Pesquisa estuda uso da Copa do Mundo por 3 Brics com o intuito de aumentar sua influência global
Programa Ano Sabático deste ano e, até fevereiro de 2020, desenvolverá o projeto de pesquisa Soft Power: Um olhar sobre a Utilização Estratégica dos Brics ao sediar a Copa do Mundo de Futebol da FIFA - Análise de África do Sul, Brasil e Rússia.
Professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP desde 2013, o educador físico Marco Antonio Bettine iniciou em março uma pesquisa no IEA sobre as dinâmicas geopolíticas envolvidas na escolha de países-sede para a Copa do Mundo da FIFA. Bettine foi um dos selecionados para participar do
Um dos objetivos do pesquisador é entender como a FIFA (Federação Internacional de Futebol) se transformou em uma potência econômica, política e jurídica capaz de reger um bem cultural como o futebol, esporte mais popular e praticado do mundo. Ao mesmo tempo, Bettine pretende construir relações entre a participação de três membros do Brics — grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — como países-sede de Copas do Mundo e variações no soft power dessas nações.
O conceito de soft power que será usado na pesquisa foi desenvolvido pelo cientista político norte-americano Joseph Nye em contraposição ao hard power. Enquanto o hard power prevê a utilização do poderio econômico e bélico de um Estado para influenciar decisões de outro Estado ou corpo político, o soft power, de acordo com a definição de Nye, pressupõe o uso da diplomacia e da cultura como instrumentos de influência. “Exemplos do hard power usado pelo governo estadunidense são as sanções econômicas sobre Cuba e Venezuela e as ações militares no Oriente Médio”, explica Bettine. “O soft power norte-americano, por outro lado, visa atingir outros países através da persuasão, do exemplo e da indústria cinematográfica.”
A análise do pesquisador terá como foco as Copas do Mundo da África do Sul (2010), do Brasil (2014) e da Rússia (2018). Matérias jornalísticas de alguns dos principais veículos de comunicação do mundo, publicadas durante os eventos, serão a fonte de informação principal da pesquisa. Com dados da ferramenta Google Trends, Bettine comparou o número de acessos de oito veículos, sediados em quatro países, para determinar os que seriam analisados. Le Monde, da França, BBC, da Inglaterra e El País, da Espanha, foram os escolhidos por maior adaptação metodológica.
Os veículos brasileiros, russos e sul-africanos não serão considerados na pesquisa, segundo o professor, “porque o objetivo do trabalho é a análise das visões estrangeiras sobre os Brics e quem detém o poder das decisões internacionais no plano político são os jornais estrangeiros”.
Megaeventos esportivos e soft power
Bettine entende que o esporte, por sua indiscutível influência cultural e social, se tornou um poderoso instrumento de soft power. Com isso, organizações como a FIFA e o COI (Comitê Olímpico Internacional) adquiriram uma grande capacidade de persuasão perante os potenciais países-sede de eventos como a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas. Sob a perspectiva dos países, essas competições são comumente vistas como oportunidades de divulgar ao mundo sua cultura, infraestrutura e soberania, além de fortalecer o comércio e o turismo locais. Para o pesquisador, o interesse é mútuo: à FIFA, interessam os ganhos financeiros e o aumento da força política; aos países-sede, interessa o incremento de soft power e influência internacional.
A África do Sul enxergou na competição, mais especificamente, uma oportunidade de se tornar o país representante do pan-africanismo — movimento que busca a emancipação e o desenvolvimento socioeconômico do continente africano —, explica o pesquisador. O Brasil, por sua vez, viu na Copa do Mundo um instrumento para consolidar sua imagem no exterior. Entre outras coisas, o governo brasileiro buscava um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização da Nações Unidas (ONU), participar mais ativamente das relações internacionais e ganhar relevância dentro do BRICS e do Mercosul.
Segundo Bettine, apesar de “surfar uma boa onda internacional” em 2014, o Brasil era visto com descrédito pela imprensa estrangeira, que julgava o país incapaz de realizar um megaevento esportivo. O pesquisador lembra, entretanto, que uma semana após o início dos jogos, os veículos se declararam enganados: sem maiores problemas, o Brasil conduziu a Copa do Mundo de maneira eficiente. Para ele, em termos de soft power, “a Copa foi um sucesso para o Brasil e para o governo de Dilma Rousseff”.
Em um movimento contrário, durante as Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, Bettine ressalta que o país havia passado por um processo de impeachment, tinha um presidente impopular recém-empossado e diversas fragilidades econômicas e sociais, o que prejudicou a imagem do evento no exterior. A clara vulnerabilidade da democracia brasileira fez com que os veículos internacionais dessem maior atenção aos malfeitos praticados durante os Jogos Olímpicos.
“Se o país está bem internamente e tem certa força internacional, é capaz de influenciar os caminhos e escolhas dos meios de comunicação”, explica o pesquisador. “Se está desestabilizado, não tem como criar agendas próprias para divulgação nas mídias internacionais.”
Brics e o legado da Copa
As três últimas Copas do Mundo foram sediadas por países membros do Brics. De acordo com Bettine, isso se deve ao fato de serem, de forma geral, “nações com democracias frágeis, mas com grandes potenciais financeiros e em busca de maior visibilidade internacional”. A fraqueza democrática dos países-sede é, segundo ele, parte fundamental do processo decisório da FIFA: “Jérôme Valcke, ex-secretário geral da FIFA afastado sob acusações de corrupção e má conduta na venda de ingressos das Copas de 2010 e 2014, disse que ‘democracia demais atrapalha a realização da Copa do Mundo’”.
Um dos mecanismos de influência e cooptação usados pela FIFA para convencer os países a sediar a Copa do Mundo é a promessa de reformas estruturais e melhoria da infraestrutura do país, de acordo com o pesquisador. Nos eventos sediados pelos membros do Brics, entretanto, as promessas foram quase integralmente descumpridas. A melhora do IDH regional, do transporte público e no acesso ao saneamento básico foram os principais pactos quebrados. “Brasil e África do Sul são países que continuam tendo problemas de infraestrutura básica, mesmo ao redor dos grandes estádios construídos para os jogos”, ressalta Bettine.
O pesquisador lembra, entretanto, que a partir de 2015 os desmandos da FIFA esbarraram em um ponto de inflexão. Diversos membros do alto escalão da organização passaram a ser julgados e condenados por crimes cometidos durante as Copas da África do Sul e Brasil e nas escolhas de Rússia e Catar como sedes das Copas de 2018 e 2022, respectivamente. As condenações, entretanto, não foram motivadas pelo não cumprimento de promessas feitas nos períodos que antecederam as Copas, ou pelas fraudes nas vendas de ingressos, ou ainda pelos processos de gentrificação influenciados pelos eventos esportivos, mas por tentativas de lavagem de dinheiro em empresas fantasma nos EUA.
Interdisciplinaridade
Segundo o professor, o caráter interdisciplinar do projeto provém da abordagem simultânea de temas como relações internacionais, governança global, influência midiática, cultura brasileira e a importância cultural do futebol. “A pesquisa é interdisciplinar porque trabalha com teorias sociológicas, de relações internacionais, de mídia e de ciência política”, explica.
Para ele, o fundamental da pesquisa é entender como todas essas matérias podem ajudar “a compreender o papel da FIFA, da teoria sociológica e da teoria política de soft power e hard power na passagem da Copa do Mundo pelos Brics”.