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A transcendência e a incorporação do tempo pela arte

por Mauro Bellesa - publicado 08/06/2016 12:50 - última modificação 22/06/2016 10:29

O "Workshop sobre Arte" da Intercontinental Academia, realizado no dia 19 de abril, teve a participação do escultor e pesquisador o escultor Satoru Kitago e do pesquisador de economia da cultura Akitoshi Edagawa, ambos da Universidade de Artes de Tóquio.
Satoro Kitago e Akitoshi Edagawa
O escultor e pesquisador Satoru Kitago (à esq.) e o
especialista em economia da cultura Akitoshi
Edagawa, ambos da Universidade de Artes de Tóquio

Além da programação dedicada às ciências naturais, a Fase Nagoya da Intercontinental Academia também teve um workshop sobre artes, no dia 15 de março. Os expositores foram dois integrantes da Universidade de Artes de Tóquio: Akitoshi Edagawa, especialista em economia da cultura e professor de estudos de arte global e práticas curatoriais, e Satoru Kitago, escultor e diretor de pesquisa.

Em sua exposição, Edagawa comentou as relações do ato artístico com a transcendência do tempo, o papel comunicativo da arte e a diferença entre arte e ciência.

Ele fez uma distinção - em relação ao tempo - entre as artes performáticas (performances, happenings e apresentações de música, dança e teatro) e aquelas chamadas de fine arts em inglês (pintura, gravura, desenho, escultura, fotografia, entre outras), que correspondem, grosso modo, às artes visuais, na terminologia em português.

Para Edagawa, as artes performáticas podem ser chamadas de artes do tempo, pois o artista e a audiência estão em contato direto no decorrer do ato artístico, ao passo que nas fine arts o público tem contato com o trabalho artístico em momento posterior à sua execução.

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Mas mesmo a música - considerada no aspecto da composição - transcende o tempo, graças à notação musical, ainda que as futuras execuções de uma peça possam se diferenciar das intenções originais do compositor, pois “muitas ideias são incorporadas pelos intérpretes e repassadas a gerações seguintes”, destacou o pesquisador.

"Izanagi e Izanami" (2012), de Satoru Kitago
"Izanagi e Izanami" (2012), de Satoru Kitago

Ele também ressalvou que deve ser considerada a relativa transcendência do tempo de aspectos das artes performáticas possibilitada pelos recursos tecnológicos de gravação de imagem e áudio.

Diferenças culturais

A transcendência do tempo se manifesta de forma diferente nas tradições artísticas do Ocidente e do Oriente. No Ocidente, obras e procedimentos artísticos são transmitidos no tempo por meio de textos, notações e outros recursos, o que não é comum no Oriente, segundo Edagawa, que citou como exemplo o conjunto de artes tradicionais japonesas chamado gei-do, onde não há registros e os novos praticantes aprendem a executá-las com quem as domina.

Uma obra de arte incorpora aspectos da época em que foi produzida, mas é interpretada e apreciada no futuro a partir de uma nova sensibilidade, afirmou o pesquisador. Essa é a razão, segundo ele, para o fato de que às vezes uma obra de arte do passado seja considerada melhor do que uma obra do presente, o que não acontece na ciência, "pois acredita-se que ela progrida qualitativamente no decorrer do tempo".

Ele comentou que o poeta e filósofo inglês William Hazlitt (1778-1830), ao tratar dessa diferença há duzentos anos, disse que os estudos científicos evoluem, mas a arte não. Edagawa considera, entretanto, que a arte pode se tornar mais sofisticada no decorrer do tempo por meio da incorporação de recursos científicos e tecnológicos.

Incorporação do tempo

Melencolia 1
"Melancolia 1", de Albrecht Dürer

Para Kitago, cada obra de arte conta uma estória por meio de situações espaciais e temporais, expressando assim sua ligação com o passado, o presente e o futuro. “Além disso, quando apresentada a públicos de diferentes lugares e épocas, dá origem a novas estórias elaboradas a partir das experiências dos observadores.”

Ele ilustrou sua exposição com imagens de trabalhos seus, do pintor e gravurista alemão Albrecht Dürer (1471-1528), do escultor e pintor suíço Alberto Giacometti (1901-1966) e do pintor e escultor espanhol de Antonio López.

De Dürer, mostrou reprodução da gravura “Melancolia 1”. “Nela se vê um cometa no céu, uma forma geométrica e um personagem que manipula um compasso e tem uma expressão melancólica. Curiosamente, artigos científicos recentes informam a descobertas de aminoácidos em cometas. Os aminoácidos são componentes na origem da vida e sua forma cristalográfica é bastante similar à forma presente na gravura. Talvez o personagem dela estivesse pensando no futuro da humanidade e da vida na Terra”.

Kitago relacionou essa interpretação da gravura com sua preocupação, ao produzir esculturas com formas humanas, em expressar "o questionamento sobre de onde as pessoas vieram e para onde vão".

Ainda em relação à gravura de Dürer, mostrou foto de “Cubo” (1934-35), uma das esculturas abstratas de Giacometti: “Ela lembra uma máscara, um rosto e também a forma geométrica presente na obra de Dürer. Acredito que Giacometti estava interessado na gravura ‘Melancolia 1’”.

O exibir fotografia de outra obra de Giacometti, “Mulher Leoni” (1947), Kitago disse que, a exemplo do suíço, procura enfatizar o espaço, a figura humana e a incorporação da passagem do tempo em suas esculturas.

"O Cubo" e "Mulher Leoni", obras de Alberto Giacometti
"O Cubo" (1934-5) e "Mulher Leoni" (1947),
de Alberto Giacometti

Come exemplos de representação explícita da incorporação do tempo em obras de arte, Kitago citou os trabalhos de López. Na escultura “Homem e Mulher” (1968-1994) do artista espanhol, um casal é representado com corpos jovens e cabeças de pessoas envelhecidas. A pintura “Grande Avenida” (1974-1981) mostra as transformações ocorridas numa esquina de Madri durante os anos que levou para pintá-la. A pintura “O Jantar” (1971-1980) exibe as mudanças na face de uma mulher no decorrer dos nove anos em que a obra foi feita.

Kitago disse que o objetivo de ter comentado os trabalhos de López García e de Giacometti em sua exposição foi querer destacar que o trabalho artístico não tem apenas o lado econômico: “Acredito que artistas e pesquisadores não deveriam perseguir apenas aspectos econômicos; o principal objetivo deveria ser tentar expressar e perseguir a realidade. O que digo a meus alunos é que criem esculturas com uma filosofia, para que talvez daqui a cem, duzentos anos, as pessoas continuem a recebam sua mensagem."

Comunicação

Ao comentar a exposição de Kitago, Edagawa disse que "é possível que a mensagem de um artista seja transmitida cem, duzentos anos depois de sua morte, mas a sociedade terá mudado bastante e por isso nem sempre as reais intenções do artista serão compreendidas".

Ele perguntou a opinião de Kitago sobre o trabalho artístico realizado por equipes em estúdios, sob a orientação de um artista principal, como no caso das obras do artista japonês Takashi Murakami, de Rafael e Da Vinci no Renascimento ou da época do surgimento da cultura budista no Japão.

"Homem e Mulher", "Grande Avenida" e "O Jantar", obras de Antonio López
"Homem e Mulher" (1968-94), "Grande Avenida" (1974-81)
e "O Jantar" (1971-80), de Antonio López

Apesar de ser um defensor do trabalho pessoal e manual do artista, Kitago não vê problema na produção em equipe se isso for necessário: "Os trabalhos de grandes dimensões na cultura budista necessariamente tinham de ser feitos dessa forma".

Na ocasião do workshop, aconteciam no Japão exposições de obras de Sandro Boticelli (1445-1510) e Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610). Kitago disse que uma atividade interessante nas duas exposições era tentar descobrir quais trabalhos tinham sido produzidos por eles e quais eram obra de integrantes de seus estúdios.

Edagawa comentou que o discernimento para isso requer uma certa capacitação do público e perguntou a Kitago como os artistas poderiam contribuir para isso. O importante, segundo Kitago, é que a familiaridade com a arte comece na infância: "Não creio que a arte seja algo difícil, mas é preciso interagir com ela desde cedo para adquirir um senso artístico que propicie mais prazer com as obras.”

Martin Grossmann, ex-diretor do IEA e integrante do comitê científico da Intercontinental Academia, disse que as obras de López comentadas por Kitago o lembraram de “O Grande Vidro” (1915-23), “obra que Marcel Duchamp levou um longo tempo para produzir, incorporando nela a passagem do tempo”.

"O Grande Vidro", de Marcel Duchamp
"O Grande Vidro" (1915-23),
de Marcel Duchamp

Segundo Grossmann, Duchamp incorporou o espectador, inclusive o não especialista, ao sistema artístico. “Na arte contemporânea isso é necessário. Precisamos pensar sobre a recepção da arte e como isso afeta o seu sentido”. Ele quis saber a opinião de de Edagawa e Kitago sobre essa questão no contexto japonês.

Kitago concordou com Grossmann sobre a mudança no papel do observador introduzida por Duchamp e disse que a arte tem de estimular o espectador a ter novas expectativas. Para Edagawa, a questão importante na relação artista-espectador é a comunicação: “Ainda que a arte contemporânea não seja sempre explicita ou seja ambígua sobre o que quer expressar, o artista deve fazer um esforço para comunicar seus pensamentos e sua filosofia; é preciso haver a intenção de tentar se comunicar”.

 

 

 

Fotos (a partir do alto): IAR/Universidade de Nagoya;
Satoru Kitago; Reprodução; Fundação Alberto Giacometti (Suíça)
e Fundação Alberto e Annette Giacometti (França);
Antonio López; Museu de Arte da Filadélfia