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Metafísica de McTaggart para teorizar o tempo celular

por Sylvia Miguel - publicado 17/03/2016 18:50 - última modificação 21/03/2016 15:24

Os corpos podem ter uma capacidade receptiva, interagindo uns aos outros e sincronizando o tempo do relógio com o tempo biológico.
Kazuhiko Kume

O neurocientista Kazuhiko Kume, da Nagoya City University.

Pesquisador nas áreas de neurociência e biologia molecular, Kazuhiko Kume, do Departamento de Neurofarmacologia da Nagoya City University, falou aos participantes da Intercontinental Academia como um dos pioneiros a introduzir o estudo da neuroética no Japão.

“Time in the brain” foi o tema da palestra, ministrada durante os workshops de biologia, no dia 8 de março. A segunda fase da Intercontinental Academia acontece em Nagoya, Japão, de 6 a 18 de março.

Estudioso dos padrões de sono e da interação molecular no ciclo circadiano, Kume se autointitula “filósofo de fim de semana” e foi assim que introduziu sua visão sobre a relação do cérebro e das células com o tempo.

Mostrou uma imagem que, ao fixar o olhar, o expectador tem a ilusão de que as figuras se movem.  “Se seu cérebro vê o movimento, isso acontece junto com o tempo que o cérebro leva para produzir o movimento. Então, seu cérebro produz o tempo numa figura estática”, disse.

Abordou inicialmente alguns conceitos sobre neurociência e bioética. Essa ele introduziu no Japão a partir de um livro texto produzido em 2006. No sentido original da palavra, significa “a ética da neurociência”, ou, a conduta que define o que é bom ou ruim no estudo do cérebro, disse. “Por exemplo, apagar lembranças negativas ou melhorar a atividade cognitiva através do uso de medicamentos, é algo bom ou ruim?”, pontuou.

A bioética também pode ser entendida como a neurociência da ética. “Por exemplo, existe alguma diferença nas decisões individuais sobre ética em razão das diferenças estruturais do cérebro”. Ou, ainda: “É possível dizer quem diria sim ou quem diria não num dilema moral, apenas olhando a estrutura do cérebro da pessoa?”, perguntou.

Discutir cérebro e mente incita alguns questionamentos bastante comuns, como “o que é mente ou consciência”; ou, “será que eu realmente sei por que eu quero determinada coisa?”, disse.

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Vídeo:

Time in the brain: synchronization and dissociation

E-series Time As Prolegomena to McTaggart’s A- and B-series Time

 

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Segundo Kume, o filósofo e matemático René Descartes (1596-1650) propôs um centro no cérebro onde habitaria o espírito (mente); uma espécie de sede da alma ou do pensamento.  Ele acreditava que esse centro estaria no corpo pineal, ou glândula pineal, já que é uma estrutura única, localizada na área central do cérebro. É como se nossa mente permanecesse lá, como que sentada num teatro olhando e decidindo o que devemos fazer. Como se houvesse uma pessoa dentro do cérebro. Mas isso seria impossível, disse Kume, pois leva a uma definição infindável de que dentro daquela pessoa teria outro centro onde habitaria outra pessoa e assim por diante.

Sendo assim, os argumentos contrários às crenças de Descartes mostram que nenhuma região é particularmente essencial à consciência, pois qualquer parte pode ser suprimida sem que haja perda de consciência. Embora haja exceções no caso de grandes lesões na cabeça, disse.

Por outro lado, a desconexão através do sono, ou da anestesia, induzem a uma perda reversível da consciência. O cérebro e o corpo continuam a trabalhar, mas sem a consciência. Além disso, filosoficamente é impossível conceber o “centro do ser humano”, pois isso levaria a uma infindável redefinição recursiva, disse.

A questão se complica quando dois cérebros, de pessoas distintas, compartilham as mesmas sensações, percepções e emoções. Kume colocou a questão ao mostrar gêmeas conectadas pelo cérebro. Elas possuem genes idênticos, mas diferentes gostos e personalidades. Podem controlar as próprias mãos e frequentemente brigam uma com a outra. Mas possuem conexões que lhes proporcionam as mesmas sensações. Uma não gosta de brócolis e quando a outra come, a anterior sente o gosto do vegetal. Elas também têm a capacidade de se comunicar sem falar entre si. Por exemplo, ir a uma determinada direção, ou tomar a decisão de assistir a TV, entre outras.

“Não admira se assumirmos um ser humano como um conjunto de diferentes personalidades. Na visão contemporânea, é como se houvesse vários anões atuando dentro do cérebro”, disse. Daí a visão de Kume sobre o que é mente: ela é como um governo sem presidente, em que a boca é o porta-voz que representa o governo, mas não decide e nem sabe de tudo. É como um lugar de muitos ministérios, em que cada um é chefiado por um ministro que decide e executa diferentes projetos e se reporta ao porta-voz. Nessa lógica, nem mesmo o ministro sabe tudo o que é feito no seu ministério, já que cada ministério é feito de inúmeras partes, comparou.

Assim, Kume propõe uma análise do cérebro a partir da classificação de tempo criada pelo metafísico inglês John McTaggart Ellis McTaggart (1866 – 1925), acrescida da visão de Naoki Nomura sobre esse autor (leia na matéria abaixo).

Nomura utiliza a estrutura temporal de McTaggart e acrescenta uma nova série temporal à teoria, a série-E, baseada na sincronização e comunicação entre agentes. Esta série emerge quando ocorre uma sincronização entre o tempo objetivo e o tempo subjetivo. A palavra chave de sua análise sobre cérebro, portanto, está fundamentada na sincronização entre o tempo subjetivo e o objetivo, disse.

Kume mostrou que há diferentes tempos, que variam conforme o instrumento usado para medi-lo. O relógio; uma série programada; as estações do ano; o calendário; o período da digestão; o período menstrual; o período lunar; a respiração; a batida do coração; o piscar dos olhos são medidas que dão uma noção de tempo biológico. Nesse tipo de tempo, a sincronização é importante. A transformação do girino em rã, por exemplo, não requer um tempo objetivo específico e sim uma temperatura ideal para os membros crescerem e a cauda se atrofiar, exemplificou.

Então os seres vivos são regidos não exatamente por um relógio, mas por um ciclo metabólico diário que estabelece o chamado ciclo circadiano. O relógio circadiano ou ciclo circadiano é o período de aproximadamente 24 horas, sobre o qual se baseia o ciclo biológico de quase todos os seres vivos. Portanto, é um ciclo influenciado pelas variações de luz, temperatura, marés e ventos entre o dia e a noite.

Segundo Kume, há uma região central que regula esse mecanismo no cérebro, mas os experimentos mostram que apenas uma célula ou apenas um neurônio podem adquirir a capacidade de concluir o ciclo circadiano. Assim, a palavra chave é sincronia entre as células. Da mesma forma, no corpo como um conjunto, cada célula funciona num ritmo diferente. Ou, numa sincronia imperfeita. Mas o resultado final é uma sincronia perfeita.

Metrônomos

Metrônomos ajustam a batida e o tempo ao sincronizar os movimentos entre si.

Para exemplificar esse fenômeno, Kume usou um vídeo mostrando as batidas de 32 metrônomos que, colocados sobre uma mesa móvel em ritmos diferentes, terminaram por entrar em sincronia após um minuto e 45 segundos. O mesmo exemplo também foi usado pelo professor Nomura, que fez sua exposição logo depois de Kume.

Segundo Kume, o raciocínio da série-E remete à chamada Teoria da Informação Integrada da Consciência (ITT, na sigla em inglês), proposta por Giulio Tononi, disse. Um paciente em coma recupera a consciência quando partes do cérebro vão conectando gradualmente as informações do ambiente, integrando-as inteiramente ao cérebro. Da mesma forma, os seres vivos integram o ritmo do ambiente físico entrando em sincronismo com ele, mostrou.

 

Série-E temporal de Nomura, uma nova abordagem à McTaggart

Naoki Nomura

O antropólogo cultural Naoki Nomura fala sobre a sincronia do tempo biológico e do tempo físico.

O antropólogo cultural Naoki Nomura, professor da Escola de Humanidades e Ciências sociais da Nagoya City University, falou sobre o estudo que está construindo baseado nas premissas desenvolvidas por McTaggart sobre o tempo.

“Ainda é um trabalho em andamento e, portanto, o que trago aqui está inacabado, mas é uma boa visão sobre o tempo de McTaggart”, disse. Uma parte do estudo de Nomura está disponível online no artigo “E-series Time As Prolegomena to McTaggart’s A- and B-series Time”, que ele assina com Koichiro Matsuno, da Nagaoka University of Technology.

"The Unreality of Time" é a obra filosófica mais conhecida de McTaggart, publicada originalmente em 1908 na revista científica "Mind". Nela, o autor apresenta argumentos para demonstrar a irrealidade do tempo. Para McTaggart, as descrições que conhecemos sobre tempo ou são contraditórias, circulares ou insuficientes.

Assim, McTaggart propõe basicamente três séries temporais para descrever o tempo. A série-A, temporal, representa o tempo subjetivo, psicológico, constituído pelos tempos passado, presente e futuro. A série-B, atemporal, é o tempo objetivo, físico, caracterizada por eventos ocorridos “mais cedo do que” e “mais tarde do que” um outro evento. A série-C e também a série-D possuem características temporais estáticas.

“A série-A é uma divisão muito importante para nós porque representa o tempo subjetivo, ou o tempo psicológico. Mas quando olhamos o relógio, nos damos conta de que ele marca as horas, mas não mostra se é passado, presente ou futuro. Então a serie-B significa a hora sem a divisão de tempo passado, presente e futuro. Representa o tempo objetivo. Na série-B o relógio funciona como um timer global, ou um dispositivo comum que sincroniza os relógios do mundo”, disse Nomura.

Por sua vez, a série-C é uma sequência sem ordem, com características temporais estáticas. O calendário pode ser visto como uma sequência de números; e o relógio, um mecanismo que gira entorno de seu eixo. Então esses objetos de tempo podem ser vistos como uma imagem estática, uma pintura, um desenho do tempo, disse. “A partitura musical também marca o tempo, mas a vemos como uma pintura”, comparou.

“Mas o relógio biológico parece não se adequar em nenhuma dessas séries. Então minha pergunta é onde o relógio biológico se adequaria nessas descrições”, aponta Nomura.

Para o cientista, a resposta está entre a série-A e a série-B. Ou melhor, na comunicação entre as duas. Esta junção resulta na série-E temporal, criada por ele e caracterizada pela sincronização ou comunicação entre os diferentes tempos.

Para exemplificar a ideia, Nomura mostrou o que acontece com 32 metrônomos calibrados em ritmos diferentes e colocados sobre uma mesa móvel. Após um minuto e 45 segundos, a batida e o tempo se ajustam e todos entram no mesmo ritmo.

“O movimento deles permitiu que se ajustassem entre si, entrando todos no mesmo ritmo. Vemos que os corpos materiais podem ter uma capacidade receptiva, interagindo uns aos outros e coordenando o tempo. A sincronização dos metrônomos se deve ao ajuste mútuo de movimento e ao deslocamento na mesa. Onde desaparece a medida de tempo? Todos entram num constante ajustamento por tentativa e erro, até que alinham o tempo com a batida. A comunicação entre eles faz a diferença”, disse Nomura.

Da mesma forma, diz Nomura, é possível pensar que o fluxo de materiais entre as células ocorre pela comunicação entre elas. O equilíbrio, portanto, se dá pela sincronização. Elas entram num determinado ritmo conforme o pulsar e a pontuação do ritmo, determinado pelo caminhar, por dançar, por falar, por exemplo. Portanto, a sincronização cria um tipo de tempo que é diferente do tempo do relógio, segundo Nomura.