'Machado', o romance de sobrevivência de Silviano Santiago
"Machado" recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Romance de 2017 |
Silviano Santiago nunca escreveu um romance de formação, mas acredita que outro tipo de obra pode apresentar a mesma riqueza: o "romance de sobrevivência". Ele insere "Machado", sua mais recente trabalho, nessa categoria. O livro trata dos últimos quatro anos de vida do Bruxo do Cosme Velho e ganhou no final de outubro o Prêmio Jabuti de Melhor Romance de 2017.
No dia 24 de outubro, aproveitando sua vinda ao IEA para participar do Seminário Hélio Oiticica, realizado de 25 a 27 de outubro, Santiago fez uma exposição (Machado de Assis - Aproximações) sobre suas motivações para escrever "Machado", as pesquisas que teve de realizar e suas principais preocupações em relação à literatura, à sociedade brasileira e à cultura do país.
Romancista, crítico literário, poeta, ensaísta e professor de teoria literária (titular da PUC-RJ e emérito da Universidade Federal Fluminense), ele acredita que a categoria "romance de sobrevivência" pode fazer sentido "num momento em que há grande interesse nos chamados ‘anos felizes’, a velhice.”
Como exemplo dessa tendência, citou o caso de “Retrato do Artista quando Velho”, escrito pelo autor de "Artigo 22", o americano Joseph Heller (1923-1999), no fim da vida e publicado postumamente, em 2000. “É um livro interessantíssimo, com uma série de inícios de romances que nunca se completam. A ideia é que na velhice a imaginação continua fértil, mas não existem mais as outras forças, como a disciplina, a coerência. Imaginar um romance é fácil, mas aí se parte para outro projeto e assim por diante."
A primeira tentativa de Santiago em falar da velhice foi o livro de poesia “Cheiro Forte” (1995), que tem a ver com o final do romance “Machado”. "É baseado numa carta em que Mário de Alencar escreve sobre as aftas terríveis de Machado nos últimos dias de vida, provocadoras de um cheiro muito forte."
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Depois ele escreveu “De Cócoras”, baseado em “A Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói, que trata do último dia de vida de um funcionário corretíssimo do ministério mais corrupto de um governo. Em seguida, pensou em escrever sobre a história de seu melhor amigo, Ezequiel Neves, e produziu “Mil Rosas Roubadas".
Em “Machado”, disse que procurou tratar da própria velhice (“não por exibicionismo”), relacionando-a com a velhice de Machado, a morte de Ezequiel Neves, “A Morte de Ivan Ilitch” e o “Retrato do Artista quando Velho”.
No romance, ele se baseia na "costura enigmática entre obra e autor" mencionada por Michel Foucault, aplicando essa concepção a Machado, a exemplo de como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade falaram do Aleijadinho. “O próprio Bandeira tem uma visão de doença fantástica, caso do poema 'Pneumotórax', com a solução do tango argentino.” Lembrou também comentário de Mário de Andrade, “de viés nietzschiano", de que “a própria dor é uma felicidade”.
“Desde o formalismo russo o autor foi excluído, com a análise restringindo-se ao texto.” A costura entre obra e autor interessou Santiago "desde 'Em Liberdade', uma tentativa de compreender Graciliano Ramos por meio dessa relação e levando em conta a sensualidade do escritor, um aspecto central de sua personalidade”.
Ele disse que fez a mesma coisa com Machado, com informações sobre sua doença, as anotações que ele deixou para seu médico, a foto conhecida de Augusto Malta, no cais Pharoux, com Machado sendo socorrido em público, cercado de pessoas (“todo mundo tinha medo, a doença era considerada transmissível”) e outros recursos.
“Pude trabalhar todos esses elementos de maneira que julgo não tenha sido abusiva, do ponto de vista familiar e social, e que dê uma outra visão de Machado, que na época estava escrevendo 'Memorial de Aires'.”
Santiago: "A importância da costura enigmática entre obra e autor" |
Santiago teve de entrar no mundo da medicina para tratar da questão delicada da epilepsia de Machado, utilizando uma bibliografia rigorosa. O médico que atendeu Machado foi Miguel Couto, o mesmo que tratara de sua mulher, Carolina. Couto lhe receitou um remédio homeopático. Para identificar o medicamento, Santiago consultou dicionários médicos do período tanto na Biblioteca Brasiliana Mindlin, na USP, quanto na Biblioteca Nacional).
Sobre o papel da homeopatia nesse nos anos finais de Machado, ele comentou que o médico Tomás Cochrane, um dos introdutores da homeopatia no Brasil, foi sogro de José de Alencar, portanto, avô materno de Mario de Alencar, grande amigo de Machado de 1904 a 1908.
Ele lembrou que Gustave Flaubert era epiléptico (“O terceiro volume de 'O Idiota da Família', biografia de Flaubert escrita por Sartre, é dedicado à doença dele”) e as pessoas sabiam disso desde que ele tinha 20 anos. Machado, ao contrário, escondia a doença, só pessoas muito próximas sabiam. “No século 19, consultava-se um médico só quando se estava morrendo, fora isso as pessoas recorriam ao farmacêutico.”
Ao responder a João Roberto Faria, da FFLCH, sobre quando teve a ideia de escrever o livro, Santiago confirmou que o tema ganhou forma quando leu a correspondência ativa e passiva de Machado, publicação da Academia Brasileira de Letras coordenada por Sergio Paulo Rouanet que inclui as cartas de Mário de Alencar a Machado.
“Naquele período, as cartas de Mario são muito melhores do que as de Machado. Ele indica remédios, todos homeopáticos. Nas cartas, pode-se contemplar a beleza da amizade entre os dois: todo dia ele pegava o bonde para se encontrar com Machado. E por sorte, Mário era um tanto boquirroto nas cartas”.
Foto: Leonor Calasans/IEA-USP