genocídios.

Segundo Aleida, as nações rememoram essas feridas na tentativa de obter, no presente, um reconhecimento do sofrimento e dos abusos pelos quais passaram. Esse tipo de memória, construído sobre episódios traumáticos, se intensifica na década de 1990, quando os testemunhos das vítimas ganham espaço e são inaugurados diversos museus e memoriais ao redor do mundo dedicados a eternizar simbolicamente o passado de violações aos direitos humanos.

O caso de Israel
Ao responder, no debate, uma questão colocada por Helmut Galle, professor do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre a construção de uma memória de trauma em Israel, vinculada ao holocausto, Aleida ressaltou o intervalo de tempo entre a criação do estado-nação e a emergência dessa memória.

"Essa memória traumática não foi elaborada imediatamente, mas após um grande período de latência por uma razão política: havia um novo país a ser construído e um status de independência a ser conquistado", disse, destacando que a preocupação, naquele momento, era compor uma memória heroica, e não dar espaço à memória das vítimas.

Jan completou afirmando que o objetivo do estado de Israel imediatamente após sua criação era o de nunca mais ser vítima, enquanto o da Alemanha era o de nunca mais repetir os crimes que cometeu na Segunda Guerra. "O reconhecimento das vítimas veio mais tarde. A primeira ideia era a do 'nunca mais'", frisou.

Riscos e benefícios
Aleida levantou algumas questões sobre os riscos e benefícios da memória cultural derivada de eventos traumáticos: Essa memória traz à tona um potencial agressivo ou resulta num maior respeito e diálogo entre vizinhos? Torna uma sociedade mais vingativa ou mais consciente de seu passado? Faz dos indivíduos cidadãos mais sensíveis ou insensíveis à violação dos direitos humanos ou à condição das minorias?

A pesquisadora concluiu que a memória cultural não deve ser entendida como uma fixação patológica com o passado, mas como um back-up, uma espécie de bagagem necessária para que a sociedade construa seu futuro. Mas, de acordo com ela, essa memória deve ser inspecionada criticamente, como acontece com qualquer bagagem.

Por isso, afirmou, é preciso tomar cuidado para que o passado negativo, uma vez transformado em memória, não desperte o revanchismo: "A memória pode ser perigosa e destrutiva se desenterrar raiva e a vontade de revisar a história".

Conferencistas
Aleida AssmannAleida Assmann é professora de língua inglesa e literatura comparada na Universidade de Konstanz. É doutora em literatura inglesa pela Universidade de Heidelberg e em egiptologia pela Universidade de Tübingen. Publicou trabalhos na área de egiptologia, literatura inglesa e história da comunicação literária, mas desde a década de 60 vem se dedicando à teoria da memória. Seus estudos concentram-se na memória cultural, com interesse particular pelas tensões entre as experiências individuais e as lembranças oficiais da história da Alemanha no período pós-Segunda Guerra.

Jan AssmannJan Assmann é professor honorário de teoria cultural e religiosa na Universidade de Konstanz. Doutor honoris causa em teologia pela Universidade de Münster, suas publicações abrangem a área da egiptologia, com foco em interpretações sobre as origens do monoteísmo, a recepção do Egito na tradição europeia, história da religião, antropologia histórica e outros temas. Nos últimos anos, tem se voltado para a dimensão da memória cultural numa escala temporal longínqua, que remonta a mais de 3 mil anos. A partir disso, busca entender o papel da memória nas disputas entre israelenses e palestinos no Oriente Médio e entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte.

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Fotos: Mauro Bellesa/IEA-USP