Muniz Sodré toma posse com conferência sobre o povo brasileiro
Para o sociólogo Muniz Sodré, o campo temático da Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade (parceria entre o IEA e a Folha de S.Paulo) aponta para questões globais que são "particularmente essenciais" à vida brasileira. "Em todas elas ressoa a questão da identidade, da dificuldade que temos em dizer o que somos como povo e nação", afirmou em sua conferência de posse como primeiro titular da cáteda, em cerimônia online realizada no dia 22 de setembro.
Participaram da cerimônia o coordenador acadêmico da cátedra, André Chaves de Melo Silva, o diretor do IEA, Guilherme Ary Plonski, o publisher da Folha de S.Paulo, Luiz Frias (irmão de Otavio Frias Filho), o titular da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica, Naomar de Almeida Filho, que saudou Sodré, e reitor da USP, Vahan Agopyan.
Simulação de povo
Em sua exposição, que chamou de "Sobre o Povo Brasileiro", Sodré disse que um grande problema para a tarefa de definir a identidade do povo brasileiro é contornar as várias simulações históricas do que seja o povo no país. Sua opção foi iniciar com uma análise da representação dos brasileiros em pinturas históricas conhecidas do século 19, como o retrato da aclamação de D. João 6º como monarca, pintado por Jean-Baptiste Debret, e o "Independência do Brasil", de Pedro Américo. Não há povo nas obras, mas uma "simulação da massa populacional significativa no contexto sócio-histórico do Brasil".
'Um intelectual negro moderno'Na saudação a Muniz Sodré, o professor visitante do IEA Naomar de Almeida Filho fez uma breve apresentação da carreira acadêmica e da atuação anterior como jornalista de Sodré, que se define, segundo Almeida Filho, como um "intelectual negro moderno". Em seguida, detalhou as três vertentes que caracterizam a contribuição intelectual de Sodré: o campo geral de teoria da comunicação e teorias da mídia; a questão da cultura afro no Brasil; e as epistemologias da transversalidade. Como resultados da primeira vertente, ele destacou um dos primeiros livros de Sodré, “A Comunicação do Grotesco – Introdução à Cultura de Massa Brasileira”, de 1972, que “rapidamente tornou-se um clássico da literatura nacional sobre teoria da comunicação”, além de “A Máquina de Narciso” (1992), “A Verdade Seduzida por um Conceito de Cultura no Brasil”, de 1994, e “Antropológica do Espelho – Uma Teoria da Comunicação Linear e em Rede”, de 2002. Almeida Filho disse ter um apreço especial por uma obra mais recente de Sodré, as “Estratégias Sensíveis: Afeto, Mídia e Política”, de 2006. “É uma transição para uma abordagem conceitual crítica do problema do conhecimento e seus atravessamentos e confrontações com outros saberes no contexto do multiculturalismo contemporâneo.” Ele afirmou que, para Sodré, no plano do sensível, o que impede o outro de se aproximar e se abrir para o afeto, aparecendo como uma barreira demarcadora das diferenças e desigualdades, é o racismo. Na vertente de estudos sobre antirracismo, etnicidades, política e identidade, Almeida Filho citou “a pioneira abordagem socioantropológica ‘O Terreiro e a Cidade: A Forma Social Negro-Brasileira’”, de 1988, e o livro “Claros e Escuros: Identidade, Povo, Mídia e Cotas no Brasil”, de 1999, “decisivo para a emergência de políticas de ações afirmativas nas conservadoras universidades públicas brasileiras”. Sodré realiza uma vigorosa e rigorosa crítica aos racismos estrutural e sistêmico da sociedade patriarcal brasileira, disse. “Para ele, o racismo é um mal-estar de todos os seres humanos, não só um problema para o Ocidente cristão, mas sobretudo um mal-estar civilizatório. Nessa vertente, defende a prioridade do ethnos sobre o demos, que considera o foco crucial de uma construção imaginária de uma sociedade política no sentido europeu, cosmopolita e urbano.” Almeida Filho tratou com mais detalhes da vertente do pensamento de Sodré que ele considera dedicada às epistemologias de transversalidade, que “parte de uma categoria operativa: a noção de estratégias sensíveis” (do livro de 2006) e prossegue com “A Narração do Fato: Notas para uma Teoria do Acontecimento”, de 2009, e “A Ciência do Comum: Notas para o Método Comunicacional”, em 2014. Nessas obras, Sodré “recompõe suas fontes teóricas com a teoria da comunicação, respondendo ao desafio de dotá-la de estatuto epistemológico enquanto campo científico”, afirmou Almeida Filho. “Sodré demonstra um fôlego analítico impressionante e um voraz apetite crítico”, preparando-se para “mastigar e digerir a nata gorda e grossa de pensadores eurocêntricos herdeiros de Kant”. A posição epistemológica de Sodré parte da comunicação como “a ciência do século 21, um novo mutante dentro das ciências sociais que aglutina e articula várias outras disciplinas do pensamento social, como antropologia, sociologia, psicologia social, geografia e a ecologia”, disse. A maturidade e robustez da proposta teórica de Sodré se revela no par de livros que completam essa vertente, segundo Almeida Filho. O primeiro, “Reinventando a Educação: Diversidade, Descolonização e Redes”, de 2012, no qual “Sodré nos leva a pensar, na esfera da educação e da pedagogia, uma possibilidade de recriação do vínculo social, sensibilizando da criança ao adulto para a questão da diferença, tanto no plano cognitivo quanto no plano afetivo.” No segundo livro, “Pensar Nagô”, de 2017, “Nietsche, Rancière e Foucault são postos em contraste com filosofias orientais e com as inquietações das epistemologias do Sul, com foco para o que Sodré chama de filosofia negra”. Todavia, “os poderes da organização econômica capitalista, as desídias das necropolíticas do ultraneoliberalismo e as racionalidades dos signos eurocentrados não precisam ser renegados, mas sim deglutidos e regurgitados”, afirmou. Essa é a razão de valer a pena buscar analogias do grego ao nagô, “linhagens arcaicas que se tocam e se renovam”, disse Almeida Filho. “A tese principal dessa intrigante obra é que o pensamento nagô, alegoricamente tomado como ilustração das cosmologias africanas e ameríndias, supera o imperativo da ordem linear cartesiana e o vacilo conflitivo da dialética hegeliana, simplesmente assumindo que a contradição não precisa necessariamente de síntese. Uma diferença não precisa gerar uma disputa destrutiva que só se realiza com a derrota de um competidor.” |
Mesmo em textos jornalísticos e literários, artigos e relatórios para o governo, a massa empobrecida aparece no final do século 19 e início do seguinte principalmente nas relações com suas habitações, disse Sodré. "São casas de cômodos, estalagens, cortiços e, mais tarde, favelas, habitações definidas como focos de decadência social e epidemias."
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"Se tornou imperativo para setores profissionais e intelectuais das elites dirigentes atacar por escrito e por atos urbanísticos o que se descrevia como inerente à população ou à plebe, ao mesmo tempo em que se investia nas simulações quando se tratava de representar por imagens", afirmou.
Para ele, no entanto, essa simulação está no âmago do próprio conceito de povo: "Uma realidade apenas suposta, que só existe quando politicamente inventada". Trata-se de uma "miragem coletiva, com a consistência e a durabilidade das condições político-sociais que a produziram", disse.
Um número indeterminado de pessoas numa região é uma massa, "uma figuração pré-política e alheia a qualquer pretensão de verdade do espaço e da representação". Sodré citou o sociólogo Irving Louis Horowitz (1929-2012) para esclarecer que as massas são compostas de pessoas excluídas da tomada de decisões em política, excluídas da propriedade ou da participação gerencial em negócios ou indústria, não participantes em instituições educacionais e aquelas pessoas deixadas fora do processo de poder.
Ideia de nação
Segundo Sodré, uma concepção espacial de uma população representativa tem a sua matriz na ideia de nação, que é "politicamente indeterminada, embora intelectualmente apreensível como uma comunidade relativamente estável em termos territoriais, históricos, culturais e psicológicos".
No âmbito da ideologia republicana, "o que sempre produziu efeitos políticos é a ficção de povo", afirmou. No entanto, essa ficção de uma suposta unidade política apresenta um problema conceitual: "A ideia de povo não tem a transparência que se pretende à primeira vista. Ela também pertence, assim como a de nação, ao âmbito amplo do conceito de identidade coletiva, mas comporta diferenças socialmente hierárquicas, pois populus referia-se aos romanos investidos de poder político e jurídico - o patriciado -, distintos de plebs, que era a gente comum, sem os privilégios cívicos".
Na Grécia Antiga, porém, "o aglomerado genérico de colonos ou ocupantes de uma região era ethnos, ou seja, uma identificação coletiva a partir de fontes que são também critérios de pertencimento comunitário", disse.
Para ele, as fontes arcaicas, simbólicas e religiosas são "as mais duráveis, as menos 'escolhidas', indicativas da consciência que tem um grupo humano de diferenciar-se de outro em função de costumes, língua, crenças etc.".
Demos x ethnos
A modernidade ocidental fez uma distinção, com povo sendo identificado com gente concebida como demos, não como ethnos, afirmou. "Trata-se de um princípio político que transforma a população - gente amontoada ou agregada - em sujeito de uma soberania ou de uma determinada autonomia em relação ao poder do Estado."
De acordo com Sodré, o poder estatal consegue perpetuar-se graças ao mito de potência que se constitui ao redor do povo, visto como uma essência de liberdade garantida por leis e direitos. "Como conceito europeu, é um produto da filosofia moral do Iluminismo. Associar povo a nação foi uma estratégia de desenvolvimento e consolidação do poder do Estado liberal."
Povo é então uma construção sociopolítica que procura "naturalizar por meio de narrativas e mitos a vinculação entre o agente social e sua parte ativa na Polis", comentou. "Esta é a ficção básica que legitima as eleições nas democracias parlamentares."
Do ponto de vista político-antropológico, a moderna prevalência de demos sobre ethnos está associada ao conceito de humanidade, que é exclusivamente ocidental e com origem no Renascimento, época em que se intensifica a ação dominadora dos europeus sobre os outros povos numa escala planetária, disse.
A partir dos padrões hierárquicos, religiosos e até mesmo filosóficos, o humano definiu-se de dentro para fora, renegando a alteridade e estabelecendo que o outro não tem plenitude racional, logo, seria ontologicamente inferior ao humano ocidental, segundo Sodré.
Exemplo disso são as "feiras antropológicas, uma espécie de parque temático de pessoas e costumes tidos como exóticos", realizadas na Europa na segunda metade do século 19 e primeiras décadas do século 20. "Nelas, se produzia como entretenimento o espetáculo racista da diferença entre demos e ethnos."
Segundo o catedrático, para determinadas elites dirigentes, em determinados momentos de histórias específicas, "é estratégico desenhar um perfil identitário valorizado e, ao mesmo tempo, manter nos lugares dominados outras formas autóctones de subjetivação".
Diáspora africana
Apesar disso, "ressoa ainda hoje entre nós a frase do abolicionista Joaquim Nabuco: 'Os negros deram um povo ao Brasil'", ressaltou. Para Sodré, essa frase se refere a outro perfil identitário, outro padrão civilizatório, que chegou aqui com a diáspora escrava. "Nesse caso, povo não tem o mesmo sentido gerido pelo liberalismo europeu, pois se dispõe a ser entendido como identidade civilizatória."
"Isso permite assinalar a presença na história nacional de um 'povo' diaspórico, correspondente a um paradigma civilizatório distante do modelo europeu. Esse paradigma é propriamente africano, compartilhado no Brasil por bantos e nagôs."
Sodré duvida se essa movimentação humana constituiria um demos. Para ele esse "povo" não remete à ideia europeia de uma unidade politicamente conformada, mas à unicidade de um "acontecimento" (a diáspora escrava) regida por uma disposição estruturante, uma origem que "reorienta extraordinariamente a subjetividade".
Para ele, esse "acontecimento" afro-brasileiro atesta a possibilidade de povos (formas diversas de subjetivação coletiva) num mesmo território nacional: "Há os negros, os indígenas, os camponeses, os ribeirinhos, os caboclos, os brancos".
Sodré considera que no interior das simulações de povos ("forjadas pela incapacidade das burocracias dirigentes de apreenderem a realidade histórica dos povos nacionais") surgem e se desdobram os populismos de diversos tipos.
"O populismo é o filho do totalitarismo de tipo fascista que arma doutrinariamente a ideia de 'concessões' populares. É também primo-irmão do nacionalismo vesgo - o nacionalismo que se esgota na entoação do hino, na procissão de bandeiras e na entronização das fobias a tudo que seja 'outro'."
Midiatização
A ideia política de povo se esvanece na mídia contemporânea, de acordo com Sodré, pois a midiatização da vida social "coincide com o momento histórico do enfraquecimento do liberalismo político e do trânsito da ideia liberal de povo em favor de uma nebulosa massa populacional, estatisticamente redefinida e fixada pelo mercado ampliado".
Esvaziado de sua historicidade política, "presta-se a classificações diversas e fluidas, que variam desde acepções outrora atribuídas ao lumpemproletariado até a identificação de uma nova fração de 'classe média', à margem dos mecanismos institucionais de representação".
Se antes, o povo era uma fabricação do fenômeno político clássico, "a massa consumidora é hoje uma fabricação do social midiatizado", afirmou.
"A massa contemporânea não é um sujeito nem um objeto político, mas simples efeito de simulação, tal como o povo nas históricas representações pictóricas do passado. Isto não quer dizer que os algoritmos hoje responsáveis pela simulação deixem de inscrever a discriminação racial: já se investiga o 'racismo algoritmo'. Mas isso não quer dizer que, em sua eventual presença convulsiva nas ruas, esteja vedado às massas tornarem-se, politicamente, povo", concluiu Sodré.
Foto: Mauro Bellesa/IEA-USP