Reformas da Previdência e fiscal são prioridades, afirmam economistas
Seminário alertou sobre o esforço a ser feito para que medidas prioritárias sejam negociadas por toda a sociedade |
A crise econômica que o país atravessa há alguns anos é extremamente grave e vai requerer do próximo governo, setores públicos e privados, instituições e cidadãos a definição de prioridades e a negociação de soluções para que o Brasil se desenvolva e se torne mais justo. "Somos todos parte do problema" e a política terá de ser a guia para um futuro melhor.
Esse diagnóstico sombrio e os caminhos para superação dos desafios econômicos do país foram discutidos no segundo seminário do ciclo Eleições 2018: Propostas para o Brasil, no dia 3 de setembro, realizado no IEA.
Os expositores foram os economistas Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e ex-secretário executivo e, em seguida, de Política Econômica do Ministério da Fazenda (MF), de 2003 a 2009, e Marcos Lisboa, diretor do Insper e também ex-secretário de Política Econômica do MF, de 2003 a 2005.
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Na abertura do encontro, o moderador do seminário, o sociólogo Glauco Arbix, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e um dos coordenadores do Observatório da Inovação e Competitividade (OIC), sediado no IEA, deu o tom da discussão que se seguiu ao destacar algumas das principais dificuldades econômicas do país: "O gasto primário [não inclui juros] cresce mais de 5% ao ano, o PIB está parado, a Previdência tem déficit e há conversas de que o atual governo deixará um déficit 150, 180 ou até 200 bilhões de reais. Talvez esse seja o motivo de a maioria dos candidatos a presidente não falarem muito da economia do país".
Bernard Appy concentrou sua exposição na política fiscal, sua especialidade. Afirmou que no passado o gasto primário crescia 6% ao ano acima da inflação, mas nos últimos três anos não houve crescimento. "Isso é um pouco a cara do Brasil. Do ponto de vista quantitativo, estamos quebrados e o modelo de ajuste é insustentável, mesmo com uma reforma da Previdência."
Ele frisou que a política fiscal também tem o lado distributivo. "Muitos acham que o problema é o fato de temos um sistema tributário regressivo e que daria para resolver o problema de um país com as desigualdades existentes tornando o sistema progressivo." Não é bem assim, explicou, pois no caso da cesta básica, por exemplo, uma família rica gasta mais com PIS-Cofins do que uma família pobre e, portanto, a desoneração desses tributos significaria dar mais renda às famílias ricas. "Para a família pobre é muito melhor a tributação via gasto."
Os ricos pagam pouco imposto de renda, seja como pessoa física ou dono de empresa, e o regime geral da previdência não é progressivo, mas concentrador de renda, segundo ele. E a aposentadoria integral de servidores é "um desastre do ponto de vista distributivo".
Ainda em relação ao funcionalismo, Appy criticou a estabilidade para todos os setores, os escassos sistemas de avaliação de desempenho, a aposentadoria precoce de categorias como policiais e professores e os salários acima dos praticados no setor privado.
A política fiscal também afeta a oferta de serviços públicos de melhor qualidade, segundo ele, pois "não há avaliação de políticas públicas, se elas funcionam ou não".
Há também o impacto do sistema tributário na produtividade, de acordo com Appy. "Nosso sistema só tem exceção, não tem regra." Para ele, "toda vez que a tributação depende da forma como se organiza a produção gera um sistema ineficiente".
Bernard Appy |
Como exemplo das distorções, ele citou o fato de a guerra fiscal entre os estados via incentivos fiscais criar situações em que, para as empresas pagarem menos imposto, caminhões vão buscar insumos em um estado para serem beneficiadas em outro ou são concedidos benefícios fiscais em locais onde as empresas não têm ambiente para se instalar. "São Paulo tem frigoríficos, mas os bois vêm do Centro-Oeste. São instaladas montadoras de automóveis no Nordeste."
Appy apresentou cinco propostas prioritárias para "termos um país mais justo, eficiente e, quem sabe, fecharmos nossas contas":
- reforma da Previdência;
- revisão do modelo de gestão dos funcionários públicos (forma de contrato e avaliação de desempenho);
- reforma tributária em relação a bens e serviços;
- corrigir distorções do imposto de renda para que pessoas de alta renda paguem mais;
- introduzir um sistema de avaliação de políticas públicas relativas à política fiscal.
Para Marcos Lisboa, "o país está quebrado há muitos anos, em razão da insensibilidade das grandes corporações e do funcionalismo público". Ele citou o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e a crise financeira da USP como símbolos do fracasso do Brasil como Nação. "O incêndio do museu não é uma tragédia surpreendente. Há tempos se sabia que a política salarial da USP era insustentável. Minha geração não vai deixar um país pior por falta de alerta."
O setor privado não é melhor que o setor público, de acordo com ele, "pelo menos em relação às suas lideranças, como a Fiesp e a CNI, que defenderam a intervenção no setor elétrico, crédito subsidiado do BNDES, medidas protetivas, regras de conteúdo nacional". Os estaleiros, "com recursos públicos, deram errado pela terceira vez".
A combinação de oportunismo político e mau uso de recursos públicos ("para financiar empresas e setores ineficientes") faz parte da crise fiscal, afirmou.
Uma empresa brasileira produz um quarto do que fabrica outra similar num país rico, disse Lisboa. "Mas a baixa produtividade não é generalizada. Há boas empresas, mas a produtividade média é baixa porque protegemos demasiadamente empresas ineficientes".
Ele criticou também a "superficialidade" do debate público sobre o que deve ser feito. "Nossos intelectuais estão a dever ao país. Muitos diziam que a reforma da Previdência proposta em dezembro era correta, mas não podiam apoiar porque era uma proposta deste governo."
Lisboa indicou seis prioridades para o próximo mandato presidencial:
- reforma da Previdência;
- revisão das desonerações tributárias;
- abertura da economia por meio de uma transição suave;
- reforma do Estado, com sistemas de avaliação de desempenho dos funcionários públicos;
- uma agenda republicana com regras iguais para os iguais (mesmo regime previdenciário para trabalhadores do setor público e privado, mesmo imposto para a mesma renda, por exemplo);
- políticas públicas para questões essenciais, como saúde, educação e proteção a grupos mais vulneráveis.
Marcos Lisboa |
Diante do exposto pelos dois economistas, Arbix disse ter ficado com a imagem de que é preciso reinventar o país. "Talvez não baste reinventar as políticas, mas sim as pessoas que vivem no Brasil." Ele perguntou aos dois que tipo de arranjo social precisa ser feito para que as medidas propostas possam ser implantadas.
Appy disse acreditar na possibilidade de soluções, apesar da gravidade da situação. No campo tributário, mencionou a proposta CCiF de um imposto sobre o consumo ao longo da cadeia produtiva que substituiria cinco impostos: IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS. "É um imposto tipo IVA [imposto de valor agregado]. Haveria um período de transição de 10 anos, no qual as alíquotas dos impostos atuais iriam sendo reduzidas e a do novo imposto sendo elevada. O prazo para a distribuição dos recursos pelo destino (estados e municípios) seria de 50 anos.
A proposta também inclui a redistribuição de partes do imposto, com uma alíquota específica livre para ser elevada e gasta no que for necessário, sem os empecilhos da vinculação das principais receitas existentes.
Ao tocar nessa questão, Appy exemplificou com o percentual de 5% da arrecadação do ICMS destinados à USP, política que ele questiona: "A cada quatro anos deveríamos discutir o quanto a USP é importante para o país e quanto de recursos precisa". Guilherme Ary Plonski, vice-diretor do IEA, rebateu essa proposta do economista. Para Plonski, é importante o percentual fixo do ICMS para a USP, pois "o ciclo de produção da pesquisa e de formação de pesquisadores é maior do que quatro anos". Também comentou que a partir de 1989, quando foi definida a parcela fixa da arrecadação para a Universidade, os recursos dobraram, mas a produtividade cresceu num ritmo maior, foi multiplicada por cinco.
"O que mais me preocupa é sempre achar que a culpa é do outro", afirmou Lisboa: "O Judiciário se concede um reajuste em meio a outros benefícios, como o auxílio moradia, e acha tudo razoável. Quem defende a norma de conteúdo nacional e subsídios para fábricas insustentáveis no Nordeste é parte do problema."
O cientista político José Álvaro Moisés, coordenador, no IEA, do Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia, perguntou aos expositores como viam o papel da política para o enfrentamento dos problemas levantados. Para ele, há uma crise do sistema político e a progressiva perda de líderes capazes de interpretar o país em sentido amplo. "As propostas apresentadas vão enfrentar resistências muito sérias. Sem a política não vamos conseguir resolver a situação."
Glauco Arbix |
Appy admitiu não saber qual o papel que a política deve ter para o enfrentamento dos problemas econômicos. "Sei onde há resistências políticas, mas uma reunião de um dia inteiro não dá nem para começar a repensar a estrutura política para que as coisas funcionem."
Lisboa afirmou que a política precisa ser resgatada. "Nós, economistas, podemos fazer as contas para saber se as coisas param em pé ou não, mas encontrar e negociar soluções é tarefa da política". Sua preocupação é com a rejeição da política: "Vem um e diz que é preciso privatizar tudo; outro, acabar com os bancos. Há sempre um delirante de plantão com uma solução falaciosa".
Ele defende que servidores públicos, setor privado, instituições, todos os setores sejam chamados à mesa para a definição de prioridades. "É preciso dar garantias aos vulneráveis, priorizar a educação e a saúde, criar princípios básicos para a aposentadoria e mesma regra tributária, avaliar os funcionários públicos e retirar, sem açodamento, os benefícios fiscais. Mas a liderança de tudo isso cabe à política."
Do ponto de vista eleitoral, Lisboa disse esperar que a campanha eleitoral deste ano não seja como a da eleição passada, "com falsificação de dados e 'guerrilha' que impeçam o diálogo". A construção de soluções vai depender de muitas mudanças, emendas à Constituição, e isso requer diálogo e acordos, afirmou. "Se a campanha descambar para a 'guerrilha', os acordos posteriores serão inviáveis e aí estaremos marchando para a insensatez."
Instados por Mario Sergio Salerno, coordenador geral do OIC e professor da Escola Politécnica (Poli) da USP, ao mencionar quais são as três medidas iniciais para ser dado o primeiro passo na direção das reformas, Appy elencou a reforma da Previdência, maior tributação da alta renda e mudança na tributação de bens e serviços. Lisboa disse serem a revisão de desonerações e benefícios ficais, uma agenda progressiva de abertura comercial e equalização das regras, para estimular a concorrência e diminuir o "caos tributário".
Apesar da gravidade dos problemas econômicos do país e das dificuldades para adoções das medidas corretivas, Appy considera que atualmente "temos mais clareza do que deve ser feito do que tínhamos há 10, 15 anos". Lisboa concorda que há maior clareza sobre os problemas atualmente, "mas a crise é grave, o momento é difícil; vamos ver qual é a escolha que a política fará".
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP