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Mobilizando as ciências sociais em resposta às mudanças ambientais globais

por Mauro Bellesa - publicado 11/12/2014 12:20 - última modificação 03/08/2018 17:09

A secretária-geral do International Social Sciences Counsil, Heide Hackmann, apresentou o "Relatório Mundial sobre as Ciências Sociais 2013 - Mudanças Ambientais Globais" em seminário no dia 24 de outubro.
Eduardo Marques, José Álvaro Moisés, Heide Hackmann, Eduardo Viola e Pedro Jacobi
Os participantes do seminário sobre o relatório do ISSC (a partir da esq.): Eduardo Marques, José Álvaro Moisés, Heide Hackmann, Eduardo Viola e Pedro Jacobi

O papel das ciências sociais na compreensão de causas e consequências das mudanças ambientais globais e no desenvolvimento de soluções eficazes, justas e sustentáveis foi discutido na conferência Changing Global Environments, que o Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia do IEA e o Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs) da USP realizaram dia 24 de outubro.

O evento teve como referência o "Relatório Mundial sobre as Ciências Sociais 2013 - Mudanças Ambientais Globais” (resumo em português)",  produzido com a colaboração de mais de 150 cientistas de todo o mundo a partir de uma parceria entre o Internacional Social Sciences Council (ISSC), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A apresentação do relatório coube à socióloga Heide Hackmann, secretária-geral do ISSC. Atuaram como debatedores os professores ; Eduardo Viola, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB); e Pedro Jacobi, da Faculdade de Educação (FE) da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade do IEA; e Eduardo Marques, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A moderação foi de José Álvaro Moisés, professor da FFLCH, diretor científico do NUPPs e coordenador do grupo de pesquisa do IEA.

OBJETIVOS

Cartaz Relatorio Mundial Ciências Socias

O objetivo central do relatório, segundo Heide, é mobilizar a comunidade das ciências sociais em geral para uma resposta às mudanças ambientais globais. Os demais objetivos são:

  • ampliar o conhecimentos das ciências sociais sobre o tema;
  • reunir as linhas de pensamento pertinentes das ciências sociais nas últimas décadas;
  • apresentar contribuições que só podem ser elaboradas pelas ciências sociais;
  • avaliar a capacidade de os cientistas sociais pesquisarem sobre o tema e conectarem ciência com políticas e ações;
  • influenciar a agenda de pesquisas e seu financiamento.

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Notícia
O papel das ciências sociais diante da crise ambiental
15/10/2014


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A versão integral do relatório tem 612 páginas, com artigos de 150 pesquisadores de 23 disciplinas e de todas as regiões do planeta. Heide informou que a produção do documento levou dois anos para ser concluída e envolveu o trabalho de uma equipe editorial e de um comitê científico internacionais e a revisão dos artigos por mais de 40 consultores externos. O ISSC também criou um blog para receber comentários e contribuições complementares ao trabalho.

O público-alvo não são apenas os cientistas sociais, mas também cientistas naturais, engenheiros, “stakeholders”, tomadores de decisão, formuladores de políticas públicas e usuários em geral dos conhecimentos científicos, além de programas e organizações científicas e patrocinadores de pesquisas em âmbito nacional, regional e global.

Heide disse que confrontar os desafios das mudanças ambientais é uma responsabilidade de todas as ciências. Ao analisar as realidades globais, o relatório destaca que a contribuição das ciências sociais é indispensável, pois “nunca serão encontradas soluções que sejam justas, com impacto igual sobre todos, e duráveis”.

Para ela, não se pode mais separar os problemas ambientais dos problemas sociais, políticos, econômicos, culturais, da desigualdade, da insatisfação social, da corrupção: “Não faz sentido hierarquizar esses problemas, mas acabamos fazendo isso. Às vezes nos reunimos na Unesco e surgem opiniões do tipo ‘vamos solucionar a pobreza antes de nos preocupar com o clima’. E não é culpa da organização, mas sim dos estados-membro que realizam os debates. Isso não faz sentido, essas coisas são inseparáveis, partem de um único conceito socioecológico, e as ciências sociais possuem habilidade específicas que nos trazem explicações sobre essa inseparabilidade”.

Heide comentou que o relatório poderia ter sido elaborado a partir de uma lista de desafios concretos sobre água, energia, alimentos, terra, clima, organização, desmate, “como a maioria dos relatórios faz”, mas a opção foi fazer algo adicional: “Especificar as questões concretas exclusivas das ciências sociais que devem ser perguntadas sobre aqueles desafios, para que as contribuições dos cientistas sociais levem a soluções melhores, mais justas, sustentáveis e duráveis”.

TÓPICOS

Heide Hackmann
Heide Hackmann

De acordo com a socióloga, os seis tópicos que norteiam o relatório incitam a aspectos essenciais para a transformação das ciências sociais. O primeiro deles refere-se à complexidade e urgência características das mudanças ambientais globais e da sustentabilidade.  Nesse caso, “o contexto importa e não significa apenas geografia e localização, mas também identidade pessoal e questões sobre gênero e raça, pois tem a ver com a maneira como as pessoas sentem, reagem e criam sentido sobre o que está acontecendo no mundo”.  A história também tem uma contribuição importante para o entendimento "da trajetória que nos trouxe onde estamos e também da nossa compreensão do futuro e da possibilidade de visualizar alternativas”.

O segundo tópico trata das consequências das mudanças globais em diferentes contextos geográficos, culturais e pessoais do mundo real, sobretudo em comunidades vulneráveis. “Há quem considere isso um trabalho descritivo, mas são dados que precisamos, pois há uma lacuna no mundo inteiro sobre quais são as consequências das mudanças na vida das pessoas.”

O papel dos valores, visões de mundo e sistemas de crença na interpretação das mudanças e nas respostas a elas constituem o terceiro tópico. Como exemplo, Heide citou a importância de analisar a dimensão subjetiva da natureza humana e sua compreensão do problema das mudanças.

O quarto está relacionado com as condições e visões para mudança num mundo em rápida transformação. “Muitos cientistas naturais querem saber dos cientistas sociais como podemos mudar o comportamento humano, mas a questão não envolve apenas o comportamento. Estamos lidando com práticas sociais que estão enraizadas em sistemas e instituições. Fizemos perguntas sobre como se consegue mudar aspectos sistêmicos e nesse ponto começa-se a falar de engenharia social.”

A análise de abordagens éticas e preocupações em relação ao desenvolvimento de soluções políticas para os problemas das mudanças constituem o quinto tópico. Essa parte do trabalho envolveu filósofos e cobriu a ética, a justiça e as responsabilidades. Heide disse que isso significa “pensar nas consequências de quando atuamos como cientistas ou como pessoas envolvidas em nossas práticas profissionais”.

O sexto discute novas abordagens para a governança e tomada de decisão em diferentes escalas. O foco central dessa parte são os processos de participação política e o papel dos movimentos sociais, de comunidades, do conhecimento local, do processo de democratização, do processo político e também do processo científico.

O relatório é acompanhado de estatísticas sobre a produção científica das ciências sociais em relação às mudanças. “Tentamos mostrar uma panorama do que está sendo feito ao redor do mundo e uma análise bibliométrica da pesquisa das ciências sociais sobre as mudanças.”

PROCESSO SOCIAL

Uma das mensagens do relatório, segundo a pesquisadora, é que “as mudanças ambientais globais mudam tudo, a vida urbana, o modo de vida, o jeito com que interagimos com a natureza e uns com os outros, por isso acreditamos ser preciso uma nova ciência social para a sustentabilidade, mais corajosa e portadora de uma identificação das mudanças ambientais globais como um processo social”.

Essa nova ciência social deve, segundo Heide, estar mais apta a difundir os conhecimentos para a resolução de problemas do mundo real e possuir mais cientistas direcionados para as questões ambientais, além de adotar novas formas de pensar e colocar em prática o conhecimento.

Eduardo Viola
Eduardo Viola

Na sua participação, Eduardo Viola disse que o relatório é muito bem-vindo e que sintetiza um momento. No entanto, elencou uma série de aspectos que, a seu ver, constituem deficiências e omissões do documento.

Viola considerou os artigos bastante desiguais em termos de qualidade, deficiência que ele atribuiu em parte ao número excessivo de autores, “que não puderam aprofundar os temas nas poucas páginas a que tiveram direito, o que também resultou em redundância no conjunto, pois cada texto teve que apresentar considerações introdutórias óbvias”.

ANTROPOCENO

Ele criticou também o fato de “a centralidade do conceito de Antropoceno [termo proposto pelo Prêmio Nobel de Química Paul Crutzen para designar a atualidade como uma nova época geológica, caracterizada por grandes transformações na natureza provocadas pela humanidade] não estar presente em muitos textos” e a abordagem do relatório quanto à governança ambiental: “No Antropoceno, ampliar a qualidade dessa governança envolve incorporar o longo prazo na institucionalidade da democracia”.

Para ele, há duas dimensões novas e decisivas da democracia dadas pelo Antropoceno: a necessidade de ceder soberania para uma governança global e a disposição, no nível nacional, para equilibrar o curto prazo com o médio e o longo prazos, ou seja, “a característica de produção de bens públicos universal da democracia equilibrada com a livre articulação de interesses particulares”.

Viola disse que a maioria dos artigos parte da ideia de que o obstáculo é o fato de que antes é preciso conhecer mais sobre os problemas relacionados com as mudanças globais. Para ele, essa é uma visão equivocada, pois “há conhecimento profundo sobre os interesses econômicos que bloqueiam as transformações e conhecimento significativo, embora menor, sobre algumas características do funcionamento da mente humana média, que deveria evoluir para outro patamar, incorporando uma percepção que combinasse o curto e o longo prazos, incluindo os intermediários”.

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A última crítica de Viola ao relatório foi sobre a baixa proporção de artigos baseados nas relações internacionais e na economia política internacional. “A comunidade de relações internacionais estuda, por exemplo, as dinâmicas dos principais países do mundo em termos de sua participação no ciclo do carbono, proporção de emissões de gases efeito estufa, trajetória de emissões, intensidade do carbono no PIB e capital tecnológico e humano para a inovação em descarbonização.”

Pedro Jacobi
Pedro Jacobi

Pedro Jacobi, segundo debatedor, disse se identificar com as colocações presentes no resumo em português que leu em razão de sua historia de vida, mas isso não significa que “esteja satisfeito com a situação em que se encontram as ciências sociais no Brasil e na América Latina em relação ao meio ambiente”.

Comentou que sua convivência de muitos anos com cientistas sociais, naturais e de ciências da terra o faz perceber que a relação entre eles, embora tímida, começa claramente a mostrar as necessidades e os porquês da demanda por uma ciência social mais envolvida com as mudanças ambientais.

Para ele, os cientistas sociais têm o desafio de transformar as respostas da métrica em respostas para que a sociedade lide com os aspectos objetivos da desigualdade e da governança e também com os temas da subjetividade e das perguntas que todos se colocam continuamente.

APRENDIZAGEM SOCIAL

Jacobi frisou que “é muito fácil usar a palavra complexidade quando estamos no contexto universitário, mas quando estamos diante de um público leigo, se começamos a usar esse tipo de palavra, é como se quiséssemos que as pessoas se afastassem do nosso campo de compreensão”.  Na sua opinião, o conceito de aprendizagem social é estratégico e indutor das dimensões presentes no relatório.

De acordo com o pesquisador, primeiro é preciso avançar muito nas aprendizagens recíprocas, na redução da barreira entre as ciências naturais e as ciências sociais: “Os cientistas sociais e cientistas políticos ainda se envolveram muito pouco com o meio ambiente, algo que se pode constatar na USP. E o interessante que vejo na minha experiência com cientistas naturais é que eles estão muito mais disponíveis para ouvir os cientistas sociais do que o inverso”.

Comentou que muitas instituições, inclusive aquelas de financiamento, não estão lidando apropriadamente com novas áreas de conhecimento, situação problemática inclusive para as ciências sociais. “Se isso for ressaltado publicamente, talvez possamos chamar mais a atenção para a interdisciplinaridade e as áreas de conhecimento que precisam ser interdependentes.”

Jacobi acredita que a humanidade tem potencial para reduzir riscos e introduzir, cada vez mais, uma dimensão na qual “a tecnologia não seja hegemônica, onde o mais importante seja a tecnologia social, permitindo aos atores sociais se envolverem, mas não numa perspectiva imediatista, mas sim se abrindo para o futuro”.

Como promover mudanças nos estilos de vida? Como promover mudanças nas relações sociotécnicas? Como promover o reconhecimento da importância das comunidades locais, das comunidades indígenas, da população de menor renda? As respostas a essas questões devem ser procuradas nos espaços de diálogo e aprendizagem, segundo Jacobi, que finalizou dizendo que “o relatório é muito mais de intenções, como todo documento, mas as intencionalidades têm de se converter em políticas e práticas”.

BIBLIOMETRIA

Eduardo Marques
Eduardo Marques

Eduardo Marques, o terceiro debatedor, informou ter participado da editoria do relatório, especialmente em relação a aspectos institucionais. “Participei a pedido da Fapesp, para localizar especialistas e temas na América Latina e no Brasil e construir uma estratégia de pesquisa bibliomética a partir da utilização do Portal SciELO, um esforço que ajudou a incorporar um conjunto de publicações que ficariam fora do relatório e das medições bibliométricas por terem sido publicadas em espanhol ou português.”

Comentando as críticas de Viola, Marques disse que o objetivo do relatório não era reunir a melhor produção científica de temas específicos, mas sim levantar a produção de boa qualidade por meio da mobilização das mais variadas comunidades de especialistas e acadêmicos do mundo inteiro (“esforço que leva quase necessariamente a certa heterogeneidade”), além de introduzir questões politicamente, contribuindo para a disseminação de ideias e a construção de consensos.

No caso do Brasil e da América Latina, diversas questões apareceram de forma intensa, de acordo com Marques, como as migrações, os diversos padrões de exploração econômica e distribuição dos recursos naturais, as cidades e as metrópoles, os padrões de governança, a democracia, os movimentos sociais e os conhecimentos tradicionais.

Ele destacou a importância do trabalho desenvolvido pelo ISSC na articulação da comunidade de ciências sociais: “O ISSC é pouco conhecido no Brasil, mas tem um papel muito importante na disseminação, na articulação internacional das ciências sociais e na conexão dessa comunidade com outras comunidades ligadas aos temas específicos com os quais trabalha”.

MOBILIZAÇÃO

Ao comentar a participação dos debatedores, Heide disse que a paixão demonstrada em alguns comentários significa que o relatório cumpriu um de seus objetivos. Ela lamentou o fato de os cientistas políticos não estarem se engajando como o desejado: “Um jovem cientista político não vê os benefícios de se envolver num campo que é interdisciplinar e complexo”. Essa foi uma das razões, segundo ela, para o relatório ter sido pensado como um instrumento de mobilização e tentado ouvir tantas vozes quanto possível, para que "trouxéssemos a crítica, o engajamento, e desafiássemos a comunidade a fazer melhor".

No entanto, disse haver no relatório exemplos de como os cientistas sociais já estão contribuindo com soluções, “e não apenas com a produção de conhecimentos novos, mas também combinando criativamente conhecimentos já existentes”.

Para Heide, muito do que foi comentado no seminário refere-se a uma postura curativa e preventiva e muitos trabalhos falam de adaptação e mitigação, mas, perguntou, “quando vamos começar a contestar e dizer que podemos fazer as coisas de maneira diferente?”.

PAPEL CRÍTICO

Ana Paula Fracalanza, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, presente na plateia, solicitou que os integrantes da mesa falassem sobre o papel crítico das ciências sociais quanto ao que resulta das relações entre homem e natureza e como esse papel foi incorporado ao relatório pelos autores.

Heide respondeu que o relatório tenta indicar que há um papel crítico ligado ao desafio de reimaginar essa relação, reestruturar essa noção e incorporar a parte social, “mostrando que não são apenas processos físicos, mas também processos sociais, que tem um passado e um futuro”. Viola disse que todos os autores são críticos da situação atual e dividem-se em duas posturas, “uma com bom material conceitual e outra excessivamente normativa”.

DESIGUALDADE

Jacobi destacou que o papel das ciências sociais é fazer uma reflexão crítica e que “ a questão é o quanto é possível avançar nessa dimensão crítica ao se observar os fatores que justificam as transformações”. Argumentou que muitas vezes há uma situação em que as práticas participativas são ignoradas e tudo é deixado num patamar associado à governabilidade, que é uma dimensão muito diversa na realidade brasileira e latino-americana. “Ao se observar a produção de conhecimento das ciências sociais sobre meio ambiente na América Latina, emergem de forma muito explícita as desigualdades e o seu papel predatório das instituições econômicas. O desafio é justamente mobilizar a sociedade para reverter esses processos e identificar os instrumentos que dispomos, conceituais e metodológicos, para isso.”

Para Jacobi, “o normativo é sempre perigoso, pois leva à prescrição e antes dela precisamos conhecer muito bem os fatores que podem promover mudanças e também os fatores que geram enorme refratariedade, ou seja, por que a sociedade ou determinadas comunidades são refratárias a certas possibilidades de mudar sua condição de vida, pois não percebem exatamente seu próprio papel no processo”.

Marques acrescentou que talvez haja uma dimensão adicional ao papel crítico das ciências sociais quanto à questão ambiental, “o de ajudar a romper a separação entre sociedade e natureza, construir uma ontologia diferente que permita aos atores sociais entender a natureza não como um outro externo e que pode receber impactos, mas como algo constantemente construído como um todo”.

José Álvaro Moisés
José Álvaro Moisés

GOVERNANÇA

Moisés solicitou à expositora e aos debatedores que comentassem se a pesquisa avançou e quanto avançou na área de produção de conhecimento sobre as questões que envolvem a governança. Para ele,  essa questão é bastante complexa: “Não basta falar de governança em escala nacional. Há uma série de questões produzidas em escala internacional, por decisões de corporações ou de governos, e esse enlace entre questões de ordem internacional e nacional conduz a problemas, dúvidas e resultados com consequências muito graves para as comunidades locais”.

Heide disse que na sua área de pesquisa, que é a de política de ciência e tecnologia, a análise da questão da governança ainda está no início, ainda sem desenvolver uma paradigma de prática que acompanhe o desenvolvimentos dos sistemas das ciências: “A forma como estruturamos nossas reflexões e a questão da governança não estão no mesmo passo”.

Do ponto de vista da governança global relativa às mudanças ambientais, Viola comentou que se avançou muito no conhecimento das dificuldades, ou seja, por que está bloqueada a governança do ambiente global.

TRATADOS

Ele disse que nos anos 90 havia o desenvolvimento da teoria dos regimes internacionais e proliferou uma vasta literatura sobre tratados ambientais, “mas a visão era ingênua, com um superdimensionamento da capacidade de cooperação internacional e do alcance dos tratados”.  Com o tempo, disse, foi se vendo que os tratados tinham muito menos densidade do que se pensava e os componentes anárquicos clássicos do sistema internacional eram mais fortes do que se imaginava no momento otimista da década de 90, no fim da Guerra Fria.

Na sua opinião, não há avanços mais profundos e que poderiam predizer o futuro. “Os estudos existentes são muito mais sobre o perfil de evolução das emissões e de desenvolvimento de tecnologias de baixo carbono nos grandes ‘players’ do sistema.”

O debatedor disse que no nível nacional os trabalhos mais importantes tratam de duas coisas. Uma delas refere-se aos bloqueios da governança e a compartimentalização dos sistemas nacionais. “O caso brasileiro é um extremo disso, os ministérios não se falam ou possuem agendas contraditórias, com retóricas e interesses divergentes, pois são colonizados por diferentes setores da sociedade.”

LONGO PRAZO

A outra questão, menos abordada, segundo Viola, é a dificuldade de internalização por parte da opinião pública de perspectivas de longo prazo: “Isso foi ressaltado na questão das aposentadorias. Com o aumento da perspectiva de vida, as pessoas passaram a ansiar por um período como aposentadas com qualidade de vida. Mas esse é um longo prazo ainda curto em relação aos problemas ambientais”.

Os particularismos foram sobrevalorizados nas democracias, ficando o universalismo muito baseado no bem público, na opinião do pesquisador. “Os EUA seguiram muito nessa direção, ao passo que outras sociedades conseguiram evitar essa tendência, regimes parlamentares com uma lógica diferente, com uma cultura de promoção do pensamento em longo prazo, como a Alemanha, países escandinavos e, depois, por outras razões, Japão e Holanda.”

Viola comentou também os problemas locais. Disse que “não há uma lei que estabeleça que sociedades com maior centralização produzam maior qualidade ambiental ou que sociedades com mais descentralização os produzam. “Nos EUA, por exemplo, a descentralização oferece maior qualidade de enfrentamento de políticas públicas em alguns estados e em outros não. Lá, o forte peso do local é muito bom para a governança ambiental, o princípio da sociabilidade predomina e o local predomina sobre o nacional. Mas, na verdade, isso é muito bom para a California, para Massachusetts, Washington, Oregon, mas não para o Mississipi, Misouri ou Lousiana, onde um estado mais unitário seria mais favorável, pois esses estados possuem padrões de política ambientais e de percepção de problemas ambientais muito abaixo da média americana.”

PÓS-SOBERANISMO

Para Viola, em relação à governança internacional e a nacional, o conceito fundamental que foi desenvolvimento foi o de transição do soberanismo para o pós-soberanismo: “As sociedades com democracias de alta qualidade têm capacidade de avançar para o pós-soberanismo. Há pesquisas que identificam as mentalidades mais orientadas para o pós-soberanismo e não é segredo que quem está na frente são os países da Escandinávia”. Ele disse que esse é um ponto fundamental para a pesquisa em governança e mudanças ambientais globais, mas “há pouca pesquisa empírica no Brasil sobre isso”.

Maurício Vieira Kritz, pesquisador do Laboratório Nacional de Computação Científica, enviou pergunta à Heide via internet. No seu entender, um dos problemas com os estudos interdisciplinares é o fato de que na realidade não há pesquisadores com as mesmas visões de um tema ou agenda, mesmo entre aqueles de mesma formação e interessados num empreendimento específico. Ele quis saber de Helde como esse fato afeta os estudos ambientais em geral e o engajamento dos cientistas sociais.

Em resposta, Heide comentou que há novos processos a serem reforçados para reunir as ciências naturais e as ciências sociais: “Os pesquisadores precisam ser apoiados e demora um tempo para que surjam relações de confiança. E isso afeta não só os estudos ambientais, mas as pesquisas em todos os desafios globais que requerem equipes e metodologias interdisciplinares”.

Acrescentou que agora buscam-se pesquisas transdisciplinares, novos níveis de interação, inclusive com a participação de não acadêmicos no processo de produção de conhecimento. Também nesses casos “há relações de poder e confiança a serem estabelecidas e, novamente, processos complexos que precisam de interações e certo nível de habilidade para lidar com ele que os pesquisadores de um modo geral ainda não possuem”.

DIÁLOGO

Complementando a resposta de Heide, Jabobi disse que na pesquisa interdisciplinar ou na transdisciplinar um dos caminhos importantes é abrir-se para ouvir o outro, ampliar o espaço de diálogo: “Verificar como é possível começar a fazer perguntas juntos e utilizar o tipo de pergunta que de alguma forma repeite a diversidade e a complexidade das questões”.

Para ele, há muita discussão a respeito da palavra governança por muitos cientistas sociais, “como se ela fosse associável apenas a uma visão de órgãos internacionais da área de relações internacionais”. Comentou que antes, na área ambiental, utilizava-se o conceito de gestão, o qual, em sua opinião, encerra um componente técnico, fundamentalmente operacional, “ao passo que o de governança, tomando-se por bases argumentos das relações internacionais e da sociologia econômica, introduz a dimensão de vários atores num processo que se espera possa ser o mais democrático possível”.

Jacobi disse que o importante na questão da governança sobre os temas mais estratégicos da área ambiental é que os atores públicos e privados e os agentes econômicos negociem consensos permanentemente e “as soluções não sejam de soma zero”.

Foto: Sandra Codo/IEA-USP