Atualidade, perspectivas e desafios da inteligência artificial são tema da revista “Estudos Avançados”
Algoritmos de aplicativos e redes sociais, veículos autônomos, tradução automática, reconhecimento facial, aprendizagem de máquina, redes neurais artificiais, diagnóstico médico... São muitos os conceitos, tecnologias e usos da inteligência artificial (IA) cada vez mais presentes no cotidiano, fruto do grande desenvolvimento da área nas últimas décadas.
Para propiciar ao público não especializado uma visão abrangente dessa revolução tecnológica, a edição 101 da revista "Estudos Avançados" dedica seu dossiê principal à discussão do estado atual, perspectivas e impactos da IA. [A edição digital da publicação já está disponível no site da SciELO (Scientific Electronic Library Online).]
Composto de nove artigos de autoria de 17 pesquisadores da USP, Unicamp, UFRGS e UFPE, o dossiê "Inteligência Artificial" analisa o desenvolvimento desse campo desde sua origem nos anos 50, suas inúmeras aplicações e os debates que suscita no cenário científico e tecnológico, mas não deixam de lado “seus riscos, os cuidados éticos que seu emprego massivo requer, suas implicações sociais, políticas, culturais e morais que transformam rapidamente as sociedades contemporâneas”, sintetiza o editor da revista, Sérgio Adorno.
A abertura do dossiê é dedicada aos aspectos metodológicos da pesquisa em IA, com artigo de Fabio Gagliardi Cozman, da Escola Politécnica (EP) da USP. Ele explica que há dois estilos "fundamentalmente diferentes de abordagem em IA: de um lado, o estilo empírico, fortemente respaldado por observações sobre a biologia e psicologia dos seres vivos e pronto para abraçar arquiteturas complicadas que emergem da interação de muitos módulos díspares; de outro lado, um estilo analítico e sustentado por princípios gerais e organizadores, interessado em concepções abstratas da inteligência e apoiado em argumentos matemáticos e lógicos".
Segundo Cozman, por volta de 1980, foram cunhados os termos scruffy (desgrenhado) e neat (empertigado) para se referir, respectivamente, a esses dois estilos de trabalho em IA. Essa divergência metodológica se mantém, afirma, com o constante dilema entre "a busca de artefatos racionais baseados em princípios claros, ou artefatos empíricos que reproduzem padrões". Sua proposta é investir em arquiteturas baseadas em princípios de racionalidade e que permitam abrigar vários módulos simultaneamente, muitos dos quais baseados em coleta maciça de dados.
A preocupação com a forma de desenvolvimento da IA é compartilhada por André Carlos Ponce de Leon Ferreira de Carvalho, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP: "O que temos que decidir agora não é mais se teremos ou não a IA, mas como teremos a IA”. Para reduzir possíveis riscos, aponta, “é necessário o desenvolvimento de novos algoritmos de IA, ou seu uso de maneiras novas e inovadoras, levando em consideração questões éticas, sociais e legais”.
Razões da euforia
O novo período de euforia em relação aos possíveis benefícios do uso da IA deve-se a três fatores, de acordo com Jaime Simão Sichman, da EP-USP: o baixo custo atual de processamento e de memória; o surgimento de novos paradigmas, como as redes neurais profundas; e a gigantesca quantidade de dados disponível na internet em razão do grande uso de recursos como redes e mídias sociais.
Sichman alerta para os potenciais riscos que “essa tecnologia, tal como qualquer outra, pode provocar caso os atores envolvidos na produção, utilização e regulação de seu uso não criem um espaço de discussão adequado dessas questões”.
Segundo Teresa Bernarda Ludermir, do Centro de Informática da UFPE, o avanço "extraordinário” da IA nos últimos anos e sua importância na solução de problemas tecnológicos e econômicos, deve-se principalmente às técnicas de aprendizagem de máquina, sobretudo à utilização de redes neurais artificiais. Além de tratar do estado atual da área, seus desafios e oportunidades de pesquisa, o artigo menciona impactos sociais e questões éticas decorrentes dos usos da IA.
As transformações ocorridas na IA desde seu surgimento, em especial quanto aos sistemas educacionais, são o objeto do panorama apresentado Rosa Maria Vicari, do Instituto de Informática da UFRGS. A pesquisadora lembra que em 1980 e 1993 "as aplicações eram interessantes, mas não apresentavam respostas adequadas em compreensão da linguagem e diagnóstico médico". Nas duas últimas décadas, no entanto, "as aplicações se mantiveram, mas houve avanços na tradução automática, reconhecimento de imagens, diagnóstico do câncer e carros autônomos".
Algumas aplicações
Nove pesquisadores do Instituto de Computação da Unicamp são autores de artigo sobre ciência forense digital (uso de métodos e técnicas científicas para investigações de crimes no mundo digital). A importância atual da área deve-se, segundo eles, aos desafios resultantes do surgimento das mídias sociais e ao imenso volume de dados que geram, intensificados pelos avanços da IA. E é a técnicas de IA que é preciso recorrer para analisar tal quantidade de dados. O artigo apresenta desafios e oportunidades associados à aplicação dessas técnicas e apresentam exemplos de seu uso em situações reais.
Um caso específico em que a IA tem papel fundamental é o processamento de linguagem natural (PLN), essencial para a análise de grandes quantidades de dados contidos em textos, entre outros usos. O tema é discutido por Marcelo Finger, do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, em particular quanto à língua portuguesa. Ele explica que o PLN se encontra na confluência de áreas como ciência da computação, linguística, lógica, psicologia, dentre outras, e requer por natureza um tratamento multidisciplinar.
No entanto, todos os avanços em PLN, com a consequente geração de produtos e a facilitação de uma série de serviços, “parecem não ter trazido nenhuma informação substancial sobre o processo humano de reproduzir e se comunicar por meio da linguagem”, diz o pesquisador. Seguindo essa linha de raciocínio, “o processamento de língua natural teria se dissociado do estudo de linguagem”. Há quem diga, afirma, que "a tecnologia acabará por matar o estudo tradicional da linguagem". Para Finger, essas duas visões são exageradas: "A linguística é absolutamente fundamental para a área de processamento de língua, uma vez que essa tarefa computacional não explica a língua, não ajuda a prever nem a explicar as evoluções naturais das línguas".
Ana Bazzan, do Instituto de Informática da UFRGS, analisa a utilização de IA para a melhoria de sistemas de transporte. Para ela, a aplicação de IA no serviço pode melhorar a utilização da infraestrutura existente, a fim de melhor atender a demanda (deslocamento de pessoas e mercadorias). Seu artigo traça um painel sobre duas tarefas em que a IA tem contribuições relevantes no setor: o controle de semáforos e a escolha de rotas.
Impacto no trabalho
O dossiê se encerra com artigo de Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, sobre uma das questões que mais preocupam a sociedade no que se refere à IA: a perda de postos de trabalho. Nele, o autor afirma que, embora as formas mais avançadas da revolução digital (IA, aprendizagem de máquina e internet das coisas) estejam substituindo parte considerável da mão de obra, "não é nisso que reside sua maior ameaça". O problema, afirma, é que essa revolução "está fortalecendo uma polarização social do mercado de trabalho que vai na contramão do que foram as bases do próprio Estado de bem-estar do século 20".
Segundo Abramovay, “o lugar do trabalho na coesão das sociedades contemporâneas envolve uma discussão filosófica fundamental: o que é trabalho, o que é emprego, mas, mais que isso, como podemos hoje fazer que nossa capacidade de cooperação resulte em vida melhor para todos e não em formas indignas e pouco valorizadas de atividades para a esmagadora maioria, ao lado de atividades criativas e edificantes para uma pequena minoria”.
Outras seções
Além do dossiê "Inteligência Artificial", a edição traz um estudo alentado sobre a diversidade das instituições de ensino superior no Brasil, um conjunto de textos sobre agricultura urbana e resenhas de cinco lançamentos editoriais.
A diversidade das instituições de ensino superior do país em termos de objetivos perseguidos e resultados obtidos requer um esforço para classificá-las por similaridade de atuação, para que isso subsidie critérios diversos de avaliação para cada grupo. É o que propõe o artigo “Por uma Tipologia do Ensino Superior Brasileiro: Teste de Cconceito”, de Simon Schwartzman, Roberto Lobo Silva Filho e Rooney Coelho.
De acordo com os autores, as diferenças entre as instituições não são reconhecidas com todas as implicações pela legislação nem pelo sistema de avaliação adotado pelo Ministério da Educação. O artigo apresenta uma proposta de tipologia que procura identificar com clareza as diferenças entre as instituições, de forma a servir de base para um sistema de informações e procedimentos de avaliação.
Para isso, os pesquisadores propõem o agrupamento das instituições com perfis semelhantes, do ponto de vista de seu porte, natureza jurídica e envolvimentos em atividades de ensino e pós-graduação, além de verificar até que ponto essa diferenciação tem correspondência com a diversidade de características de professores, alunos e sua área de atuação. A parte final do estudo discute algumas das implicações da tipologia para o sistema de avalição da educação superior e para a melhoria da qualidade e desempenho da educação superior no país.
Agricultura urbana
De acordo com o editor de "Estudos Avançados", os artigos sobre “Agricultura Urbana” tratam de questões específicas, mas conectadas entre si como modalidades e alternativas para a promoção da segurança alimentar.
Os seis textos discutem: multifuncionalidade, produção e comercialização da agricultura urbana; sua associação com a agroecologia; a importância das hortas comunitárias e das hortas de quintais; e as contradições do locavorismo (ativismo alimentar surgido na década passada que privilegia o consumo de alimentos produzidos localmente) diante das experiências da agricultura urbana na cidade de São Paulo.
Resenhas
As seis resenhas tratam de obras com temas variados, entre as quais, geologia, história, produção intelectual e literatura. Ricardo Soares e Wilson Machado escrevem sobre “The Anthropocene as a Geological Time Unit: A Guide to the Scientific Evidence and Current Debate”, que reúne dados do 35º Congresso Geológico Internacional, realizado em 2016; Camila Ferreira da Silva e Janderson Bragança Ribeiro resenham “Sobre o Autoritarismo Brasileiro”, de Lilia Moritz Schwarcz; Fabio Mascaro Querido trata de “Seja como For: Entrevistas, Retratos e Documentos”, de Roberto Schwarz; Mariana Holms escreve sobre “O Homem que Aprendeu o Brasil”, de Ana Cecília Impellizieri Martins (2020); e Cecilia Marks analisa “O Romance de Formação”, de Franco Moretti.
Versão impressa: os exemplares da edição 101 de "Estudos Avançados" estarão disponíveis em meados de maio, ao preço de R$ 30,00. Os interessados em reservar um exemplar ou fazer uma assinatura anual da revista (três edições por R$ 90,00) podem enviar mensagem para estavan@usp.br.