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O nacionalismo identitário em foco

por Flávia Dourado - publicado 15/07/2015 13:55 - última modificação 01/02/2016 10:55

Debate realizado pelo Laboratório Megatendências Globais e Desafios à Democracia do IEA discutiu as implicações do nacionalismo identitário na Europa, no Oriente Médio e no Brasil.
Álvaro Vasconcelos
O cientista político Álvaro Vasconcelos
fala sobre o nacionalismo identitário na Europa

Após 30 anos de avanço da democracia no mundo, o futuro do regime político está ameaçado pela emergência do que vem sendo definido como "nacionalismo identitário", segundo a avaliação do cientista político português Álvaro Vasconcelos, professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. Ele falou sobre o tema no debate O Desafio do Nacionalismo Identitário, realizado pelo IEA no dia 24 de junho.

De acordo com Vasconcelos, o número de países democráticos aumentou nas últimas décadas no fluxo da "terceira onda democrática" — fenômeno iniciado na Europa nos anos 1970, quando a democracia foi instituída em Portugal, Espanha e Grécia; que atingiu a América Latina na década de 1980, com o fim das ditaduras militares; chegou à Europa Central e Leste nos anos 1990; e finalmente varreu o Oriente Médio e o norte da África em 2011, num movimento revolucionário conhecido como "Primavera Árabe".

Diante do alcance e longevidade dessa onda, afirmou o professor, acreditava-se que a democracia continuaria a se expandir para outras regiões do globo. "Mas constatamos que há um freio na onda, como se ela tivesse travado a partir dos anos 2000", disse, lembrando que a Primavera Árabe não culminou numa transição democrática plena nos países que integraram a revolução.

O cientista político citou o estudo conduzido por Larry Diamonds no Centro de Democracia, Desenvolvimento e Estado de Direito da University of Stanford, Estados Unidos, o qual concluiu que desde os anos 2000 tem havido um retrocesso da democracia no mundo: nos últimos 15 anos, 25 países deixaram de ser democráticos em função de golpes de estado ou recuaram em relação aos princípios que regem o regime político, como é o caso da Turquia.

"Será que a democracia vai continuar a se espalhar ou entramos num período de crise e vamos assistir a outros retrocessos no processo democrático?", indagou Vasconcelos. Em busca de respostas para esta questão, um grupo de pesquisa do IRI, liderado pelo professor, identificou três megatendências globais que ditarão o futuro da democracia:

  • Emergência do nacionalismo identitário num cenário marcado por trânsitos migratórios cada vez mais intensos e pelo avanço do multiculturalismo.
  • Empoderamento dos cidadãos, resultado da progressiva redução da pobreza e do consequente crescimento de uma nova classe média global; da emancipação das mulheres; da melhoria dos índices de educação; e do acesso às tecnologias da informação.
  • Difusão do poder do estado para instituições não estatais, sobretudo para grandes grupos econômicos, a qual vem acompanhada da fragilização dos estados e da redução do poder dos governos.


Organizado em parceria com o IRI no âmbito do Laboratório Megatendências Globais e Desafios à Democracia do IEA, o debate inaugurou um ciclo de três encontros, cada um relacionado com uma das megatendências identificadas pelo grupo. Os próximos serão sobre O Desafio do Financiamento das Campanhas Eleitorais e O Desafio da Democracia Participativa.

Neste primeiro encontro, os expositores foram Arlene Clemesha, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP; e de Leandro Karnal, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp; além de Vasconcelos.

Origens europeias

Após introduzir a temática geral do ciclo de debates com uma exposição sobre Tendências Mundiais e Desafios à Democracia, Vasconcelos, que é fundador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI) de Lisboa, Portugal, entrou no tema específico do primeiro encontro ao falar sobre o Desafio do Nacionalismo Identitário na Europa.

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O cientista político destacou que os partidos de extrema direita vêm ganhando cada vez mais espaço no continente europeu e impulsionando o recrudescimento do nacionalismo identitário, definido por ele como a "afirmação da superioridade da sua nação ou da sua comunidade em nome de uma determinada identidade exclusiva, seja rácica, cultural, religiosa ou civilizacional, que estaria ameaçada".

De acordo com ele, os partidos nacionalistas crescem em toda Europa, mostrando-se mais fortes na Itália, França, Grécia e nos países nórdicos, onde são os segundos mais votados. "Isso prova — observou — que o fenômeno não está ligado à estrutura social e econômica e não tem a ver com a crise financeira na Europa do Sul, pois no Norte há a mesma tendência."

Defensores de políticas de identidade excludentes e fomentadores de correntes xenófobas contrárias à imigração, esses partidos apresentam duas características centrais em comum: a islamofobia e o anti-multiculturalismo.

A islamofobia surge sobretudo de um olhar essencialista sobre o Islã, apontou o cientista político, lembrando que não se trata de um pensamento meramente popular, mas calcado em explicações eruditas fornecidas por intelectuais, os quais justificam a perspectiva islamofóbica com base numa alegada contradição fundamental entre Islã e democracia, Islã e razão.

O antimulticulturalismo, por sua vez, vem acompanhado do sentimento antiglobalização vinculado ao "nacionalismo branco". Segundo Vasconcelos, essa corrente vê o multiculturalismo como uma ameaça a uma identidade dita superior.

Para ele, as correntes anti-imigração que estão na origem tanto da islamofobia quanto do antimulticulturalismo não são fruto da crise europeia, uma vez que floresceram durante o período de crescimento econômico da Europa, sobretudo a partir da difusão da ideia de que "os imigrantes fazem muitos filhos e levarão a uma invasão dos pobres na Europa".

Além disso, advertiu, essas políticas identitárias não são exclusividade da direita. A islamofobia, por exemplo, também aparece como bandeira de partidos de esquerda, que veem o Islã como uma ameaça ao Estado laico e como sinônimo de violência, como vem acontecendo da França.

Ecos no Oriente Médio

Arlene Clemesha
Arlene Clemesha discute o desafio
do nacionalismo identitário no Oriente Médio

Ao falar sobre O Desafio do Nacionalismo Identitário no Oriente Médio, Clemesha se ateve sobretudo à emergência do Estado Islâmico no Iraque e na Síria (Isis, na sigla em inglês) — grupo fundamentalista e violento, cuja atuação estaria fomentando a islamofobia em todo o mundo.

De acordo com ela, o surgimento do Isis está ligado ao crescimento do nacionalismo identitário no Oriente Médio e à queda de expectativa em relação à Primavera Árabe. Na sua avaliação, o movimento revolucionário que irrompeu em 2011 deu origem a uma competição de narrativas explanatórias: para uns, seria uma nova fase da onda democrática, como ressaltou Vasconcelos; para outros, seria a continuação da Revolução Islâmica de 1979 no Irã, sendo o Isis o principal ator dessa continuidade.

Para analisar a questão, Clemesha recorreu à tipificação dos grupos islamitas:

  • Reformistas: aspiram ao estabelecimento de um estado islâmico a longo prazo a partir de práticas eleitorais e democráticas, conduzidas dentro do arcabouço constitucional existente e sem uso da violência;
  • Radicais: visam a gerar insurreições que levem à tomada do poder e, para isso, recorrem a métodos violentos, os quais incluem terrorismo contra agentes do Estado.
  • Pós-islamistas: defensores da laicidade, ascendem no período pós-Revolução Islâmica com a proposta de separação entre igreja e estado.

Para a professora, há dois problemas com a associação entre o Isis e a Revolução Islâmica. O primeiro é que o movimento revolucionário não era na sua origem islâmico, isto é, não tinha por objetivo a constituição de um estado teocrático. O segundo é que a revolução deu lugar a um contexto de contestação interna próprio ao pós-islamismo, marcado pela defesa do estado laico.

Clemesha criticou a cobertura da imprensa relacionada ao Isis, sobretudo por se referir ao grupo como se este incorporasse a essência do Islã. "O Isis não representa o islamismo e nem fala em nome dele", advertiu.

Ela ponderou que, embora se coloque como resgate e renascimento do Estado Islâmico, o Isis diverge das características históricas do islamismo majoritário por seu alinhamento com o "milenarismo apocalíptico e pela não-aceitação de qualquer alteridade e diversidade". Prova disso, afirmou, é que o Isis não se encaixa em nenhum dos grupos islamitas e se diferencia até mesmo da Al Qaeda, uma vez que assume uma postura sectária anti-xiita.

Além da atuação do Isis, ela apontou o discurso do governo israelense em relação aos países muçulmanos como responsável pela recrudescimento da islamofobia. "A origem disso está na tendência a diferenciar o mundo e buscar identificação rápida, fácil e excludente", disse, lembrando que a estrutura desse discurso é muito parecida com a do nazismo.

Identidade brasileira

Numa exposição sobre Tendências Identitárias no Brasil, Karnal destacou a ausência de uma identidade genuinamente nacional que defina o país ou o povo brasileiro. "Ter ou não ter identidade não é uma virtude ou defeito que devamos resolver com o nacionalismo", ressaltou.

Leandro Karnal
O historiador Leandro Karnal
durante sua exposição sobre a identidade brasileira

De acordo com o historiador, a noção de identidade trata-se de um projeto político essencialmente europeu associado ao nacionalismo do século 19. Projeto este, ressaltou, que está na base do chauvinismo francês, do pan-eslavismo, do pangermanismo, do nazismo, e que "resultou, no século 20, numa das maiores tragédias que a humanidade já experimentou".

Na avaliação dele, é pelo menos curioso que o papel da identidade esteja ressurgindo numa época de globalização, marcada pela diluição das identidades. "Como o Brasil constrói um conceito de identidade exatamente no momento em que uma parte da Europa está desconstruindo e outra parte está construindo a partir da ideia de xenofobia?".

Em função desse contexto, advertiu, as discussões sobre a questão da identidade devem se voltar para uma pergunta que escapa a muitos: a quem o coletivo nacional representado serve? "Considerando o século 20, ele é ressuscitado essencialmente pelo pensamento conservador, ou seja, é a direita que ressuscita a ideia de nação", enfatizou.

Para ele, como a identidade brasileira geralmente é representada por uma elite letrada tradicionalmente reacionária, há uma falta de comunicação entre quem representa a identidade nacional — "produtores de jornais, elaboradores de revistas, coordenadores de programas de TV" — e quem é o país de verdade.

Como exemplo desse desencontro, Karnal citou o truísmo repetido reiteradamente por "uma elite que se considera intérprete da nação: o povo não sabe votar". De acordo com ele, esse axioma vem acompanhado de outros dois, igualmente preconceituosos: "eu não sou povo" e "eu sei votar". A ideia final disseminada por esses intelectuais, destacou, é a de que não pertencem a essa nação.

O historiador concluiu sua fala com uma reflexão proposta pelo antropólogo Marshall Sahlins: Por que a abertura de um McDonald's na Sicília, Itália, suscita a ideia de que os sicilianos estão perdendo sua identidade, mas a existência de 10 mil restaurantes italianos em Nova Iorque não representa uma ameaça à identidade americana?

Da mesma forma, comparou Karnal, por que o costume de fantasiar as crianças brasileiras brancas com penas e plumas no dia do índio, 9 de abril, é visto como uma homenagem aos nativos, mas quando crianças indígenas vestem calças jeans, logo se pensa em aculturação e perda da identidade?

"Qual é a base desse pensamento? Eu continuo achando que a cultura branca, ocidental, cristã na sua forma dominante, é uma cultura tão dominante que nada pode arranhá-la. E o multiculturalismo deixa então de ser um risco para essa cultura", finalizou.

Debate

Mediados por Martin Grossmann, diretor do IEA, quatro debatedores comentaram as exposições de Vasconcelos, Clemesha e Karnal a partir de suas áreas de expertise: o economista Marcelo Neri, ministro chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República; a psicóloga Sylvia Dantas, coordenadora do Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do IEA; o sociólogo Félix Sánchez, professor da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP; e Geraldo Campos, professor do curso de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Neri concentrou-se na realidade brasileira ao apontar três grandes características definidoras da identidade nacional. De acordo com ele, apesar dos avanços em termos de redistribuição de renda observados no Brasil desde 2001, a desigualdade continua sendo uma das principais marcas do país.

A segunda marca seria a diversidade, a qual comparou com um caldeirão, onde raças e culturas se misturam. "O Brasil é um país diverso, mas cheio de contradições. A proporção de pessoas que se auto declaram negras vinha caindo desde 1940, mas a tendência se inverteu. Algo acontece na sociedade e na psicologia brasileira", frisou.

A terceira marca seria o que Neri definiu como a "bipolaridade" que contrapõe de forma radical esquerda e direita no país. "As pesquisas mostram uma certa queda na desigualdade. Isso moveu placas tectônicas que geraram terremotos", disse.

Público
Os debatedores Marcelo Neri, Sylvia Dantas, Geraldo Campos e Félix Sánchez fazem suas considerações

Dantas priorizou os vínculos entre migrações, interculturalidade e nacionalismo identitário. Para ela, os problemas ligados à questão da identidade surgem porque o ser humano recorre à estereotipação como forma de lidar com o medo do que é diferente ou desconhecido. O estereótipo, explicou, proporciona certo conforto psicológico em relação ao outro, que é visto como ameaça: "Oferece uma solução supérflua, que traz a ideia de pertencimento, de fraternidade, uma proteção a todas as angústias e frustrações da vida".

Já Ruiz trouxe uma nova perspectiva para o debate ao falar sobre o nacionalismo identitário no contexto da América Latina, com foco nas transformações pelas quais o continente passou desde 1999, quando Hugo Chávez foi eleito presidente da Venezuela.

Segundo o sociólogo, a eleição de Chávez foi o ponto de partida para uma maré de mudanças em diversos países latino-americanos, entre as quais se destacam a vitória de Evo Morales, indígena envolvido com plantio de coca, na Bolívia; e de Rafael Correa, que chega ao governo equatoriano apoiado por movimentos indígenas. Ruiz citou, ainda, Uruguai, Brasil e Argentina como países que sofreram uma guinada à esquerda.

As mudanças observadas nessas nações, destacou, fez crescer "a ideia de que estamos sob o tempo de invasão dos pobres na política". Para ele, isso "reporta a uma tradição secular, diria milenar, de exclusão de uma parcela muito extensa da sociedade".

Campos, por sua vez, tratou da temática geral do debate. Ele deu início à sua fala questionando o próprio conceito de nacionalismo identitário. "Existe algum nacionalismo que não é identitário? Todo nacionalismo é identitário", afirmou.

De acordo com ele, o pleonasmo é sintoma de dois fenômenos que se colocam como um desafio à democracia: a criação de dispositivos específicos de produção de subjetividades baseadas na pureza e a questão territorial, que readquire centralidade no debate político.

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP