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Suzana Herculano-Houzel é a nova titular da Cátedra Otavio Frias Filho

por Leandra Rajczuk Martins - publicado 07/03/2023 07:50 - última modificação 09/03/2023 11:36

Neurocientista brasileira, reconhecida mundialmente por suas pesquisas, abrirá série de palestras expondo sua proposta de que evolução é a história de todas as formas de vida que funcionam

Por Leandra Rajczuk Martins e Mauro Bellesa

Suzana Herculano-Houzel - Perfil
Crédito: Joe Howell, Vanderbilt University.
Uma das mais importantes cientistas brasileiras é a nova titular da Cátedra Otávio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade. Suzana Herculano-Houzel, professora associada da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, foi escolhida para organizar o ciclo de palestras de 2023 com o tema “Ciência, Comunicação e Futuro”.


Herculano-Houzel sucede Muniz Sodré, considerado o mais proeminente especialista em comunicação do país. Sodré foi o primeiro titular da Cátedra, fruto de parceria entre o IEA e a Folha de S.Paulo, criada em fevereiro de 2021, quando a Folha completou 100 anos de existência.

Perfil

A bióloga e neurocientista Suzana Herculano-Houzel é reconhecida internacionalmente como uma das principais pesquisadoras sobre a evolução do cérebro.

Professora associada aos departamentos de Psicologia e Ciências Biológicas da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, onde leciona desde 2016, Herculano-Houzel é a primeira brasileira a receber o Scholar Award da James S. McDonnell Foundation (JSMF), entidade internacional que financia pesquisas voltadas à melhoria da qualidade de vida da humanidade.

A carioca nascida em 1972 se graduou em biologia em 1992 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez mestrado na Case Western Reserve University (EUA) em 1995, doutorado pela Universidade Pierre e Marie Curie (atualmente integrada à Universidade Sorbonne, França) em 1998, com pós-doutorado no Instituto Max-Planck de Pesquisa do Cérebro (Alemanha) no biênio 1998/9. Em 2010, recebeu bolsa da Fundação James S. McDonell, EUA, na categoria “Compreensão da Cognição Humana”, para desenvolver projeto de pesquisa durante seis anos.

Seus principais campos de pesquisa são a evolução da diversidade do cérebro e como o cérebro humano se compara aos outros, a chamada neuroanatomia comparada. Suas descobertas incluem um método de contagem de neurônios em cérebros humanos e de outros animais e a relação entre a área e espessura do córtex cerebral e o número de dobras em sua superfície.

Em 2013, ganhou notoriedade mundial com uma palestra no TEDGlobal. A neurocientista explicou o que o cérebro humano tem de tão especial. Sua participação já contabiliza mais de três milhões e meio de visualizações até o momento.

Herculano-Houzel escreveu livros em seu campo científico e também de divulgação científica: O Cérebro Nosso de Cada Dia (2002); Sexo, Drogas, Rock and Roll...& Chocolate (2003); O cérebro em transformação (2005); Fique de bem com seu cérebro (2007); Por que o bocejo é contagioso (2007) e Pílulas de neurociência para uma vida melhor (2009).

O livro mais recente da neurocientista é The Human Advantage: A New Understanding of How Our Brain Became Remarkable, publicado pela MIT Press em 2016 (a edição em português, A Vantagem Humana – Como Nosso Cérebro se Tornou Superpoderoso, foi lançada pela Companhia das Letras em 2017).

É colunista quinzenal da Folha de S.Paulo desde 2006. Também escreveu textos e colunas para revistas como Ciência Hoje, Ciência Hoje das Crianças, Scientific American (Mente & Cérebro) e Piauí. Foi apresentadora e roteirista do quadro NeuroLÓGICA do programa Fantástico, da TV Globo, de 2008 a 2011.

Suas áreas de expertise são: cérebro humano, evolução, neurociência e pesquisa do cérebro. Recebeu o Prêmio José Reis de Divulgação Científica (menção honrosa) em 2004 e o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria Ciências Naturais em 2008 com o título Por que o bocejo é contagioso?: E outras curiosidades da Neurociência no cotidiano.

De 2002 a 2016, foi professora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ.

Ainda quando lecionava na UFRJ, ela desenvolveu (com Roberto Lent) um método inovador para calcular o número de neurônios de um cérebro: com a transformação do órgão em um creme homogêneo onde os núcleos das células são preservados, é possível contá-los e, a partir disso, estabelecer o número total de neurônios do órgão (cerca de 86 bilhões no ser humano).

Além desse método para a contagem dos neurônios de seres humanos e de outras espécies, Herculano-Houzel também estuda a relação entre a área e a espessura do córtex cerebral e o número das dobras superficiais.

Assim como seu antecessor, a neurocientista será responsável pela organização de palestras mensais e um livro com artigos de pesquisadores selecionados sobre os temas da cátedra, cujo objetivo é desenvolver estudos sobre comunicação, democracia e diversidade.

Herculano-Houzel, que vive em Nashville, no Tennessee, é uma neurocientista de grande prestígio e com contribuições significativas para a área (leia perfil nesta página).

“Quero abrir a série de palestras expondo minha proposta de que evolução é a história de todas as formas de vida que funcionam – simples assim”, explica. “Estou preparando um novo livro que se chama Desde Que Funcione (Whatever Works, no original), que expõe exatamente esta maneira de ver a vida”.

Herculano-Houzel informa que há diversas formas de fazer ciência. “Nenhuma é intrinsicamente melhor do que a outra. A diversidade reina em todos os níveis, em todos os campos! Sobretudo quando o conhecimento científico e as maneiras de construí-lo se tornam exponencialmente mais complexos, a colaboração entre pessoas de especialidades e maneiras de pensar diferentes é fundamental”.

De acordo com o professor André Chaves de Melo Silva, coordenador acadêmico da cátedra e um de seus idealizadores, o objetivo fundamental do novo ciclo é compreender as relações entre a ciência, a comunicação e a diversidade enquanto elementos contemporâneos fundamentais para a existência da democracia. “Por isso, a escolha do tema e da professora Suzana Herculano-Houzel, neurocientista, referência mundial em atividades dedicadas à comunicação da ciência para o grande público, como titular do Ciclo”.

Segundo ele, o Ciclo será desenvolvido dentro da percepção de que a diversidade é um fenômeno extremamente amplo e está relacionada a todas as esferas da existência humana. “A ciência brasileira enfrentou um período de profunda desvalorização, com negacionismos e cortes avassaladores das verbas do sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação”, diz. “Compreender os motivos que geraram este quadro, bem como tentar criar estratégias de comunicação que contribuam positivamente para tentarmos evitar o retorno deste tipo de concepção e práticas também estão entre nossas metas”.

A seguir, a íntegra da entrevista de Suzana Herculano-Houzel ao IEA, concedida por e-mail:

O novo ciclo da cátedra tem o tema Ciência, Comunicação e Futuro. A ciência e a comunicação sempre estiveram entre os principais componentes modeladores do futuro. Acredita que há uma nova ou mais intensa influência desses dois fatores no desenvolvimento da sociedade? É possível vislumbrar alguma característica do futuro a partir desse quadro?

A vida humana está ficando exponencialmente mais complexa, o que significa que a complexidade de cada amanhã aumenta em função da complexidade de cada hoje – em vez de aumentar linearmente, devagar e sempre. A ciência foi a descoberta da humanidade em resposta a essa complexidade, mas também é um agente de mudança e ainda mais complexidade – mas é um agente do bem, pois o conhecimento que ela traz é o que nos permite fazer algum sentido do presente, e ter alguma esperança de fazer projeções realistas sobre o futuro. Então, sim: precisamos, e dependemos, cada vez mais de ciência e sua comunicação para mantermos algum controle sobre o futuro.

A questão da diversidade humana que pretende abordar refere-se às funções mentais ou abrangerá outras, como a étnica, cultural, de gênero ou social?

Todas! A diversidade começa nas partículas que compõem os átomos: até elas existem em formas e qualidades e quantidades diferentes, e a matéria é o que é graças a essa diversidade das partículas fundamentais que criam novos níveis de complexidade conforme interagem umas com as outras. Assim temos células diversas, que ao funcionar como um todo criam organismos diversos, cuja interação cria populações – e quando esses organismos são humanos cheios de neurônios corticais e, portanto, longevos como nós, eles criam todo um novo nível de diversidade e complexidade que, ao ser transmitida, assimilada e acumulada ao longo de gerações, vira nossa cultura e construções sociais, incluindo identidade étnica e racial. Apreciar completamente a diversidade humana requer abranger todos esses níveis, e como eles surgem uns dos outros.

A senhora declarou que a intenção é discutir das bases biológicas da diversidade até o impacto desta na vida das pessoas. Esse trabalho pode contribuir para a formulação de políticas públicas?

Eu certamente espero que sim! Influenciar políticas públicas é o outro lado da moeda da ciência: uma vez que o conhecimento científico é gerado e sai da esfera dos cientistas – o que só acontece às custas de comunicação –, seu valor está no que esse conhecimento traz para cada indivíduo, que escolhe como quer usá-lo em sua vida (se quiser), e no que esse conhecimento oferece para o coletivo, independentemente das escolhas de cada indivíduo: este é o papel das políticas públicas. Claro, o governo cumpre ainda melhor seu papel quando contribui ativamente para a educação dos indivíduos: sua capacitação para fazer o melhor uso da flexibilidade que a ciência traz às suas vidas. Se você considerar que minha definição operacional de inteligência é flexibilidade comportamental, que inclui a capacidade de agir para manter portas abertas e, portanto, maximizar o número de estados futuros desejados, então você entende a consequência enorme que eu enxergo no que o conhecimento científico traz para cada um: a possibilidade de viver sua vida de forma mais inteligente, mais flexível, com mais possibilidades. Por exemplo, usufruir da ciência tomando todas as vacinas disponíveis é inteligentíssimo, pois aumenta as chances de cada um continuar vivo sem precisar depender da sorte de não ser contaminado, ou não ser supersensível a doenças. Por definição, não há nada mais inteligente, nenhum comportamento que mantenha mais portas abertas para cada um, do que agir para estender a própria vida!

No momento, há intensos debates sobre os possíveis impactos dos chatbots em várias áreas. E Elon Musk anuncia para meados do ano os primeiros implantes de chips em cérebros humanos. Não há o risco de a inteligência artificial ocasionar maior desigualdade cognitiva, uma vez que aqueles com mais acesso a recursos de IA poderão ter algumas capacidades ampliadas, como percepção e memória?

Claro que há. Mas por enquanto, vou dizer apenas o seguinte: estou achando irônico que justamente os mais apossados desta vez serão os primeiros a pagar para ser cobaias da invasão do cérebro vivo por chips mortos. Em termos de inteligência, justamente, o tecido vivo é auto-organizado e auto-regulado e por isso sempre passível de mudanças. O tecido vivo é inteligente. Um chip, por outro lado, é tecido morto, estático, estável (e neste caso, espera-se que seja exatamente isso!), que não se adapta às circunstâncias. Grama por grama, eu prefiro manter meu tecido cerebral intacto, obrigada. Mas isso é decisão para cada um tomar para seu próprio cérebro.

O identitarismo implicou no estabelecimento de “lugares de fala”. Como cientista, considera justificável que apenas integrantes de uma determinada identidade (étnica, cultural, religiosa, social etc.) possam falar da realidade vivida por seus membros?

Se existem identidades diferentes, uma sociedade que celebra a diversidade deveria se interessar por ouvir tanto o ponto de vista de quem se identifica de uma forma, quando o dos que interagem com aquela identidade. Afinal, faz parte de cada identidade como ela encaixa no todo. Nem mesmo gêmeos idênticos vivem em ambientes idênticos, porque um é parte do ambiente do outro. Se eu sou ateia e você é católico e nós convivemos em sociedade, eu posso falar sobre como é ser ateia pelo lado de dentro, e você pode falar sobre como é conviver com ateus pelo lado de fora.

A senhora declarou recentemente que há quatro anos descobriu ser autista. Essa constatação de alguma forma alterou suas reflexões sobre a diversidade cognitiva?

Claro! O diagnóstico – que, note, é uma forma de identificação – é libertador em vários sentidos. Primeiro, eu não sou simplesmente “esquisita”; existe um padrão por trás das minhas esquisitices, e autistas acham padrões altamente reconfortantes! Brincadeira à parte, o diagnóstico é uma validação enorme de uma das várias formas dessa diversidade cognitiva, e só fez reforçar minha convicção de que a vida é tudo aquilo que funciona, que eu chamo de filosofia do Desde Que Funcione. Eu sou péssima em algumas coisas, mas ótima em outras. O mesmo se aplica a quem tem déficit de atenção, por exemplo. E esses são extremos, mas todo mundo existe em espectros de capacidades e habilidades cognitivas, então o todo só faz ganhar ainda mais rápido do que ganha mais partes diferentes. Celebrar a diversidade é o que eu quero alcançar com a filosofia do Desde Que Funcione. Mas note que faz parte igual dessa celebração entender que ela não é sinônimo de dizer que está tudo bem de qualquer forma. Uma condição que se torna incapacitante, dolorosa, ou nociva de qualquer maneira a um indivíduo deve ser reconhecida como distúrbio ou doença, e ter oportunidade de tratamento à escolha do freguês.

Considerando que a senhora é uma cientista reconhecida mundialmente por suas pesquisas e estudos, como vê a presença feminina nas ciências ao longo da história? Em que medida as mulheres ainda enfrentam desafios e preconceitos?

Dar oportunidades iguais às mulheres tem sido um processo, não apenas na ciência, e o processo ainda não acabou. Muito permanece como era por inércia, ou por falta de conscientização. Já fui vítima de um chefe que achou que estava me “protegendo de frustração” ao não recomendar para a administração que eu fosse promovida anos atrás, mas que pediu a promoção de um colega homem com currículo inferior ao meu. Tive que explicar a ele que frustrada eu já estava de ver meu colega promovido antes de mim, e que ele por favor não tentasse mais me proteger desta forma. Meu processo de promoção foi imediatamente instaurado. Meu ex-chefe pediu desculpas, e eu acredito que ele achava que estava fazendo o melhor por mim. É preciso ter voz e coragem para usá-la, o que eu entendo que não seja fácil quando não se é a parte ainda dominante da sociedade.

Nos últimos anos, o sistema brasileiro de pesquisa e inovação enfrentou profundas dificuldades e perdas devido à sua desvalorização pela administração federal. Como a senhora acha que podemos reverter este cenário?

É preciso um governo inteligente pela minha definição: capaz de agir para manter portas abertas e maximizar possibilidades futuras. O problema é que quando o assunto é ciência, garantir possibilidades futuras requer investir na formação de cientistas, o que é um longo processo que não dá retorno em ritmo eleitoral: começa com educação básica que promove pensamento crítico e não apenas decoreba centrado em informação, e se estende até a valorização dos cientistas que formam os novos doutores que darão continuidade ao processo, mantendo vivos o conhecimento e a capacidade de gerar mais conhecimento. Então é preciso conscientizar a população do valor da ciência e dos cientistas; demonstrar esse valor, através de remuneração atraente, excelentes condições de trabalho dos cientistas atuais, e divulgação orgulhosa das suas conquistas; e investir na preparação da próxima geração. Leva ao menos uma década. É preciso um governo com coragem de pensar longe, porque o retorno não acontece antes das próximas eleições.

A ciência atual é, cada vez mais, uma atividade coletiva, desenvolvida em redes formadas por diversos grupos de pesquisa, com pesquisadores de formações diversas. Esta questão poderá ser trabalhada no ciclo Ciência, Comunicação e Futuro?

Claro, e há diversas formas de fazer ciência. Nenhuma é intrinsicamente melhor do que a outra. A diversidade reina em todos os níveis, em todos os campos! Sobretudo quando o conhecimento científico e as maneiras de construí-lo se tornam exponencialmente mais complexos, a colaboração entre pessoas de especialidades e maneiras de pensar diferentes é fundamental

Sendo uma neurocientista, como a senhora analisa a importância dos estudos desta área para a diversidade e o desenvolvimento da ciência como um todo?

A biologia celular, a bioquímica, a física, permeiam todas as outras ciências da vida, ao estudarem os processos mais básicos do funcionamento dos organismos. Pensando assim, a neurociência vem do outro extremo: o das propriedades emergentes de sistemas complexos, e uma dessas propriedades é a consciência. Acontece que uma das coisas que se ganha com a consciência é a capacidade de autorreflexão: de representar a si mesmo, o que é a base de toda indagação e vontade de saber mais. Entender como entendemos e buscamos entender mais é, portanto, transformador para todo processo de geração de conhecimento, que é a essência da ciência.

Como a senhora vê as relações entre Comunicação, Democracia, Diversidade, Ciência e o futuro da Humanidade diante dos enormes desafios atuais, incluindo negacionismos científicos, guerras e outras ameaças à democracia e a civilização?

Complexidade gera complexidade, não há escapatória. É um bonde que só faz ganhar velocidade, o que exige que a motorneira se mantenha à altura da tarefa, cada vez mais atenta e preparada para lidar com o que surgir. Essa motorneira é a humanidade, e o bonde tem linhas diferentes. Umas vão continuar rodando mesmo que outras descarrilem, mas logo, logo o problema de uma vira o problema de todas. Como lidar com isso? Só com educação e ciência a pleno vapor, sempre, com oportunidades e preparação para todos. Se inteligência é flexibilidade para fazer o que importa, a educação nos deixa mais inteligentes à medida que nos dá mais possibilidades de ação, e a capacidade de antecipar o futuro para então agir desde já para chegar lá.