Reconstruindo um desastre
“Temos que ter o entendimento de que este desastre ainda está em andamento e não podemos deixá-lo cair no esquecimento”. A frase usada pelo coordenador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) Polo São Carlos da USP Renato Anelli na abertura do debate “O Vale do Rio Doce: um desastre em andamento”, nesta quinta (31), deu a tônica do evento. Promovido pelo IEA Polo São Carlos com apoio do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP, o debate reuniu mais de cem pessoas no auditório Jorge Caron, no campus 1 da USP em São Carlos (SP).
Durante cerca de três horas, cinco docentes, com diferentes experiências, deram um panorama da tragédia desencadeada há seis meses, com o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG), que liberou 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração no leito do Rio Doce, atingindo direta e indiretamente mais de três milhões de pessoas.
“Esse evento é apenas um sintoma de todo o processo de desmonte que a legislação ambiental brasileira está sofrendo. Diversas conquistas já obtidas estão em risco”, alertou o docente do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP Marcel Fantin, moderador do debate.
Ele lembrou que a elevação dos preços do minério de ferro, puxada pelo crescimento econômico da China há alguns anos, resultou em um aumento exponencial da produção – e consequentemente dos lucros – o que teve impacto nas próprias barragens e na geração de rejeitos. “As commodities minerais e agrícolas ganharam peso na balança comercial, o que ocasionou um aumento do peso político dessas companhias, já que elas fazem grandes doações para as campanhas. Por isso vimos muitos políticos na mídia defendendo essas empresas”, diz Marcel.
Não foi acidente
O docente do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Reinaldo Duque Brasil Landulfo Teixeira, que mora em Governador Valadares, contou que viveu dias de terror com a chegada dos rejeitos à cidade. “É difícil falar. Senti o cheiro da morte, vi os peixes pulando para fora da água, tentando fugir, quando a onda chegou às 4h da manhã. E é importante lembrar que mesmo após quase seis meses do rompimento, os rejeitos continuam vazando em Mariana. Por isso não podemos deixar a tragédia cair no esquecimento”, afirma ele.
Teixeira questionou as palavras usadas pela mídia para descrever o fato, principalmente o termo “acidente”. Ele recordou as palavras de um pescador do Rio Doce, que lembrava a caracterização de crime ambiental para a retirada de peixes do rio durante a piracema. “Mas se uma empresa acaba com a água e mata pessoas é apenas um acidente?”
O docente chamou a atenção também para o uso da palavra “lama”. “Não devemos chamar de lama, mas sim de rejeito. Uma moradora de um dos assentamentos à beira do Rio Doce diz que a lama é algo bom, que o rio joga nas margens e fertiliza o solo”, afirma.
Em sua fala, Teixeira fez uma caracterização geográfica e histórica da Bacia do Rio Doce desde o início da ocupação em 1808, lembrando os conflitos indígenas e as lutas pela reforma agrária na região. Ele deu ainda um panorama dos movimentos criados para debater o desastre e pensar como recuperar o rio.
Rejeitos: narrativas
O professor do IAU-USP Marcelo Tramontano percorreu, em dez dias, o trajeto de Mariana até o município de Regência (ES). Ele conversou com ribeirinhos e pessoas afetadas diretamente pelo desastre, coletando imagens e depoimentos para um documentário que está em processo de edição. “Ao andar por aquela região, sentimos que é uma espécie de terreno ‘minado’. Como se as minas fossem explodir a qualquer momento. Há uma espécie de dor e delícia de se viver em Mariana. A voz corrente é de que a cidade em nada se beneficia da atividade de mineração, apesar da compensação financeira recebida”, explica Tramontano.
Ele contou ainda que o contraste de situações impressiona, comparando-se os lucros gerados pelas grandes corporações com os vilarejos paupérrimos, com péssimas condições de saúde, cuja mão-de-obra trabalha na mineração. “São dois mundos que não se tocam. Ou a população vive de migalhas, ou tenta se integrar de forma oficial, ou passa ao largo. Mas os trabalhadores, em sua maioria, são pobres e negros, e recebem muito pouco para trabalhar lá”.
Segundo Tramontano, ele encontrou durante a viagem um engenheiro que trabalhou por 36 anos na Vale e disse que essa tragédia já era esperada. “Há vozes que dizem, inclusive, que a Samarco tinha interesse em comprar a região de Bento Rodrigues para construir uma nova barragem. Não estou querendo promover algum tipo de teoria da conspiração, mas quando a gente se mistura à população local, fica mais fácil compreender essa situação”, diz ele.
O conceito de quem foi atingido pela tragédia é muito mais amplo do que se imagina. O docente explica que não se trata apenas da população ribeirinha. Os prejuízos vão desde o agricultor, que não tem como recuperar a plantação após a passagem dos rejeitos e muitas vezes não está recebendo compensação financeira, até peixarias e restaurantes nos centros urbanos, que mesmo buscando água e peixes em outros locais para seguirem funcionando enfrentam a desconfiança dos moradores.
A parte final da viagem de Tramontano, a chegada ao mar, expôs de forma intensa para o docente a dimensão do desastre. “Conforme fomos seguindo o rio, nos acostumamos a ver a água ali, contida nas margens. Mas ao chegar ao mar, percebemos que a tragédia é irreparável. Ficamos mudos com a visão”.
A Vale, o vale, a lama
A segunda viagem relatada na noite foi a do professor do IAU-USP Luciano Bernardino da Costa viajou e do docente da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e da Universidade do Vale do Sapucaí (Univás) Rafael Lazzarotto Simioni, que seguiu o curso do Rio Doce. “Foi uma tentativa de conhecer o Vale do Rio Doce tendo o rio como guia”, diz.
Na apresentação intitulada “A Vale, o vale, a lama”, os docentes mostraram imagens da devastação que atingiu outros distritos além de Bento Rodrigues, como Paracatu de Baixo. Ao seguirem pelos locais onde a presença das mineradoras era bastante forte, Simioni conta que lembrou de Boaventura de Sousa Santos. “Onde o Estado não ocupa, outro irá ocupar. Nesse caso, uma empresa. Há uma espécie de ausência do Estado nesses locais. Não se vê polícia ou ambulâncias. A ocupação desse espaço é totalmente feita pela Samarco, principalmente utilizando-se de um discurso tecnológico. Há placas lembrando tecnologia, veículos novos e seguranças particulares da empresa”.
Em outros locais por onde o rio passava, já mais distante do ponto inicial da tragédia, um contraste de organização se destacava, como o município de São Roque (MG). Indagando aos moradores a razão de um espaço bem formado e uma avenida com palmeiras imperiais em um local tão singelo, os docentes descobriram que se tratava de área da multinacional de celulose Cenibra.
“Fazendo uma divisão da paisagem, percebemos que a área de devastação é visível até Barra Longa (MG). Em seguida, há uma grande área dominada por eucaliptos, plantas que têm presença marcante na região não pela produção de papel, mas sim pelo uso de carvão vegetal na siderurgia. Depois, entramos em uma região urbana e nos deparamos com a Usiminas”, explica Costa.
Prevenção de desastres
Encerrando as falas dos debatedores, o docente da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP Eduardo Mário Mendiondo destacou a atuação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (Cemaden/MCTI), no qual atua como coordenador-geral.
Mendiondo explicou que o centro foi criado após o desastre causado pelas chuvas na região serrana do Rio de Janeiro, em 2010. Atualmente, o órgão monitora a ocorrência de desastres naturais em 957 municípios brasileiros.
Segundo o coordenador, houve registros de tremores de terra de ordem 2 e 3 antes do rompimento da barragem e o epicentro foi bastante próximo de Mariana. Ele destacou a necessidade de utilizar a frustração gerada pela tragédia para sensibilizar as autoridades responsáveis pela tomada de decisões. “Todos os dias atravessamos muitas Marianas e não nos damos conta. Um metro de água tem diferentes níveis de vulnerabilidade para cada pessoa”, destacou ele, lembrando que é necessário investir em educação e treinamento para evitar tragédias como essa.