Pesquisadora do IEA participa de nova edição de 'Úrsula', obra inaugural da literatura afro-brasileira
Considerado o livro inaugural da literatura afro-brasileira, por dar voz e atuação a personagens negras, o romance "Úrsula", da maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), publicado em 1859, agora tem edição lançada pela Penguin & Companhia das Letras, com meticuloso estabelecimento do texto feito pela historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP em período sabático no IEA.
O romance figura entre as primeiras obras de autoria feminina do país, segundo Maria Helena, também responsável pela introdução do livro. A edição conta ainda com cronologia elaborada pelo historiador Flávio dos Santos Gomes, professor do Instituto de História da UFRJ.
O enredo trata do amor entre Tancredo e Úrsula, "jovens puros e altruístas com as vidas marcadas por perdas e decepções familiares, que se apaixonam tão logo o destino os aproxima, mas se deparam com um empecilho para concretizar seu amor", resume Maria Helena.
Edição
Para não descaracterizar a escrita da autora, o estabelecimento do texto teve o cuidado de mantê-lo o mais próximo possível do original, segundo a historiadora. O texto foi cotejado com o fac-símile da primeira edição e apresenta: atualização da grafia, padronização da pontuação indicativa de falas e pensamentos; correção de erros tipográficos e, eventualmente, gramaticais, como concordância e conjugação verbal. "No mais, seguimos as escolhas da autora, preservando a colocação pronominal, a pontuação, assim como a substituição dos topônimos por asteriscos."
Maria Firmina dos Reis Nascida em São Luís, na então província do Maranhão, em 1825, filha ilegítima de pai negro, Maria Firmina pertencia a família de poucas posses. Tornou-se professora primária aos 22 anos em outra cidade do Maranhão, Guimarães, onde fora morar aos cinco anos. Lecionou até 1881. Um ano antes de deixar o magistério, criou uma sala mista, fato que chocou setores da comunidade local. Morreu na mesma cidade aos 92 anos. Criou onze crianças, entre adotadas e afilhadas, algumas filhas de escravos. Seus outros trabalhos literários são o romance indianista “Gupeva” (1861), o conto abolicionista “A Escrava” e vários poemas, publicados em jornais maranhenses. Participou da antologia poética "Parnaso Maranhense" em 1861 e, dez anos depois, reuniu seus poemas em "Cantos à Beira-Mar". Maria Firmina também compôs músicas (letras e partituras) e escreveu um diário. |
Edições
De acordo com Maria Helena, foi só nos anos 70 do século 20 que o romance e a sua autora começaram a ter visibilidade crescente. Na época, o bibliófilo e colecionador Horácio de Almeida encontrou num lote de livros que comprara um exemplar de "Úrsula".
Com essa redescoberta, foi lançada uma edição fac-similar em 1975, patrocinada pelo governo do Maranhão em comemoração dos 150 anos de nascimento de Maria Firmina. No mesmo ano, o intelectual negro e ativista maranhense José Nascimento Morais Filho publicou o livro "Maria Firmina: Fragmentos de uma Vida", que incluiu minuciosa pesquisa sobre a vida da escritora, as músicas que compôs (letras e partituras) - entre elas, o "Hino à Libertação dos Escravos", de 1888 - e ao "Álbum", compilação de anotações pessoais de Maria Firmina.
"Úrsula" teve outras quatro edições antes da atual: em 1988, por ocasião do Centenário da Abolição, 2004, 2009 (celebrando os 150 anos da primeira edição) e 2017.
Maria Helena: "Firmina foi uma mulher que ultrapassou todas as barreiras raciais, sociais e de gênero" |
Tema de pesquisa
Maria Helena comenta na introdução que em meados dos anos 2000, a autora tornou-se tema de pesquisa nos programas de pós-graduação, "adquirindo novas características e dando início a uma notável tendência ascendente" sobre a obra de Maria Firmina. "Desde então, mais de uma dezena de dissertações e teses, provenientes das áreas de literatura, história, sociologia e estudos culturais, foi escrita."
Os estudos dedicados a "Úrsula" destacam o caráter excepcional da construção narrativa proposta pela romancista, afirma a historiadora. "O fato de a autora ter alçado escravizados a personagens que refletem sobre si mesmos, apresentando uma narrativa de suas vidas opressivas, sempre chamou a atenção. A escritora insuflou neles uma consciência que está ausente nas figuras principais do romance."
Maria Helena ressalta que novas pesquisa e abordagens vêm consolidando um lugar único de Maria Firmina na história e na cultura brasileiras: "O de uma mulher que lucidamente ultrapassou todas as barreiras raciais, sociais e de gênero, mostrando ao mundo que mulheres negras e homens negros têm consciência e agência históricas, sendo capazes de, com suas vozes, desfazer as teias da opressão e do silenciamento gerados pela escravidão e pela exclusão."
Fotos (a partir do alto): Biblioteca Pública de São Luís; Leonor Calasans/IEA-USP