Sérgio Milliet, um 'intelectual em ação'
Sérgio Milliet em sua mesa de diretor da Biblioteca Municipal de São Paulo, nos anos 40 |
O intelectual tem de ter um papel eminentemente ético e atuar na construção do espírito moderno de seu tempo. Essa era uma das principais concepções de Sérgio Milliet (1898-1966), segundo Lisbeth Rebollo, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que tratou da trajetória do crítico e gestor cultural no último encontro do ciclo "Cultura, Institucionalidade e Gestão", no dia 1º de dezembro. [O evento teve também exposição de Nelson Brissac sobre o projeto ZL Vórtice.]
O encontro Dirigentes Culturais 6: Dos Anos 50 à Atualidade foi coordenado por Ricardo Ohtake, titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, parceria do IEA com o Itaú Cultural, responsável pela organização do ciclo.
Formação
Lisbeth lembrou que em 1910, aos 12 anos, Milliet foi estudar em Genebra, indo depois para a Universidade de Berna, também na Suíça. "A postura que defendia tinha relação com sua ideia sobre quais deveriam ser os aspectos formativos das pessoas. Ele adquiriu essa visão da ética impregnando a educação durante sua formação na Suíça."
Não foi um período comum o de sua juventude lá: "Com a Primeira Guerra Mundial, grandes intelectuais e políticos migraram para a Suíça. O jovem Milliet conviveu com esse clima, que propiciou inclusive o surgimento do movimento Dada. Voltou em 1922, a tempo de participara da Semana de Arte Moderna como poeta."
Segundo Lisbeth, Antonio Candido foi o primeiro grande teórico a reconhecer a importância de Milliet para a cena crítica e de iniciativas culturais, classificando-o como um "intelectual em ação".
"Entre 1922 e 1950, Milliet foi muito importante como articulador entre os modernistas. Trazia coisas da Europa e divulgava o projeto modernista brasileiro no exterior. Publicou a primeira notícia sobre a Semana de 22 no exterior, na revista belga 'Lumière'."
CICLO CULTURA, INSTITUCIONALIDADE, E GESTÃO Dirigentes Culturais 6: Dos Anos 50 à Atualidade - Sérgio Milliet Notícia Midiateca
Dirigentes Culturais 5: Dos Anos 50 à Atualidade - Justo Werlang Midiateca Dirigentes Culturais 4: Dos Anos 50 à Atualidade - Martin Grossmann Midiateca
Dirigentes Culturais 3: Dos Anos 50 à Atualidade - Paulo Herkenhoff e Carlos Augusto Calil Notícia Midiateca Dirigentes Culturais 2: Dos Anos 50 à Atualidade - Paulo Emílio Gomes Notícia Midiateca Dirigentes Culturais 1: Dos Anos 50 à Atualidade - Ariano Suassuna e Walter Zanine Notícia Midiateca
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Gestor
O perfil realizador de Milliet se manifesta em meados dos anos 30, época em que idealiza o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, embrião da futura Secretaria de Cultura, disse a expositora.
"Foi o primeiro momento de interferência do projeto modernista na vida da cidade. Uma reação à derrota na Revolução de 32 da classe média liberal paulista, que buscava liberdade, democracia e se insurgia contra a centralização do poder na vida política."
À época, Milliet dirigiu a Divisão de Documentação Histórica e Social do departamento. Nesse cargo, registrou as expedições do antropólogo Claude Lévi-Strauss às tribos bororo e fez pesquisas sobre os imigrantes e as transformações no proletariado, com a colaboração de alunos da Faculdade de Direito da USP e da Escola de Sociologia e Política, relatou Lisbeth.
"No campo cultural, ele transforma a revista do Arquivo Municipal, que até então só publicava dados estatísticos, em um veículo para a divulgação de textos sobre arte e cultura de, entre outros, Roger Bastide e Jean Maugüé, professores franceses ligados à implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP."
Lisbeth afirmou que já naquela época ele defendia a criação de um museu de arte moderna na cidade, "ideia que não foi adiante com o fim do mandato de Fábio da Silva Prado como prefeito e a nomeação de Prestes Maia para o cargo".
Biblioteca Municipal
Em 1942, Milliet foi nomeado diretor da Biblioteca Municipal, atual Mário de Andrade, já instalada na rua da Consolação. Mesmo em condições difíceis, desenvolve um projeto com várias facetas, de acordo com Lisbeth: cria as seções de livros raros, arte e microfilmagem; reorganiza a biblioteca circulante; realiza de eventos sobre arte; produz um boletim bibliográfico (depois transformado em revista); e estabelece intercâmbio com a Biblioteca de Paris.
"Seu objetivo na criação da Seção sobre Arte, em janeiro de 1945, era reunir um acervo para pesquisadores e artistas. Na época, o livro arte mais atual tratava do Renascimento, não tinha mais nada que pudesse colaborar para a informação e formação de artistas."
Milliet formou um acervo de reproduções de obras de arte organizado em pastas para consultas e outro com obras originais dos anos 30 e 40 de artistas brasileiros. "Assim surgiu a surgiu a primeira coleção de arte moderna brasileira, num momento em que os pintores acadêmicos dominavam os salões e ganhavam os prêmios governamentais. Talvez ele tivesse a esperança de que a coleção se tornasse o núcleo inicial de um futuro museu."
Ele também esteve à frente de duas entidades culturais de prestígio: a Associação Brasileira de Escritores e a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA). "Em 1945, no Teatro Municipal de São Paulo, abriu o 1º Congresso da associação dos escritores com uma manifestação contra a ditadura de Getúlio Vargas, ressaltando a importância de os intelectuais tomarem uma posição na vida política."
Lisbeth Rebollo |
Primeiro presidente da ABCA, cargo em que permaneceu por dez anos, Milliet foi convidado para a reunião da Unesco em 1948, em Paris, na qual surgiu o projeto da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica), com o objetivo de estimular a aproximação entre os povos e aceitação das diferenças culturais.
Em 1949, participou do encontro para a aprovação do estatuto e das 15 seções nacionais da Aica. Na ocasião, apresentou comunicação sobre a marginalidade da pintura moderna, utilizando uma visão metodológica pioneira, apoiada não só na história da arte, mas também nas ciências sociais, explicou Lisbeth. "A comunicação causou grande impacto e foi relembrada nos 50 anos da Aica."
Museu de Arte Moderna
Se na época do Departamento de Cultura foi impossível seguir adiante com a ideia de criação de um museu de arte moderna, depois as portas se abriram "graças ao convívio de Milliet com diplomatas americanos". Esse contato resultou na doação por Nelson Rockfeller de um núcleo de obras de vários artistas, entre os quais Marc Chagall, Fernand Léger e Alexander Calder [os trabalhos hoje estão no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP].
"As obras foram apresentadas na Seção de Arte da biblioteca em 1946 e depois de várias reuniões houve a aproximação dos empresários Assis Chateaubriand e Ciccilo Matarazzo, com este levando adiante a proposta de criação do museu."
Quando o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo foi fundado, "cogitou-se dar a direção a Milliet, mas ele não podia acumular o cargo com a direção da biblioteca". No entanto, foi diretor artístico do museu de 1952 a 1957, tendo realizado a primeira mostra retrospectiva de Tarsila do Amaral, disse Lisbeth.
Bienal
"Quando a Bienal foi criada, em 1951, também pensou-se em colocá-lo na direção e novamente ele não pode aceitar o convite devido ao cargo na biblioteca. Mas para a 2ª Bienal, ele se licencia da biblioteca para dirigir a exposição, o que fará também na 3ª e 4ª edições."
Lisbeth destacou que nas bienais por ele organizadas, ao lado da apresentação da arte contemporânea, fez questão de apresentar panoramas históricos da arte moderna, com a presença de "Guernica", de Picasso (na segunda bienal) e exposições sobre o cubismo, o expressionismo, De Stilll e o futurismo.
"Em 1959, Milliet resolveu se aposentar e suas participações no campo cultural tornam-se mais esparsas, mas continuou a manter contato com instituições estrangeiras e a receber missões da Aica. Também atuou como adido cultural da Embaixada da Suíça e escreveu artigos, em tom de memórias, para o o jornal 'O Estado de S. Paulo', a partir de fatos do cenário artístico."
Fotos (a partir do alto): Associação Brasileira de Críticos de Arte; Matheus Araújo/IEA-USP