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Revista 'Estudos Avançados' 98 analisa precariedade e transformações no trabalho

por Mauro Bellesa - publicado 08/05/2020 14:37 - última modificação 08/05/2020 14:37

Edição 98 da revista "Estudos Avançados", com lançamento em abril, apresenta conjuntos de textos sobre o trabalho de cuidado, uberização, bioeconomia, José Saramago e outros temas.

Capa de "Estudos Avançados" 98

Num momento de extrema redução da possibilidade de trabalho para grande parcela de trabalhadores em consequência das restrições de circulação e contato público devido à Covid-19, a edição 98 da revista "Estudos Avançados", com lançamento este mês, discute dois temas problemáticos do mundo do trabalho brasileiro pré-pandemia: o ainda pouco reconhecimento do trabalho de cuidado, essencial diante do envelhecimento da população; e as características e impactos das novas formas de trabalho, inclusive sobre a saúde dos trabalhadores. A edição já está disponível no SciELO.

Como não poderia ser diferente, o conteúdo da edição [veja o sumário abaixo] foi definido antes de a Organização Mundial de Saúde declarar a pandemia causada pela disseminação internacional do novo coronavírus, o Sars-Cov-2. Além disso, seria impossível obter análises rigorosas produzidas em plena fase inicial da pandemia.

No entanto, as questões abordadas nos dossiês sobre trabalho merecem atenção redobrada, pois estão entre aquelas para as quais a sociedade deverá buscar respostas no pós-pandemia, de forma a assegurar a todos um trabalho digno, com igualdade, direitos e proteção à saúde.

No dossiê “Trabalho, Gênero e Cuidado”, o cuidado com pessoas é analisado em suas diversas manifestações, profissionais ou não. Uma delas é quando o cuidado ocorre como uma “ajuda”, sem caracterizar-se como atividade profissional nem como obrigação – de parentes, por exemplo. O tema é discutido pelas sociólogas Nadya Araujo Guimarães, professora sênior da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Priscila Pereira Faria Vieira, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Já Helena Hirata, ex-professora visitante do IEA e diretora de pesquisa emérita do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês), da França, trata dos principais pontos de convergência e divergência na atividade dos cuidadores de idosos no Brasil, Japão e França, sem deixar de lado a centralidade das mulheres nesse trabalho. Seu objetivo é demonstrar como gênero, raça e classe social participam da construção das trajetórias profissionais e pessoais das cuidadoras.

No artigo “Cuidado y Responsabilidade”, Natacha Borgeaud-Garciandía discute o trabalho de cuidadoras imigrantes de idosos em Buenos Aires, Argentina. Pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Argentina, Natacha concentra-se na responsabilidade como assunção de uma obrigação moral em relação a uma pessoa vulnerável. Um dos aspectos discutidos é o papel da responsabilidade na complexidade das tramas de exploração das cuidadoras, no marco de relações desiguais de poder.

O tratamento jurídico do cuidado no Brasil e as políticas públicas voltadas à socialização das atividades de reprodução social ficam aquém das demandas sociais, segundo Regina Stela Corrêa Vieira, pesquisadora do Cebrap e professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc).

De acordo com Regina, o direito do trabalho, que “historicamente ignora ou neglicencia o trabalho doméstico, remunerado ou não”, teve avanços como a Emenda Constitucional 72/2013 e a ratificação da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho, mas sofre atualmente com a reforma trabalhista, que “ameaça os direitos conquistados arduamente pelas trabalhadoras domésticas”.

A luta dessas trabalhadoras pela valorização de sua atividade profissional é analisada também em artigo de Louisa Acciari, da UFRJ, e Tatiane Pinto, da UFRRJ, que tratam das negociações informais com empregadores até a mobilização sindical da categoria. Elas propõem uma redefinição do conceito de trabalho, com a inclusão plena do trabalho de cuidado e reprodutivo nesse conceito, algo “indispensável para a garantir a dignidade e igualdade de direitos”.

Precarização do trabalho

A discussão sobre essa carência de direitos e dignidade no âmbito de cuidadores e empregados domésticos em geral é ampliada no segundo dossiê da edição para tratar das características e impactos, inclusive na saúde, das transformações em curso no mundo do trabalho.

O sanitarista René Mendes, pesquisador colaborador do IEA, sintetiza em seu artigo as preocupações que o levaram a propor ao Instituto o projeto de pesquisa “Impactos das Novas Morfologias do Trabalho Contemporâneo sobre o Viver, o Adoecer e o Morrer de Trabalhadores”.

Mendes parte das percepções de estudos existentes sobre o problema efetuados pela ótica sociológica, sobretudo, mas busca aprofundar, desta vez sob a ótica da epidemiologia social, as reflexões sobre a natureza e a complexidade dos mecanismo de patogênese das novas morfologias do trabalho sobre a vida e a saúde de trabalhadores.

Uma dessas novas formas de trabalho é a chamada “uberização”, tema do texto de Ludmila Costhek Abílio, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp. O artigo baseia-se em pesquisa empíricas com revendedoras de cosmético e motofretistas e dados secundários sobre motoristas do Uber e os chamados bike boys.

A análise de Ludmila considera duas teses: 1) a uberização é uma tendência global em curso para consolidar o trabalhador como um autogerente subordinado disponível, desprovido de garantias e direitos, definido como trabalhador just-in-time; 2) as empresas se apresentam como mediadoras, quando na verdade operam formas de subordinação e controle do trabalho, no que pode ser chamado de gerenciamento algorítmico do trabalho.

O terceiro artigos do dossiê, de autoria de Clemente Ganz Lúcio, sociólogo e técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), apresenta um breve histórico e o contexto atual dos debates no Congresso Nacional e no Executivo federal sobre a reforma sindical e do sistema de relações do trabalho. Lúcio ressalta que as mudanças no mundo do trabalho alteram empregos, ocupações, postos de trabalho, dinâmica laboral, formas de contratação, jornada e condições de trabalho, entre inúmeras outras questões.

Para ele, algumas diretrizes e aspectos deveriam ser considerados nessas mudanças. Um deles é o desenvolvimento de um sistema autônomo e efetivo de autorregulação entre trabalhadores e empregadores, que seja suporte para a reestruturação sindical do sistema de relações de trabalho e a solução dos conflitos por meio de instrumentos criados pelas partes.

Bioeconomia, energia e vegetação

Os temas ambientais e de desenvolvimento sustentável, com presença regular ao longo dos 33 anos da revista, estão presentes nesta edição por meio de três artigos. André Luiz Willerding, biotecnólogo da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (Sedecti) do Amazonas, e outros cinco pesquisadores, da Sedecti e da Universidade Estadual do Amazonas, apresentam um panorama da realidade do estado quanto ao desenvolvimento de uma bioeconomia fortemente ligada com as potencialidades dos recursos naturais. Segundo os autores, a discussão sobre esse tema vai de encontro à busca de alternativas para a economia estadual, ainda muito centralizada no Polo Industrial de Manaus, que "se torna ano a ano cada vez mais ameaçado".

Outrao região contemplada na seção é o Nordeste, em artigo sobre a importância da integração de políticas sociais, econômicas e ambientais em torno da questão energética para o semiárido. A partir da abordagem Nexus - que integra as seguranças hídrica, energética e alimentar, tendo na água seu eixo central -, Marcel Burztyn, do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB, propõe o fomento à geração de energia fotovoltaica por agricultores familiares.

Ao estudar questões como o grau de complexidade e diversificação da paisagem brasileira, deve-se levar em conta que uma paisagem pode ser fruto de mudanças ambientais recentes ou relíquias de condições bem mais remotas, destacam em outro artigo os geólogos Daniel Meira Arruda, da UFMG, e Carlos Ernesto Gonçalves Rynaud Schaefer, da UFV. Eles discutem as teorias biogeográficas formuladas e modificadas ao longo dos últimos 60 anos de estudos sobre a reconstrução das vegetações do Brasil sob o impacto das mudanças climáticas do Último Máximo Glacial (UMG), ocorrido há 18 mil anos. Segundo os dois pesquisadores, o recente avanço dos modelos climáticos globais tem proporcionado novas perspectivas para a uma reconstrução mais fiel das condições daquele período.

Literatura e outros temas culturais

A seção "Cultura" traz textos sobre obras dos escritores Samuel Beckett, José de Alencar e Murilo Mendes e sobre os trajes dos indígenas brasileiros na época do governo (1637-1644) de Maurício de Nassau (Johan Maurits van Nassau-Siegen) da ocupação holandesa no Nordeste. O conjunto de artigos também traz "Os Impedimentos da Memória", de Jeanne Marie Gagnebin, e "Autômatos Ideológicos", de Benhur Bortolotto.

Ainda no âmbito cultural, "Estudos Avançados" participa das homenagens ao escritor português José Saramago por ocasião dos dez anos de sua morte. São três artigos sobre alguns aspectos da obra do Prêmio Nobel de Literatura de 1998, escritos por Jaime Bertoluci, Marcelo Lachat e Jean-Pierre Chauvin.

A edição é completada por resenhas de cinco livros: "Reflexão como Resistência: Homenagem a Alfredo Bosi", organizado por Augusto Massi, Erwin Torralbo Gimenez, Marcus Vinicius Mazzari e Murilo Marcondes de Moura; "A Escola Francesa de Geografia: Uma Abordagem Contextual", de Vincent Berdoulay; "A Dupla Noite das Tílias", de Marcus Vinicius Mazzari; "História do Doutor Johann Fausto", traduzido, organizado e comentado por Magali Moura; e "A Trágica História do Doutor Fausto", de Christopher Marlowe, com tradução e notas de Luís Bueno e Caetano Waldrigues Galindo.

"Estudos Avançados" 98 (janeiro-abril/2020), 380 págs, R$ 30,00. A assinatura anual (três edições) custa R$ 90,00. Mais Informações: www.iea.usp.br/revista, estavan@usp.br.


 

Sumário

Trabalho, Gênero e Cuidado

  • As "Ajudas”: O Cuidado Que Não Diz Seu Nome - Nadya Araujo Guimarães e Priscila Pereira Faria Vieira
  • Comparando Relações de Cuidado: Brasil, França, Japão - Helena Hirata
  • Cuidado y Responsabilidad - Natacha Borgeaud-Garciandía
  • Trabalho e Cuidado no Direito: Perspectivas de Sindicatos e Movimentos Feministas - Regina Stela Corrêa Vieira
  • Praticando a Equidade: Estratégias de Efetivação de Direitos no Trabalho Doméstico - Louisa Acciari e Tatiane Pinto

Questões do Trabalho

  • Patogênese das Novas Morfologias do Trabalho no Capitalismo Contemporâneo: Conhecer para Mudar - René Mendes
  • Uberização: A Era do Trabalhador Just-in-Time? - Ludmila Costhek Abílio
  • A Reforma das Relações Sindicais Volta ao Debate no Brasil - Clemente Ganz Lúcio

Ambiente e Desenvolvimento

  • Estratégias para o Desenvolvimento da Bioeconomia no Estado do Amazonas - André Luis Willerding, Leonardo Rodrigo da Silva, Roseana Pereira da Silva,Geison Maicon Oliveira de Assis e Estevão Vicente Cavalcanti Monteiro de Paula
  • Energia Solar e Desenvolvimento Sustentável no Semiárido: O Desafio da Integração de Políticas Públicas - Marcel Bursztyn
  • Dinâmica Climática e Biogeográfica do Brasil no Último Máximo Glacial: O Estado da Arte - Daniel Meira Arruda e Carlos Ernesto Gonçalves Reynaud Schaefer

Cultura

  • Os Impedimentos da Memória - Jeanne Marie Gagnebin
  • Mais Que Paródia? "Aquela Vez" e o Teatro Tardio de Samuel Beckett - Luciano Gatti
  • “Tu És Jesuíta”. A Epistemologia inaciana de José de Alencar - Fabiano Lemos e Ulysses Pinheiro
  • Murilo Mendes, Leitor de Romano Guardini - Pablo Simpson
  • Espelhos do Mal: Arquivo e Corrupção em Sade - Aline Leal Fernandes Barbosa
  • Autômatos Ideológicos - Benhur Bortolotto
  • Johan Maurits van Nassau-Siegen e os Trajes dos Ameríndios - Fausto Viana

José Saramago: Temas e Linguagens

  • Um Cão Perdido na Lisboa Medieval de Saramago - Jaime Bertoluci
  • O Tempo entre Ficção e Filosofia: Sobre a "História do Cerco de Lisboa", de José Saramago - Marcelo Lachat
  • José Saramago e a Poética da Insubordinação - Jean Pierre Chauvin

Resenhas

  • Versões de um Mestre - Alexandre Koji Shiguehara
  • A Escola Francesa de Geografia - Nilson Cortez Crocia de Barros
  • Fausto, Nosso Contemporâneo - Klaus F. W. Eggensperger
  • O Ano Fáustico de 2019 - Rafael Rocca dos Santos